O conto seguinte pertence à antologia A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil em 2006.
Signo de Touro
Signo de Touro
O caminhão parou na frente da obra e três homens tristes, com suas mãos
grossas, descarregaram as telhas em pouco mais de dez minutos. Eles estavam
suados quando Sebastião chegou com
brilho nos olhos. Repararam no brilho dos olhos de Sebastião, aquela sua
felicidade, nem assim deixaram de chupar as laranjas até se engasgarem com o
bagaço. O patrão parou de pernas muito abertas na frente dos três e disse e
então?, ao que os três se levantaram da sombra e foram cada um para o
cumprimento de sua obrigação. A um homem tão futuro assim não se retruca, eles
pensaram. Era novembro e o sol da tarde arranhava a pele mais do que picada de
formiga.
A construção de uma casa é sempre uma demora. Os caminhões prometem um
dia e voltam só no dia seguinte, os pedreiros chupam laranjas na sombra, depois
das duas horas da tarde, a chuva é uma festa boa para se ganhar dinheiro sem
trabalhar. Então as previsões, seus prazos e o dinheiro nunca chega.
Era assim que Sebastião fornecia as
explicações para os pais de Clotilde. A construção de uma casa é sempre
uma demora. O senhor tem experiência. Aproveitava os intervalos da novela,
tempo que o futuro sogro usava bocejando. E se distraindo a ouvir as
explicações de Sebastião: um rapaz sério e risonho, com os dois pés plantados
na vida. Aquilo era mesmo um futuro.
O combinado se cumpria. Pode ser que a construção fosse mais vagarosa do
que os abraços de Sebastião, suas mãos arrancando suspiros dos seios empinados
de Clotilde. Ela, a que mais pressa no escuro do quarto, a cabeça sozinha no
travesseiro. Mas era assim. Agora é só cobrir, ele disse à noite, num intervalo
da novela e na intimidade familiar. Chegaram as telhas, hoje à tarde. Só
cobrir. Mês que vem a gente marca a data. Todos pararam de olhar para o
aparelho de TV e encararam contentes o sorriso de Sebastião. O sorriso franco
de Sebastião, com aqueles dentes brancos. Então quer dizer que a Clotilde, eles
pensavam maliciando, seus pais e seus irmãos.
A mãe, a mais contente de todos por conhecer anseios da carne, seus
perigos, despachou a filha mais nova para a cozinha, porque um calor destes,
não acha, Sebastião? Ele, ah, mas não precisava se incomodar, e ela insistia:
um suco sempre ajuda num calor assim, meu filho. E quase babou de gozo ao
chamá-lo de filho, deste jeito tão íntimo, mês que vem eles marcam a data.
A novela voltou a ocupar as atenções e o suco chegou anunciado pelo
tilintar dos copos na bandeja. O primeiro a ser servido foi Sebastião, lugar de
honra na sala e nos corações, ele, sentindo-se um rei com suas regalias.
Quanto mais chegava ao fim do capítulo da novela mais o futuro sogro
bocejava. Sonoro. Ele sempre fazia assim. Todos acreditavam que isso fosse por
causa da doença dele. E talvez fosse. Muito educado, pedia desculpas ao genro,
dizendo com o olhar manso que era uma coisa inevitável porque, enfim, você
sabe, uma doença.
Quando os créditos começaram a aparecer subindo pela tela do televisor, o
pai de Clotilde levantou-se, distendeu os braços, abriu a boca, olhos fechados
e disse bom, minha gente, acho que está na hora. Eles todos costumavam deitar
cedo, porque, enfim, você sabe, uma doença. Despediu-se de Sebastião dando-lhe
a mão a apertar, num sinal de respeito e deferência, num formalismo ingênuo que
poderia significar uma despedida, mas que, por ser ingênuo, era apenas
deferência. Piscou-lhe o olho enquanto dizia que, claro, nem todos têm a
obrigação de estar com sono. Sebastião respondeu com um sorriso malicioso e
agradecido.
Não era a primeira vez que ficavam sozinhos na sala depois da novela, na
prática daquele namoro que já durava uma agonia, amarrando os tijolos de seu
futuro, um a um, com mãos e olhos, com lábios e língua, porque o futuro não
precisa de outra matéria para ser tecido. Mas o clima estava diferente. A luz
azulada, ocupando os lugares vazios de
sofás e poltronas, as telhas empilhadas na construção, o sorriso de
cumplicidade do sogro, tudo incendiava o desejo de Sebastião, porque lhe
parecia apenas antecipar o exercício de seus direitos. Clotilde aceitou e
retribuiu carícias, necessitada como andava ela também. Só reagiu quando as
duas mãos de Sebastião tentaram retirar-lhe a calcinha. Ela interrompeu o beijo,
ofegante, para dizer que não, ainda não. Mas o modo como cochichou aquilo, lá
dentro do ouvido de Sebastião, era mais forte do que um convite. Nem com o
perigo de entrar alguém de repente, como acontecia, ele queria mais contar. Já
ia forçando a calcinha, porque era mais fácil rasgá-la, quando Clotilde, de um
salto, pôs-se de pé, no meio da sala. Ela arfava, suada, os olhos alucinados
pelo desejo. Você ficou doido?, ela perguntava, doido, eles nem foram dormir
ainda.
Sebastião não se moveu por alguns minutos. Destruído. Só quando Clotilde
chegou-se temerosa, perguntando se estava zangado, foi que ele se levantou
dizendo que precisava acordar cedo.
Um beijo de lábios indiferentes e frios foi a despedida. Um beijo murcho.
*
Chegaram a pensar que estivesse louca. Doida varrida, comentavam as
primas, reforçando a idéia da vizinhança. E isso, porque se fechou no quarto,
de luto, fechada por dentro e por fora, não querendo ver ninguém. Nas poucas
vezes em que aparecia na calçada, andava rápido, cabeça pensa e olhos vazios,
sem cumprimentar os conhecidos com quem cruzava.
As vizinhas, quando ela passava, paravam de conversar sobre ela, que era
um assunto, e ficavam olhando-a penalizadas, mas principalmente por detrás, que
pela frente dava medo ter de cruzar olhos com os olhos da louca. Porque a
loucura, como a santidade, é aterradora: representa o invisível, o inexplicável.
Ela mesma, a Clotilde, muitas vezes pensava que estivesse vivendo uma
loucura.
No primeiro mês, apenas estranhou a demora. Sebastião telefonara dizendo
que tinha assuntos de família urgentes a tratar em Curitiba. Estava telefonando
da rodoviária.
Passados três meses desde o último telefonema, depois de buscas, anúncios
em jornais, velas para Santo Antônio, visitas a delegacias, terreiros e
hospitais, uma noite seu pai bocejou longamente no final do capítulo da novela
e caiu morto no sofá da sala.
Só aliviou o luto depois de três meses de órfã e seis de viúva.
Numa noite de sábado, ela teve o sonho invadido por um touro, um touro
que a iluminava com a luz que seu corpo pesado irradiava. Primeiro o touro
lambia seu rosto. Depois ele babava e Clotilde juntava a baba na concha de suas
mãos. Então ela descobriu que queria continuar vivendo.
A manhã seguinte chegou carregada
por raios de sol que clareavam, um pouco, mas que não esquentavam nada. E em
manhã assim, Clotilde preferia ficar na cama gozando o calorzinho do edredom
sem precisar pensar em nada, corpo apenas, suas sensações. Ainda mais que era domingo e os ruídos da
vida não invadiam o quarto, como em dias de trabalho e trepidação. Primeiro ela
sentou-se na cama, para bocejar. E bocejou. Com o alongamento, sentiu nos olhos
e na testa um princípio de vertigem, uma tontura que era mesmo um bem-estar,
uma leveza. Olhou então para a roupa, que havia deixado à noite sobre a
poltrona e estremeceu. Que loucura era a sua, umas vestes de claustro, aqueles
panos tenebrosos?
Quando chegou à cozinha, calça jeans e blusa bordô, foi recebida com
festa.
-
Ah, minha filha, parecia que nunca mais.
Clotilde parou com uma vertigem nos olhos, assustada, porque nunca mais
era o mesmo que para sempre, um tempo sem limites em sua vida provisória. Mas
aquilo foi só o instante de uma sensação, como um suspiro.
A mãe, o irmão e a irmã, que já tinham feito o desjejum, sentaram-se
novamente ao redor da mesa para assistirem ao renascimento de Clotilde, que
amanhecera cheia de apetite.
Pela janela aberta, entrava um sol meio anêmico e uma aragem viva, quase
colorida. Enquanto mastigava, sentindo gosto em mastigar, Clotilde olhava o
limoeiro no fundo do quintal, sentia o cheiro da terra há muito esquecido, e
reparou em dois pardais que vieram pulando familiares, confiantes, até o limiar
da porta.
Levantou-se da mesa e mostrou como a calça estava folgada na cintura para
que gostassem de tanto rir. A magreza de sua cintura era do mesmo tamanho da
palidez de sua cútis.
Riram-se os quatro, refamiliados contentes, um domingo inteiro para
ficarem juntos.
*
Depois do almoço, assistiram a um pouco de televisão porque era ainda um
jeito de estarem juntos para cochilar e distender os braços bocejando. Novamente uma família. Clotilde olhava com
olhos novos e enxutos para a mãe e os irmãos e pensava que novamente uma
família. Então tinha vontade de rir contente. E ria. Assim ficaram os quatro
até o meio da tarde, muito recolhidos em casa, muito ligados por uma linha
invisível, quando a mãe aproveitou um intervalo e, pegando nas suas as duas
mãos de Clotilde, lhe disse Vai passear, minha filha. Você precisa se distrair,
sair por aí. Clotilde invadiu os olhos de sua mãe inteiramente feliz e
respondeu que sim, mas não hoje. Queria ficar com eles, ali, daquele jeito que
era novamente uma família. Que amanhã, ela disse, amanhã gostaria de visitar a
Leonor, tanto tempo sem vê-la. Amanhã. E a Marcela junto, mãe.
Então continuaram na frente do aparelho de TV, vivendo ali dentro da sala
o que se podia viver no mundo inteiro. Apenas Clotilde, há tanto tempo sem
praticar, não acompanhava muito bem o que aparecia no monitor. Por isso foi até
o quarto e trouxe uma toalha de crochê interrompida seis meses atrás. De acordo
com os comentários ou as risadas, levantava os olhos do trabalho e acompanhava
por instantes o programa de auditório. As mãos paradas no regaço, um sorriso
sem razão, e ela pensava em como era bom viver de volta.
*
Quando se despediram de Leonor, às cinco horas da tarde, o sol já estava
macio e a cidade se enfeitava com uma tinta morna, amarela, que tornava suas
ruas menos cruas. A cidade se encolhia esperando a noite. As poucas folhas dos
plátanos, com seus tons do amarelo, oscilavam levemente no alto de galhos quase
nus, em silêncio, como em silêncio cruzavam-se as pessoas com seus abrigos de
lã nas calçadas. Aquelas folhas, como abanavam,
já deveriam ter servido de presságio, anúncio do que estava por
acontecer. Mas o futuro, mesmo que passe pela frente dos olhos, não se mostra
tal qual é. Clotilde propôs a caminhada até sua casa porque precisava beber a
cidade, passo a passo, e era aquela uma boa oportunidade. Não havia em seu
espírito uma intenção oculta, inconfessada, de escolher o trajeto, o que deixou
por conta de Marcela. Se passaram pela frente da obra, não foi por deliberação,
mas porque a obra estava no caminho mais curto entre os dois bairros. Era uma
rua de poucos moradores, ainda, aquele atalho por entre muitos terrenos
baldios. A caminhada seria de uma hora, pouco mais, e poderiam chegar em casa com
as últimas claridades do dia.
Caminhavam a passo largo, as duas irmãs, mas não por pressa, que não são
de pressa os caminhos de volta se o coração bate contente. Era uma espécie de
sede de viver, de sorver a cidade, sentindo seus aromas, ouvindo seus ruídos,
revendo paisagens conhecidas. Não era uma pressa, aquele passo, era uma gula.
Marcela já estava treinada nos desvios, sabia escolher atalhos menos
perigosos. Enquanto caminhavam a passo largo pela rua, singrando com o rosto
aquela aragem começando a esfriar, Clotilde apertava com mão agradecida a mão
da irmã. Só esporadicamente elas sentiam necessidade de sorrir uma para a outra
ou então dizer alguma palavra comentando a tarde passada na casa de Leonor.
Então aconteceu o que não deveria acontecer, estarem as duas paradas olhando a obra. Não
se diziam nada, nem suas mãos davam qualquer sinal. Paradas olhando. As duas
janelas da frente, dois buracos cegos na parede sem reboco, a varanda-garagem
esboçada num quadrilátero vazio, no fundo do qual uma abertura que poderia
tornar-se uma porta. Os tijolos escurecidos pelo tempo, sol e chuva, as telhas
empilhadas a um canto. Ali o futuro estava interrompido. Era apenas o signo de
um sonho que se esboroava contra os meses.
As mãos frias da brisa envolveram o pescoço e os braços das duas irmãs,
que perceberam finalmente onde estavam. O acaso arma ciladas ou soterramos
intenções desconhecidas? Os pés de Clotilde estavam firmemente grudados no
asfalto enquanto ela ouvia vozes de pedreiros, sentia o cheiro do cimento
fresco, apertava a mão de Sebastião que ia explicando como entendia o futuro,
cada cômodo, como seria. Marcela puxou a mão da irmã e disse qualquer coisa
como está esfriando, Clotilde, entretanto, não conseguia desgrudar os pés de
onde estavam fincados. Neste momento seus lábios começaram a tremer, suas mãos
respondiam suando à dormência que lhe subia das pernas.
Mais tarde, sozinha com a mãe, a caçula descreveria assustada as
convulsões de Clotilde, seu choro aos arrancos lancinantes, as janelas que se abriram
na vizinhança. Nunca, naqueles últimos seis meses, tinha dado a demonstração de
um desespero tão grande. O medo que sentira, então, era de que a irmã estivesse
cumprindo uma sina, como diziam as primas, a sua sina, e giravam o dedo perto
da orelha.
Só um pouco antes de chegar em casa é que o choro de Clotilde acalmou.
Então ficou muda, de olhos parados, caminhando porque a irmã menor a
conduzia.
*
O frio da manhã tinha carregado os irmãos de Clotilde para a escola,
deixando para trás a mesa da cozinha coberta de farelos de pão, xícaras sujas
de café, facas lambuzadas de margarina. Perto da janela, a mesa, a claridade
fria dava-lhe forma e volume, um volume superior ao verdadeiro: monstro a
dominar o cômodo e as preocupações. Ao lado, mas diluídas na penumbra, mãe e
filha voltavam mais uma vez ao assunto da semana: o entardecer de
segunda-feira.
Tanto moço bonito por aí, propôs num suspiro a mãe com sua linguagem um
pouco antiga. A vida assim é que não pode ser.
Depois do susto dado em Marcela, Clotilde se aquietara no resto daquele
dia, pensativa, em viagens de descoberta. Pouco antes de ir para a cama, na
sala, o sorriso que seu rosto estampou, para dizer que agora era outra pessoa,
provocou dúvidas e surpresas. Vocês viram?, era ela com um sorriso que não se
explica. Todos foram dormir pensando naquele novo sorriso de Clotilde. A mãe e
os irmãos não perceberam que ela havia sonhado novamente, agora acordada, com
aquele touro luminoso.
Nos dias seguintes, dois três dias apenas, ninguém ousou penetrar em seu
mistério. Havia medo e espanto, que impediam qualquer aproximação. E Clotilde,
mal tomava seu café, aparecia com suas linhas e agulhas, sentava-se e punha-se
a trabalhar. Ninguém lhe perguntava o que fazia. Nem ela parava de sorrir. Às
vezes lalava uma melodia desconhecida, uma melodia que nascia de sua
satisfação. Sim, porque o sorriso de Clotilde era um sorriso de satisfação.
Não se podia mais suportar aquela esfinge dentro de casa, então
resolveram abordá-la. Que se explicasse. Clotilde não se explicou, mas também
não se mostrou incomodada com a forma abrupta como os familiares irromperam em
seu sorriso, e como quiseram discutir cada um dos detalhes de sua vida.
Suspirou novamente. Tanto moço bonito! Sem desviar os olhos do crochê,
Clotilde rebateu que não, não era de moço bonito que estava precisando. Queria
de volta era seu futuro, o futuro que teceram juntos cada linha, cada nervura e
ondulação. A mãe não se conformava com tamanha teimosia, então voltava a
insistir que futuro, futuro, minha filha, se destece assim como se tece, de
acordo com as vagas e oscilações da vida.
*
Às vezes levava Marcela junto. Nem sempre.
De manhã, quando as manhãs orvalhadas começaram a sacudir o frio de suas
costas, ia sozinha, porque a irmã estava na escola.
Quase toda semana Clotilde visitava a obra. Por isso é que sabia tudo o
que acontecia lá. Viu surgirem os tufos de capim, viu espicharem os pendões e
soltarem sementes; em vão tentou impedir o crescimento dos mamoneiros, suas
folhas brilhantes e espalmadas; seus pés
formaram trilho pelo meio do mato que invadia despudoradamente a obra, que
parecia disposto a desmanchar as paredes.
Quando levava Marcela, transformava a irmã em vítima confidente. Aqui,
ela dizia, aqui vai ser o lugar da mesinha, ali vou botar o sofá e as
poltronas. A cama, você não acha que fica melhor aqui perto da janela? Marcela ouvia, fingia acreditar e se
transtornava com aquelas histórias que a ninguém poderia contar. Os devaneios
loucos de sua irmã. E lembrava-se do gesto das primas: rindo, faziam círculos
com o dedo indicador apontando para a orelha.
As tardes, terminado o trabalho doméstico, Clotilde as passava sentada na
varanda, nos fundos de sua casa, tecendo toalhas de mesa, tapetes de quarto e de
parede, enfeitando o futuro. E uma vez sentada, não havia o que a movesse do
lugar. Sai, minha filha, vai passear um pouco. Às vezes repetia inutilmente
o argumento dos moços bonitos. Nada. Ela sorria maliciosa.
A primavera chegou numa chuva que inundou a tarde e todos perceberam que
então era o aniversário de Clotilde. Vieram as primas, logo depois do almoço,
porque não se conformavam com a cura de Clotilde. Mais tarde chegaram as
vizinhas, trazendo muitos moços bonitos, para regalo dos olhos da mãe de
Clotilde. Marcela correu ao quarto e trouxe o aparelho de som para a sala.
Algumas amigas tinham prometido comparecer com os últimos lançamentos do hit parade.
O primeiro moço bonito que se aventurou a convidar Clotilde para dançar
foi o Lourenço, que todos chamavam de Louro. Clotilde largou agulha e linhas
sobre a cadeira e amarelou um sorriso de desgosto pelo cumprimento de uma
obrigação aborrecida. Louro era um rapaz da moda, por isso achava que estava
abafando. Como a fraca luz da tarde chuvosa não fosse muito ajudada pela única
lâmpada acesa numa mesinha de canto, ele tentou colar o corpo de Clotilde ao
seu, o que foi possível em uns poucos segundos. O calor de seu corpo assustou
Clotilde, há tanto tempo carente, e ela se afastou. Tentou então conversar com
o par, corpos afastados, olhos nos olhos, ele conquistador. Os olhos de
Clotilde fugiram de todo jeito, rebatendo nos móveis, nos retratos retocados
das paredes, e até pela porta aberta para o corredor.
Louro acabou desistindo da conquista. Não era seu dia.
Poucas tentativas como a de Louro foram feitas. Sem que se percebesse,
circulou na sala a notícia de que a noiva não estava a fim.
Aí vieram os bolos e refrigerantes e a noite caindo espantou a chuva.
