terça-feira, 10 de dezembro de 2013

QUESTÕES DE ESTÉTICA DA LITERATURA (81)

Nas duas últimas postagens (79 e 80), o autor analisa três soluções que têm sido propostas para descrever e explicar os desvios verificáveis na língua literária.

Pág. 166 - "Por outro lado, como observa Maria Corti, mesmo em relação a CM torna-se muito aleatório falar de competência derivada a respeito dos receptores de textos literários, em particular se se tratar de textos não contemporâneos dos receptores, pois que, nesse caso, a compreensão e a descrição dos textos dependem, em maior ou menor medida, de um conhecimento histórico do código linguístico. Efectivamente, um dos mais graves erros de muitas concepções desviacionistas da língua literária consiste no olvido (ou no ocultamento) de que a gramaticalidade e os juízos sobre a gramaticalidade representam factores variáveis dependentes dos estádios históricos de uma língua - uma frase agramatical no português contemporâneo pode constituir uma frase rigorosamente gramatical no português do século XVI -, razão por que se torna indispensável analisar e avaliar a gramaticalidade em termos de transgramaticalidade , isto é, considerando-a condicionada por parâmetros diacrónicos.
(p. 167) Numa perspectiva dicrónica, encontramos períodos literários e estilos epocais em que C - e em especial CM - adquire uma expansão e uma complexidade de alto grau, apresentando-se então a língua literária, no seu léxico, na sua fonologia, na sua morfossintaxe, na sua semântica, como dotada de uma forte autonomia em relação à língua normal.

Pode ocorrer este fenómeno em períodos de acentuadas transformações socioculturais, quando a língua literária, sistema semiótico possuído e utilizado por um reduzido escol de emissores e de receptores, sofre um acelerado e extenso processo de desenvolvimento e de enriquecimento, muitas vezes sob a influência de línguas literárias de mais rica tradição, tardando a língua normal em incorporar os resultados desse processo. Assim, por exemplo, durante os séculos XV e XVI, as línguas literárias românicas, sob o influxo das literaturas grega e latina, poliram rudezas morfofonéticas, alargaram o seu léxico, tornaram mais complexa a organização sintáctica e semântica das suas frases. Na literatura barroca, potenciados estes elementos renovadores e enriquecedores propiciados pelo humanismo renascentista, a língua literária alcançou uma luxuriância lexical e uma complexidade sintáctico-semântica que a distanciaram acentuadamente da língua standard coeva.
Noutros períodos e noutros estilos epocais, a hipertrofia de C - e em especial de CM - resulta de uma atitude estética de distanciamento em relação ao real quotidiano: a fuga à língua standard constitui a fuga à monotonia, à fealdade e à grosseria desse real quotidiano, pois que a essência espiritual do homem, como sublinha Benjamin, não se comunica através (p.168) da língua, mas na língua. Assim aconteceu, por exemplo, com o classicismo francês e o neoclassicismo europeu em geral, cuja doutrina das bienséances obriga a expungir da língua literária o léxico considerado como vulgar e grosseiro, carregado de uis realista e burlesca. Também os decadentistas e os simbolistas, sob o signo da hostilidade à sociedade burguesa, sob o impulso de um nefelibata aristocratismo vital e cultural e no anseio de redescobrirem, no sortilégio do verbo, a face oculta e essencial das coisas e dos seres, construíram um léxico requintadamente raro, não poucas vezes abstruso e bizarro, no qual se mesclam as formações vocabulares audaciosamente neológicas e os lexemas arcaicos, despojaram as palavras da ganga nelas depositada pelo uso quotidiano, reinventaram as relações sintácticas entre os elementos constituintes da frase, ultrapassando as restrições impostas pelas regras lógico-gramaticais, potenciaram e transfiguraram o espectro semântico dos lexemas isolados e contextualizados.

(CONTINUA) 


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