O conto que segue pertence ao livro À sombra do cipreste, premiado com o Jabuti 2000 - livro do ano. A edição mais recente é da Editora Global.
Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos
Uma rua tão melancólica e metalúrgica, tão ocupada com o
volume de sua produção industrial que, distraída, parecia há muito ter esquecido no abandono a própria
aparência: charme nenhum. Uma rua de paredes sujas e de reboco carcomido, no
alto das quais, já perto do beiral, apareciam ridiculamente inúteis algumas
janelas estreitas, como se Deus e seus
anjos precisassem daquilo para espiar o interior dos galpões que se escondiam
para além das paredes e onde pessoas sujas de carvão faziam gestos cujos
significados não alcançavam.
Eu caminhava apressado e
descontente, olhando às vezes para o céu com a sensação de que tinha caído numa
armadilha de onde não conseguiria
escapar jamais. O céu que me restava era
apenas uma estreita faixa cinzenta de nuvens que se moviam sem direção definida,
mas de maneira mais ou menos frenética. Só nós dois, o vento e eu, passávamos
pela rua àquela hora da tarde. Sobre o vento, sei que é de seu destino às vezes
varrer as ruas. Quanto a mim, não consigo me lembrar do que fazia por lá: o
lugar parecia não ter afinidade alguma comigo. Lembro-me, entretanto, de que o
céu estava escuro e baixo, como a tampa cinza de um alçapão, quando o vento,
encanando por aquele desfiladeiro, levantou
poeira tamanha que me vi forçado a proteger os olhos com as mãos. Com a
poeira, alçou vôo uma folha de jornal cujas manchetes amarfanhadas gritavam que
a chuva era iminente e, além de gritarem,
embaraçavam-me as pernas que tentavam correr em busca de abrigo.
Os primeiros pingos da
chuva eu os ouvi na pureza de sua individualidade: alguns pesados, líquidos e
sonorosos, pérolas que se espatifavam ao cair, e caindo levantavam o pó do
passeio. Apenas os primeiros, porque em seguida desabou o aguaceiro de pingos homogêneos,
massa contínua de sons sem identidade:
água jorrada. Não me alcançou, pois começou a cair exatamente na hora em que cheguei à esquina e
saltei para dentro do bar, feliz ainda por ter podido escapar.
Depois de tomar o
primeiro copo da cerveja que me justificava no interior do bar, voltei à porta
para matar um pouco daquele tempo agora inútil, mas também para ver a chuva
caindo - aquele modo estrepitoso de cair. Foi
então que deslumbrado a vi: colada à parede suja e de reboco carcomido,
no outro lado da rua, ela tentava proteger a cabeça com um jornal aberto ao meio,
e o peito, com a mão esquerda espalmada. Seu vestido azul, seco ainda,
tremulava ao vento sem temer o escândalo de seu gesto nervoso.
Inteiramente ocupada com
sua proteção, a moça, para que me percebesse exposto na porta do bar, a
observá-la. Parecia sentir-se muito desconfortável naquela faixa estreita onde
a chuva ainda não tinha chegado. Equilibrava-se, por vezes, nas pontas dos pés,
numa coreografia assimétrica e de equilíbrio quase impossível, como se quisesse
entrar na parede, a mão esquerda sem dar
conta de todas as regiões a proteger, a
direita segurando ainda um jornal dobrado sobre a cabeça.
Antes mesmo de que me
olhasse, ensaiei vários gestos à guisa de aceno, mas, quando me olhou (Meu
Deus, de onde aqueles olhos entre doces e assustados, aquela mesma boca rasgada
de lábios carnudos, a testa altiva e os cabelos caindo sobre os ombros, de
onde?), perturbado, não arrisquei aceno algum, temeroso de espantá-la com minha
ousadia. Ela me encarou, e seu jeito de me encarar era um pedido de socorro:
seu vestido azul, marcas da chuva, grudara-se-lhe nas pernas, deixando de
gesticular.
Com duas rajadas oblíquas
do vento, a chuva engrossou ainda mais, encurralando a moça, cujas mãos já não
protegiam coisa alguma.
Na sarjeta, um córrego de
águas barrentas arrastava impetuoso uma caixa de papelão com que eu brincara de
barco. Fiquei atento ao modo como ela era arrastada. Havia uma espécie de
desespero naquele rolar silencioso e sem resistência. Alguns passos à frente,
escancarada, a boca-de-lobo a esperava.
No fim do quarteirão, meus primos me chamavam, mas eu não conseguia sair do
lugar. Era uma luta em que eu me envolvera, em que me envolveria a vida
inteira. Joguei todas as minhas esperanças no momento em que a caixa chegasse
àquela boca escura: sua última oportunidade. Não demorou quase nada para que
isso acontecesse. De repente, a caixa tornou-se magnífica em sua muda resistência.
Ela cresceu ao pressentir o perigo. Ergueu-se, altaneira, as mãos e os pés
fincados nas bordas, recusando-se a aceitar passivamente o próprio fim. A água
insistiu violenta, brutal, mas a caixa, apesar de trêmula, não arredava pé, não
se movia. Houve um instante de alegria, em meu peito - o vislumbre de uma
possibilidade, se bem que remota, de ver derrotada a força bruta. Mas o córrego
estufou por baixo da espuma escura, preparou-se com a paciência dos que têm a
certeza da vitória e arrojou-se,
finalmente, contra seu obstáculo. A caixa dobrou-se ao meio, aflita, e desapareceu.
Mais uma vez. Por que mais uma vez, por que sempre assim?
Nossas decepções
cruzaram-se no ar, seus olhos e seus cabelos inundados de chuva e tristeza.
Finalmente, percebendo
que o aguaceiro aumentava, arrisquei um gesto, ainda que tímido, convidando-a
para o abrigo do bar. A água descia-lhe pelo rosto, penetrava caudalosa no
decote do vestido azul, perdia-se nas profundezas de seu corpo, que lentamente
ia perdendo qualquer nitidez, mancha assimétrica colada em uma parede. Em pouco
tempo a água já conseguira apagar seus lindos olhos negros, transformando a
boca de lábios carnudos em um risco arroxeado, deformando testa e queixo,
embrutecendo o que ainda há pouco era delicadeza e harmonia.
A sarjeta já sumira, e a
ilha em que a moça a custo se mantinha diminuía rapidamente. Eu me preparava
para providenciar algum meio de salvá-la quando parou, em sua frente, um ônibus escuro e vazio que a roubou de minha
visão.
Aproveitei para encher o copo de
cerveja e, justo na hora em que me voltei, vi que o ônibus arrancava furioso,
levantando água, inundando o passeio. A chuva cessava e o sol, pressuroso,
começava a empurrar as nuvens para o horizonte, para trás dos prédios mais
altos. O último copo de cerveja chegava ao fim. Olhei para fora e, no outro
lado da rua, vi apenas uma parede encharcada e de reboco arruinado. Bem no
alto, um palmo abaixo do beiral, umas janelas estreitas e ridiculamente
inúteis, por onde o sol espiava o interior daqueles galpões que ficavam para
além das paredes e onde homens sujos de carvão não conseguiam entender seus
próprios gestos.
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