sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto abaixo está na coletânea inédita O peso da gravata.

Atordoamento

Um dia cansativo, hoje eu tive um dia cansativo. Onde? Um dia extremamente cansativo. Eu sou um corpo enterrado numa poltrona deste ônibus que transporta um corpo enterrado. Onde? Hoje eu tive um dia cansativo. Mal sinto um corpo enterrado numa poltrona sem conforto de um ônibus: este. Depois de um dia cansativo, preciso atravessar a cidade e onde? Meus dias são todos. Meu corpo, que não trago agora comigo por questão de esquecimento, sacoleja no banco sem conforto de um ônibus, depois de um dia cansativo, este.

Um corpo enterrado numa poltrona. Eu sou um corpo enterrado numa poltrona deste ônibus que transporta um corpo enterrado numa poltrona. Onde? Hoje eu tive um dia muito cansativo. E tedioso. Os postes e fios derramando luz sobre as ruas. E os ônibus sacolejantes. Meu corpo. Como chuva de claridade do céu. A luz que escorre dos postes entra pela janela do ônibus cansativo. Preciso atravessar a cidade antes. Dos postes ainda escorre uma luz por cima das ruas. Onde? Ônibus sacolejantes e automóveis.

A cidade que tenho de atravessar antes lateja. O rumor. Só meus olhos e meus ouvidos? Latejante. Mal sinto um corpo enterrado numa poltrona sem conforto de um ônibus, apesar da claridade que chove dos postes, que desce do céu, mas sinto bem perto o cheiro forte do calor que exala das axilas. O cheiro da cidade no fim do expediente. Latejando? Algumas janelas fechadas impedem a entrada do ar e a saída do cheiro forte do calor que exala das axilas da cidade latejante.

Só chego em casa depois de atravessar a cidade. Preciso atravessar a cidade antes. Duas vezes. Na ida, a luz chove dos postes e o ônibus transporta meu corpo ainda quente do sono enterrado num banco sem conforto. Na ida, a cidade boceja com frio porque a aragem desce das montanhas de escuridão e cai sobre a luz que chove dos postes sobre as ruas. Ônibus e carros sacolejantes. Na ida, o frio. Na volta, o cheiro que exala das axilas da cidade no ônibus com várias janelas fechadas. Tem gente que viaja de pé porque precisa atravessar a cidade antes.

Em casa tem banho e jantar. O vapor sobe do prato. Mas preciso atravessar a cidade antes. Meu corpo viaja enterrado num banco sem conforto. Não sei onde fica meu corpo.

Um dia cansativo. Hoje tive um dia extremamente cansativo. O dia desce dos postes sobre a rua por cima de carros e ônibus. O dia. Um dia latejante, de calor e cheiro. O banco, debaixo de meu corpo, sacoleja por causa do ônibus.

A moça, de calça jeans e blusa de malha, quer descer e pede licença. A blusa azul tem manchas escuras na região das axilas. Ela pede licença e avança enfiando a cara e os braços pelas fissuras entre os passageiros. Pede licença e avança. Um pé, depois o outro, os braços e o corpo. A moça puxa sua mochila que também tem de descer e pede licença. Ela atravessou a cidade e precisa chegar em casa. Tem banho e jantar: o vapor sobe do prato. Ela avança devagar, mas não a vejo mais. Apenas seu pedido de licença dá existência à moça, de calça jeans e blusa de malha, que quer descer.

O ônibus parou e a moça deve ter descido para enfrentar a aragem da cidade latejante no fim do expediente, porque de sua voz só ficou um eco pedindo licença. .

Talvez eu não seja mais do que um corpo enterrado num banco sem conforto de um ônibus: este. Onde? Mas um corpo dotado de pensamento, capaz de em si mesmo, para si. Um corpo sendo carregado através da cidade latejante no fim do expediente. O calor e o cheiro. E meus dias todos. Na ida, a claridade chove dos postes sobre as ruas: ônibus e automóveis. E o frio. Na volta, a claridade chove dos postes sobre as ruas: ônibus e automóveis. E o calor. O calor e o cheiro que exala das axilas. Talvez.

O motor ronca. O motor que puxa o ônibus que me carrega ronca sua melodia. Meu corpo enterrado num banco sem conforto mergulha na melodia do motor e fica sonolento. O ronco do motor sacoleja na cidade latejante. É um rumorejo quente, com cheiro, que escurece o interior do ônibus. Onde? O banco debaixo de meu corpo ficou apenas como uma lembrança, um ser imaterial, evanescente. Na subida da ladeira o ônibus canta mais forte, oscilando. Esta ladeira está colocada antes, por isso é hora de pedir licença.

Um dia cansativo, hoje eu tive um dia cansativo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças