segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

QUESTÕES DE ESTÉTICA DA LITERATURA (85)

Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Teoria da Literatura. 6ª ed. Livraria Almedina: Coimbra, 1984.

Em addenda ao 2º capítulo, o prof. Vítor Manuel faz o seguinte comentário:

Pág. 176 - "Como decorre do conceito que expusemos de literatura de massas - um fenômeno bem delimitado e caracterizado sob os pontos de vista histórico, sociológico, económico e tecnológico -, o conceito de literatura de consumo, podendo embora confluir com aquele, não lhe é coextensivo. Existe literatura de consumo - por exemplo, a poesia do petrarquismo trivializado ou o romance de cavalaria - que não é literatura de massas, porque não é produzida, nem é lida originariamente no âmbito da sociedade de massas.

A distinção estabelecida pela metalinguagem e pela práxis do sistema literário, desde o Renascimento até ao neoclassicismo setecentista, entre uma 'literatura elevada' e uma 'literatura inferior', entre géneros literários 'maiores' e géneros literários 'menores', não coincide com a distinção romântica e pós-romântica entre a Kunstliteratur, a 'grande literatura', por um lado, e a Trivialliteratur, a 'literatura marginal', por outro. Os géneros literários menores, como o bucólico, o epigramático ou o satírico, constituíam também géneros canónicos, reconhecidos e estudados nas artes poéticas e praticados (p. 177) por autores que escreviam tragédias e poemas épicos. Pelo contrário, o romance, o conto folclórico, a narrativa faceciosa ou obscena, etc., eram colocados à margem do sistema literário pelos representantes da 'literatura canónica'. O que se alterou profundamente, a partir do romantismo, foi o paradigma axiológico subjacente à distinção entre 'literatura elevada' e Trivialliteratur. Desde o Renascimento até ao neoclassicismo, a 'literatura elevada' define-se semântica, pragmática e sintacticamente como um fenômeno 'aristocrático': a sua forma do conteúdo exclui a representação da vida quotidiana e familiar, a 'basse circonstance' (Boileau); é escrita e lida por quem detém a legitimidade sociocultural por excelência, isto é -, por aqueles que são os herdeiros e os continuadores do legado dos 'antigos'; a sua forma da expressão  funda-se numa discursividade intertextual que privilegia a continuidade da cultura, a invariância dos modelos, a universalidade das normas e convenções retóricas e estilísticas. A partir do romantismo, porém, a Kunstliteratur - digamos, tout court, a literatura - caracteriza-se progressivamente pelas suas marcas de inovação, de anticonvencionalidade e de força transgressiva, ao passo que a Trivialliteratur , tal como a 'literatura acadêmica' ou 'oficial', se define pela estereotipia semântica e formal, pela reiteração imitativa e residual de modelos e códigos (e esta alteração do paradigma axiológico impôs inevitavelmente uma revisão do valor assinalado às obras literárias anteriores ao romantismo).
Esta antinomia, que apresenta dimensões esquizofrénicas com o aparecimento das vanguardas modernistas e com o desenvolvimento do kitsch e da literatura de massas, manifesta uma das contradições mais profundas que laceram a sociedade e a cultura burguesas: a exaltação da inovação transgressiva, princípio axiológico derivado do individualismo burguês, volve-se em agente contestador e corrosivo da própria sociedade burguesa, pois que esta, esvaziando-se de autenticidade ética e desenvolvendo a (p. 178) lógica da sua produção económica, produz e consome cada vez mais uma arte kitsch, uma arte de massas (frequentemente assimiladoras da linguagem das vanguardas). Neste contexto sociológico, a Kunstliteratur, a grande literatura da modernidade, tem sido efetivamente uma literatura marginal, uma literatura de 'heterodoxos' e de 'malditos' - um grupo de dominados e dissidentes no âmbito da classe dominante -, que depois a sociedade burguesa, através das suas instituições académicas e escolares, recupera e aceita como autores 'canónicos' e 'clássicos'.

(CONTINUA)


Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças