sexta-feira, 29 de novembro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue pertence ao livro À sombra do cipreste, premiado com o Jabuti 2000 - livro do ano. A edição mais recente é da Editora Global.

Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos

       Uma rua tão melancólica e metalúrgica, tão ocupada com o volume de sua produção industrial que, distraída, parecia  há muito ter esquecido no abandono a própria aparência: charme nenhum. Uma rua de paredes sujas e de reboco carcomido, no alto das quais, já perto do beiral, apareciam ridiculamente inúteis algumas janelas estreitas, como se Deus e  seus anjos precisassem daquilo para espiar o interior dos galpões que se escondiam para além das paredes e onde pessoas sujas de carvão faziam gestos cujos significados não alcançavam.

Eu caminhava apressado e descontente, olhando às vezes para o céu com a sensação de que tinha caído numa armadilha de  onde não conseguiria escapar jamais.  O céu que me restava era apenas uma estreita faixa cinzenta de nuvens que se moviam sem direção definida, mas de maneira mais ou menos frenética. Só nós dois, o vento e eu, passávamos pela rua àquela hora da tarde. Sobre o vento, sei que é de seu destino às vezes varrer as ruas. Quanto a mim, não consigo me lembrar do que fazia por lá: o lugar parecia não ter afinidade alguma comigo. Lembro-me, entretanto, de que o céu estava escuro e baixo, como a tampa cinza de um alçapão, quando o vento, encanando por aquele desfiladeiro, levantou  poeira tamanha que me vi forçado a proteger os olhos com as mãos. Com a poeira, alçou vôo uma folha de jornal cujas manchetes amarfanhadas gritavam que a chuva era iminente e, além de gritarem,  embaraçavam-me as pernas que tentavam correr em busca de abrigo.
Os primeiros pingos da chuva eu os ouvi na pureza de sua individualidade: alguns pesados, líquidos e sonorosos, pérolas que se espatifavam ao cair, e caindo levantavam o pó do passeio. Apenas os primeiros, porque em seguida desabou o aguaceiro de pingos homogêneos, massa contínua de sons sem  identidade: água jorrada. Não me alcançou, pois começou a cair  exatamente na hora em que cheguei à esquina e saltei para dentro do bar, feliz ainda por ter podido escapar.
Depois de tomar o primeiro copo da cerveja que me justificava no interior do bar, voltei à porta para matar um pouco daquele tempo agora inútil, mas também para ver a chuva caindo - aquele modo estrepitoso de cair. Foi  então que deslumbrado a vi: colada à parede suja e de reboco carcomido, no outro lado da rua, ela tentava proteger a cabeça com um jornal aberto ao meio, e o peito, com a mão esquerda espalmada. Seu vestido azul, seco ainda, tremulava ao vento sem temer o escândalo de seu gesto nervoso.
Inteiramente ocupada com sua proteção, a moça, para que me percebesse exposto na porta do bar, a observá-la. Parecia sentir-se muito desconfortável naquela faixa estreita onde a chuva ainda não tinha chegado. Equilibrava-se, por vezes, nas pontas dos pés, numa coreografia assimétrica e de equilíbrio quase impossível, como se quisesse entrar na parede,  a mão esquerda sem dar conta de todas as  regiões a proteger, a direita segurando ainda um jornal dobrado sobre a cabeça. 
Antes mesmo de que me olhasse, ensaiei vários gestos à guisa de aceno, mas, quando me olhou (Meu Deus, de onde aqueles olhos entre doces e assustados, aquela mesma boca rasgada de lábios carnudos, a testa altiva e os cabelos caindo sobre os ombros, de onde?), perturbado, não arrisquei aceno algum, temeroso de espantá-la com minha ousadia. Ela me encarou, e seu jeito de me encarar era um pedido de socorro: seu vestido azul, marcas da chuva, grudara-se-lhe nas pernas, deixando de gesticular.
Com duas rajadas oblíquas do vento, a chuva engrossou ainda mais, encurralando a moça, cujas mãos já não protegiam coisa alguma.
Na sarjeta, um córrego de águas barrentas arrastava impetuoso uma caixa de papelão com que eu brincara de barco. Fiquei atento ao modo como ela era arrastada. Havia uma espécie de desespero naquele rolar silencioso e sem resistência. Alguns passos à frente, escancarada,  a boca-de-lobo a esperava. No fim do quarteirão, meus primos me chamavam, mas eu não conseguia sair do lugar. Era uma luta em que eu me envolvera, em que me envolveria a vida inteira. Joguei todas as minhas esperanças no momento em que a caixa chegasse àquela boca escura: sua última oportunidade. Não demorou quase nada para que isso acontecesse. De repente, a caixa tornou-se magnífica em sua muda resistência. Ela cresceu ao pressentir o perigo. Ergueu-se, altaneira, as mãos e os pés fincados nas bordas, recusando-se a aceitar passivamente o próprio fim. A água insistiu violenta, brutal, mas a caixa, apesar de trêmula, não arredava pé, não se movia. Houve um instante de alegria, em meu peito - o vislumbre de uma possibilidade, se bem que remota, de ver derrotada a força bruta. Mas o córrego estufou por baixo da espuma escura, preparou-se com a paciência dos que têm a certeza da vitória  e arrojou-se, finalmente, contra seu obstáculo. A caixa dobrou-se ao meio, aflita, e desapareceu. Mais uma vez. Por que mais uma vez, por que sempre assim?
Nossas decepções cruzaram-se no ar, seus olhos e seus cabelos inundados de chuva e  tristeza.     
Finalmente, percebendo que o aguaceiro aumentava, arrisquei um gesto, ainda que tímido, convidando-a para o abrigo do bar. A água descia-lhe pelo rosto, penetrava caudalosa no decote do vestido azul, perdia-se nas profundezas de seu corpo, que lentamente ia perdendo qualquer nitidez, mancha assimétrica colada em uma parede. Em pouco tempo a água já conseguira apagar seus lindos olhos negros, transformando a boca de lábios carnudos em um risco arroxeado, deformando testa e queixo, embrutecendo o que ainda há pouco era delicadeza e harmonia.
A sarjeta já sumira, e a ilha em que a moça a custo se mantinha diminuía rapidamente. Eu me preparava para providenciar algum meio de salvá-la quando parou, em sua frente,  um ônibus escuro e vazio que a roubou de minha visão.
          Aproveitei para encher o copo de cerveja e, justo na hora em que me voltei, vi que o ônibus arrancava furioso, levantando água, inundando o passeio. A chuva cessava e o sol, pressuroso, começava a empurrar as nuvens para o horizonte, para trás dos prédios mais altos. O último copo de cerveja chegava ao fim. Olhei para fora e, no outro lado da rua, vi apenas uma parede encharcada e de reboco arruinado. Bem no alto, um palmo abaixo do beiral, umas janelas estreitas e ridiculamente inúteis, por onde o sol espiava o interior daqueles galpões que ficavam para além das paredes e onde homens sujos de carvão não conseguiam entender seus próprios gestos.
                                              


Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças