Esta semana recebemos o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Beatriz Aparecida Baffi, do Centro Universitário UNIFAFIBE, sobre O casarão da rua do Rosário. E para que os leitores deste blog tenham uma ideia do conteúdo e da linguagem do livro, publicamos, a seguir, o primeiro capítulo da primeira parte.
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Benvinda, a matriarca
Capítulo I
Este cansaço, agora, me sobe dos pés inchados, me invade
pelos olhos e ouvidos; e as narinas, por mais que se esforçassem, não evitaram
que eu fosse inundado por aquele cheiro nauseante de flores murchas misturado a
fumaça de velas. E sua imagem de cera a ferir com cinza e areia meus olhos, a
visão embaçada. Preciso descansar, com urgência, para pôr pensamentos e emoções
em ordem. É maio e faz o frio de maio,
minhas pernas encolhidas estão mudas à espreita, mas não creio que ousem
qualquer movimento. Cruzo os braços no peito, fechando-me ao frio, cerro os
olhos machucados como algo que sangra.
Reclino ao máximo a poltrona e me ajeito melhor com vontade
de dormir, precisando muito de sono, morte provisória que me faça renascer
inteiro. Um pensamento, entretanto, espanta-me o sono. Quando me lembro de que
amanhã às dez devo fazer parte de uma banca e que venho descansando muito pouco
nestes últimos dias, fecho os olhos, pestanas apertadas, consciente de que há
urgência em dormir. Mas fico imaginando que flor poderá nascer naquele túmulo,
e minha imaginação escorrega entre o trágico e o cômico, com flores que se
alternam, às vezes se misturam de maneira ridícula num cromatismo de
caleidoscópio, cambiante, instável. Às vezes somem as pétalas, deixando exposta
a calvície das corolas pálidas.
O ronco do motor avança pela noite, destemido, supondo que,
uma vez contínuo, vai me relaxar para permitir que o sono embaralhe meus
pensamentos. Inútil. A noite está do lado de fora, no frio do lado de fora, e
consigo esquecer por um segundo as flores possíveis sobre o túmulo para pensar
que assim tudo termina: alguns familiares, alguns conhecidos, alguns punhados
de terra, apenas simbólicos, depois o profissionalismo de pás e enxadas cobrindo
a cova. E o que resta de cada um só pode ser o que fez, real ou supostamente.
Então chegam os outros, que nem notícias tiveram de quem partiu, e se põem a
existir.
E voltam as flores. A sempre-viva, apesar das pétalas secas,
não vai nascer sobre o túmulo por ser excessivamente colorida. À tia Benvinda
corresponderiam tais pétalas parecendo mortas desde o nascimento. Não fossem
suas cores alegres. Às violetas, sobretudo às miúdas e roxas, falta um pouco de
preto para que sejam perfeitas naquela terra que o corpo da velha, sem querer
ou saber, foi adubar. Minha tia. Sua vida merece flores feitas de noites e
friagens.
Um velório silencioso, de vez em quando acordado por algum
pigarro desgarrado e vozes ciciadas, como se formadas apenas de vento. Seus
irmãos, meus tios, muito concentrados talvez na ideia de que depois da mais
velha todos os outros irão no mesmo caminho. Diferentes, apenas tio Ataulfo,
que chorava agachado nos cantos engrolando palavras que não existiam, e minha
mãe, a caçula, que não se importava em parecer vitoriosa, um ar de triunfo
exposto no rosto ainda bonito. Ao ordenar mais café para os que ajudavam a
velar sua irmã primogênita, cuja alma desprendia-se naquele momento da matéria
imunda, fê-lo com bela voz, audível, quase melodiosa, apesar das palavras
triviais, como o café acabou, é preciso que alguém passe um pouco mais.
A mim pareceu que minha mãe estava feliz com a partida
daquela sua irmã. Ah, e penso que ela teve motivos de sobra para sentir-se
aliviada com o falecimento da primogênita, a guardiã da fé e das tradições, a
depositária dos tesouros familiares, tanto os morais quanto os pecuniários,
ambos em decadência inevitável.
À tarde o sol ficou a nosso favor, iluminando o alto dos
ciprestes e dos oitis sem nos assar. Um sol suficiente para que não sentíssemos
frio. Assisti a tudo da distância de uns dez passos, com meu semblante torvo
sem expressão que pudesse me trair. Os anos de universidade me ensinaram a
observar analiticamente e foi o que fiz. Depois de baixado o esquife, o mestre
de cerimônias falou com os irmãos da falecida senhora dona Benvinda Gouveia de
Guimarães e os instruiu a jogarem, por ordem de idade, um punhado de terra
sobre o caixão. O primeiro a sujar a mão direita foi tio Romão. Tive a
impressão de que chorava. Ele também, com o aspecto que eu ainda não tinha
visto de quem já ouve o trombetear dos anjos, não demora a se despedir. Está
acabado esse meu tio. Sua mão tremeu mais do que o normal ao jogar a terra
sobre sua irmã. Tia Joana, de olhos inchados, não teve coragem de olhar para
onde jogava a terra e por pouco não erra o alvo.
A última a se despedir com punhados de terra foi minha mãe.
Seus lábios se alargaram e iluminaram-se-lhe os olhos quando arrojou terra e
pedra sobre o esquife, provocando um baque surdo, e todos se espantaram com o
gemido grave do caixão ao receber aquela pedrada nas costas.
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