segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

UM CONTO PARA O FERIADO DO NATAL

À sombra do cipreste*

Pronto. Agora eles começam.
Por que esta necessidade de  fingir que são os nossos antepassados, repetindo gestos, assuntos, e até mesmo aquela maneira obscena de confiar no futuro, como se fossem eternos? A esta hora, a família toda já se dispersou. Os mais velhos, meus filhos, cabeças pesadas de neve e sono, subiram as escadas bocejando e arrotando, mas discretamente, como lhes ensinei há mais de cinqüenta anos. Ao redor da mesa, ficaram apenas estes rapazes que adoram deglutir as tardes de domingo discutindo a bolsa, o campeonato de fórmula um - ou qualquer outro campeonato - contando anedotas picantes, mentindo sobre os respectivos sucessos. Eles  competem sempre, sem descanso. Mesmo quando o tema é dos mais banais, eles se atracam como se disso dependesse a própria sobrevivência. Hoje, por causa do noticiário, eles disputam com furor a respeito da morte. Enquanto isso, lá do jardim, sobe a algazarra de seus filhos, soltos como pardais.
Mesmo de olhos fechados, eu sei que as cortinas vão balançar brandamente, agora, e que a sombra do cipreste, então, vai descer pela janela para aparecer com timidez no tapete, rastejante. Todos os dias, depois do almoço, quase perco o fôlego, de prazer e susto, ao vê-la chegar. Embora chova e o Sol se esconda por trás de pesadas nuvens, ainda assim eu a sinto aninhada a meus pés.
Fazem muita falta, minhas pantufas, mas não suporto alguém a me dizer o dia todo o que devo fazer. Prefiro passar frio. Muito rebelde, esta menina, Rodolfo. Você precisa dar um jeito nisso. Minha mãe: mulher antiga. No ano passado, estes senhores que discutem em volta da mesa, meus netos, ameaçaram derrubar o cipreste: Um salão de jogos, aí neste lado da casa, hem vovó, muito mais útil do que um jardim, não acha? Risquei com o dedo o ar que eles respiravam, um fogaréu de ódio me escurecendo os olhos, enquanto eu for viva, ninguém toca no meu jardim! Resolveram esperar, amoitados ao redor da mesa, por momento mais apropriado.
Preciso pedir a um destes rapazes que afaste um pouco uma das cortinas para mim. Nem de óculos enxergo direito nesta penumbra, e meus dedos acabam de farejar dois pontos perdidos só nesta carreira. Além do mais, pressinto, a esta hora, subindo na direção da janela, a sombra esguia do cipreste. Não sei quem pode ter plantado este cipreste. Quando me dei conta, por fim, de minha existência sobre a Terra, e resolvi, então, participar das atividades de outras crianças (que mais tarde descobri serem meus irmãos e meus primos), já encontrei o cipreste erguido para as nuvens, tão fechado em seu cone escuro, tão abotoado e só, que não tive escolha e me tornei sua amiga. Era no gramado, em volta dele, que nós, crianças, brincávamos de crianças. Deitada à sua sombra eu pascia rebanhos de algodão ao redor de castelos que me escolhera enquanto via o tempo passar. Depois veio o inverno.
- Não é mesmo, vovó?
Meus irmãos não existem mais, e de meus primos, dos que restaram vivos, tenho recebido notícias cada vez mais escassas. Vi meus filhos imitarem nossas brincadeiras no jardim e agora eles dormem nos quartos de cima o sono pesado da mesa excessivamente farta para a idade deles. Há muitos anos abdicaram destes torneios de espírito que salvam as tardes de domingo do tédio absoluto. Desde que os próprios filhos cansaram-se das brincadeiras em volta do cipreste, interessados, como eles diziam, nos assuntos de gente grande. Se não estou enganada, é o Juarez quem insiste sempre comigo, que eu também suba e descanse um pouco, como eles. Tenho a eternidade toda para essas coisas, meu filho, vontade de responder.
Eis que, finalmente, não é só a mim que incomodam as cortinas cerradas. O mais gordo de todos (como é mesmo seu nome?) passa por mim enxugando o suor da testa com um lenço de papel, o sorriso escondido atrás do bigode. Me cumprimenta galante e malicioso, como se acabasse de me descobrir em meu esconderijo a observá-los. E ele tem razão. Nada me distrai tanto como ficar ouvindo as conversas destes rapazes. Os disparates que eles dizem me divertem muito. Apenas me divertem. Em outros tempos não me sofreria sem interferir, tentando impor minha opinião, mas a idade ensina muitas coisas, e a mais sábia de todas é o silêncio. Agora mesmo, este gordo, o filho mais velho do Rolando, veio abrir a cortina porque o assunto o sufocava. Poderiam ter continuado com os detalhes do acidente, que a televisão mostrou por todos os ângulos e em todas as velocidades. Parecem mais sagazes quando discutem aquilo que vêem, mas deixaram-se atrair pelo encardido olhar da megera, e a discutem exaltados, como se ela fosse uma senhora de suas relações. Sem familiaridade com a metafísica, querem saber o que penso.
- O que é que a senhora acha, hem, vovó?
Suas risadas cheias de intenções ambíguas me inquietam, não porque me sinta ameaçada, mas por ver nelas muito da essência humana - caldo grosso e corrosivo, quase nunca inocente. Meus netos. Encolhida em fuga, arqueada, esfrego com força os olhos nas sardas da mão, como se estivesse acabando de acordar. Eles insistem na pergunta, sem saber se os ouço ou não, e por fim respondo com uma interjeição despropositada. A idade já me deu o direito de manter minhas opiniões em cofre escuro, sem as compartilhar com ninguém. Vai longe o tempo em que me batia guerreira na defesa de minhas idéias. Ademais, que posso eu dizer aos rapazes sobre a morte e que eles possam entender, se têm ainda os sentidos todos tão aguçados e eficientes, tantas raízes enterradas na vida. Eles trocam olhares joviais, rindo satisfeitos. Tolos, não sabem que ela só desvenda o rosto àqueles cujas raízes já começaram a secar. Nada digo, nem mesmo os condeno, pois também eu, em meu tempo, não vivia cada dia como se a juventude fosse invenção minha?
Indiferentes à resposta, fecham-se novamente no círculo ao redor da mesa, tão ligados no assombro como divergentes nas opiniões. Nada sabem do que estão falando, mas assumem um ar tão sério, ao brincarem de adultos, que por momentos chego a esquecer quem são. Eles, primeiras aragens frias do meu inverno.

As cortinas acabam de balançar, brandamente, à passagem da gritaria ensolarada que sobe do jardim. Não há nada fora de lugar, todos os papéis cumprem-se rigorosamente. Quando essas crianças tiverem cansado das brincadeiras de crianças, assumirão seus lugares em torno da mesa, depois do almoço, nos domingos. Mas até lá, com certeza, a sombra do cipreste terá deixado de entrar pela janela.

*Publicado no livro À sombra do cipreste, Prêmio Jabuti 2000.

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