Talvez a pergunta que intitula este texto seja uma das mais
formuladas a um artista. E ele, se não quiser ser mal educado, faz uma breve
contextualização do conceito para mostrar que a inspiração, em si, nos moldes
que a tradição cunhou, não existe.
A palavra inspiração é de origem latina e, grosso modo,
significa “soprar” ou “insuflar”. A maioria dos dicionários contemporâneos
define inspiração como uma sugestão de origem transcendente que excita o
artista a produzir. Trata-se, portanto, de um conceito metafísico que coloca o
artista como uma espécie de “médium” que, para criar, recebe um “sopro divino”.
Segundo a maioria das religiões, os livros sagrados foram
“inspirados”. Basta pensarmos nos evangelistas cristãos ou em Maomé, que
escreveu o Corão sendo praticamente analfabeto. Especificamente no âmbito
literário, o período áureo da ideia de inspiração ocorreu no Romantismo. Foi na
Escola Romântica que se intensificou o culto ao Eu e, assim, emergiu a figura
do gênio. O filósofo Immanuel Kant definiu gênio como “o talento que fornece
regra à arte”. Ou seja: é através do gênio que a natureza molda suas
diretrizes. Foi com Kant também que ganhou peso a ideia de originalidade (até o
início da modernidade, possuía mais valor o que era copiado dos grandes
mestres). E quem era o gênio capaz de originalidade? Aquele que tinha a
possibilidade de ser inspirado. Assim, percebemos a arte ultrapassando o
artista, que era uma espécie de títere, conduzido pela inspiração ao reino da
originalidade.
Todavia, no início do século XX, devido a inúmeros fatores
culturais, intelectuais e estéticos (incabíveis nessa modesta reflexão) a ideia
de inspiração começou a se esvanecer. O que se chamava de inspiração, passou a
ser visto como a soma de algumas propriedades.
A primeira delas é o exercício. Certa vez o músico Soraste
afirmou: “Durante 27 anos pratiquei 14 horas por dia e, agora que cheguei nesse
estágio, chamam-me de gênio”. Com isso, óbvio, não sentenciamos que alguém que
treine por um longo período, necessariamente, será gênio. É aí que entra o
segundo (e talvez mais importante) atributo: o talento ou a tendência natural
(que nada tem a ver com algo divino). É espantoso pensar que Wolfgang Amadeus
Mozart com 6 anos tocava suas primeiras sonatas. Para explicar casos como os de
Mozart a ciência lança mão de algumas hipóteses. Uma delas sustenta que as
células cerebrais no superdotado têm um número maior de conexões entre si do
que numa pessoa “comum”. Outro ramo de pesquisa defende que a genialidade não
está vinculada à bagagem genética e sim aos estímulos que a criança recebe nos
3 primeiros anos de vida. De qualquer modo, independente da explicação técnica
para isso, fato é que a aptidão é fundamental para a criação.
O terceiro atributo chamamos aqui de bagagem, o que não se
resume somente a experiências intelectuais, mas também à esfera cultural e
emocional. São todas as vivências calcadas em erros e acertos e, claro, em
estudos, pesquisas e aprendizados. Se quero ser escritor (e tenho aptidão para
isso) é provável que minha criação melhore muito se eu conhecer as grandes
obras da literatura universal (embora a Clarice Lispector não concordasse muito
com isso). Talvez aqui caiba uma observação sobre o aparelho psíquico. Depois
de Freud, não é lícito relegar a participação do inconsciente na criação
artística. Mas se ele não for visto com cautela, corre-se o risco de o
interpretarmos como uma “inspiração interior”, tão mística quanto a inspiração
romântica. De fato, o inconsciente é capaz de fazer conexões inesperadas. Porém,
tais conexões nada têm a ver com algo transcendente. São, ao contrário,
alicerçadas em desejos, prazeres e frustrações. Em termos simples: na própria
vivência do indivíduo.
Por fim, é preciso ter em conta a disposição (física e
mental); o estado de ânimo do momento. Assim como há dias em que um vendedor
está mais animado para atender seus clientes (e, por conseguinte, tem mais
chances de fazer boas vendas), o artista está mais disposto para escrever,
pintar ou compor. Trazendo a questão para um terreno que dizem ser de
conhecimento amplo dos brasileiros: certa vez meu pai me disse que, apesar da
baixa recorrência, já viu atuações pífias do Pelé. E isso, segundo o que
discutimos, não tem relação com o descuido da divindade que, no momento dos
jogos, o habitava. Pelé simplesmente não estava em um “dia bom”.
Evidentemente as características acima mencionadas podem
aparecer em maior ou menor grau ou serem rearranjadas de inúmeras formas.
Como adendo, mas de modo não menos importante, é digno de
destaque o papel do acaso nas criações artísticas. Se pensarmos em Jackson
Pollock, essa ideia toma contornos mais nítidos: foi por descuido (um fio de
tinta que escorreu no tecido esticado no chão) que surgiu um dos maiores
artistas expressionistas do século XX.
Em suma, eis o corolário: a inspiração expirou.
(Ensaio de Matheus Arcaro)
Não posso concordar. Quando houve toda essa racionalização contra a ideia de inspiração, foi naturalmente para se opor a um conceito muito romântico envolto em boa dose de mistificação e obscurantismo.É compreensível, e, na verdade, o trabalho de criação (literária ou outro) é realmente trabalho duro, constante - no caso da literatura, reescrever às vezes até parece mais importante que escrever propriamente. Se o que se chamou de Musa pode ser explicado como Inconsciente, houve na verdade uma mudança de nomenclatura - o mistério continua sendo o mesmo. No processo de criar um conto meu, uma vez passei o dia todo à procura de um título para um conto concluído , não tive nenhum resultado que me agradasse e fui dormir. Quase que dormindo, uma voz masculina, muito clara, cheia de uma autoridade profunda (daquelas das quais a gente jamais ousaria discordar), ditou o título. Perfeito. O melhor que eu poderia imaginar. Foi assustador. Mas foi o título que adotei.
ResponderExcluirOra, corre-se o risco, ao optar por explicações (mesmo as do gênero psicanalítico) de matar um mistério que pode ser tremendamente fecundo para o artista. Artistas aplicados, sérios, sóbrios, esforçados, às vezes o que conseguem é só uma sopa medíocre, rala, depois dos muitos esforços, e artistas verdadeiros conseguem, até contra si mesmos, como se nem fosse obra sua, coisas magníficas. Lembrar a esforçada mediocridade de Salieri invejosa da espontaneidade divinamente inspirada de Mozart. Talvez, na verdade, não se deva opor essas coisas. O que haveria, na verdade, seriam talentos menores e maiores, intensidades baixas e elevadas, sintonias mais imediatas e outras mais profundas.