Sentada em sua cadeira, Clotilde dava os últimos pontos em um tapete de quarto.
Só não sorria, de tudo que aconteceu, para que não pensassem que ela estava
louca.
*
Durante algum tempo, Clotilde deixou de sair de casa porque o feitiço de
seu corpo havia grudado na vontade de Louro. Os dias dele pelas esquinas,
esperando, uma hora ela há de sair. As vizinhas comentaram aquilo com Marcela
que veio trazer a notícia.
E Louro passou a freqüentar os assuntos da família, trazido
principalmente pela viúva. Todas as virtudes masculinas, todas as belezas
viris. Com paixão gravada na testa, agora. E a família, então.
-
A senhora não pode parar com isso? Que saco!
A mãe reclamou, que falava por falar, sem propósito, apenas porque não
gostava de ficar calada, como certas pessoas. Clotilde retrucou que, se era uma
indireta, poderia falar claramente, porque preferia ficar mesmo calada a dizer
bobagens. A mãe não gostou dos modos da filha e retirou-se chorando e dizendo
que no tempo em que o falecido não tinha faltado ainda, naqueles tempos todos a
respeitavam mais.
Correndo o risco de ser importunada na rua, Clotilde guardou agulhas e
linhas na cesta e saiu. Estava difícil de suportar o tempo parado, um tempo que
não andava. Saiu a esmo, pois precisava apenas de ar e de movimento. Eram quase
onze horas da manhã e o sol estava muito quente. Ela não reparou nas horas e
tentou fugir do calor. Nos primeiros quarteirões, Clotilde andava a passos
largos e sem se distrair com nada. Fugia de Louro, um Louro muito mais de sua
própria imaginação, e do sol, real, imenso, uma fornalha. No caminho, um só
pensamento: Estava arrependida da rispidez usada com a mãe, mas era impossível
reagir de outra maneira.
Como um pensamento não formulado, Clotilde estava indo na direção da
escola onde os irmãos estudavam. Quase na hora da saída. Se sua mãe não fosse
tão insistente, até poderia interessá-la por seus moços bonitos. Mas havia
despudor naquela insistência, um propósito oculto. Quando Clotilde teve de
escolher um caminho, de susto marcado, estava na rua de algumas casas e vários
terrenos baldios. Lá onde Sebastião queria fazer amor com ela.
Dois quarteirões adiante, parou na frente da obra. As flores se
despetalavam, preparando suas sementes. Entre as folhas do mamoneiro, aqueles
abanos antigos, os bagos de espinhos moles da mamona. Clotilde teve de refazer
seu caminho, que o mato já invadira julgando seu. Então descobriu assustada que
havia outro caminho, um atalho, com marcas recentes. O coração aos pulos, ela
entrou na casa e, perto da janela do quarto, encontrou uma cama de papelão com
travesseiro de telhas. Ao lado, duas pedras serviam de fogão. Ou lareira. Com
ódio exagerado rasgou as lâminas de papelão e levou de volta para a pilha as
telhas de sua casa. Bateu uma na outra as mãos sujas de terra queimada. Vontade
de quebrar tudo, rachar o mundo, vontade de sumir no escuro e não voltar nunca
mais. Sentou-se, por fim, num monte de tijolos e chorou. Pelo pai, pela mãe,
por si mesma. Chorou de saudade, uma saudade com muitas dúvidas. Chorou de medo
de não resistir ao assédio dos moços
bonitos que sua mãe lhe oferecia.
*
Depois de restabelecer seu contato com a obra, quase toda semana Clotilde
fazia-lhe uma visita. Acostumou-se com a nova cama de papelão com seu
travesseiro de telhas. Chegou a estabelecer uma espécie de muda comunicação com
aquele inquilino desconhecido. Deixou frutas ao lado da cama, trouxe-lhe uma
toalha, um pequeno espelho quebrado, uma almofada velha. As respostas vieram em
pequenas transformações do ambiente. Os dejetos passaram para os terrenos
baldios em volta da casa, tudo muito bem varrido, tudo cuidado.
Clotilde não poderia negar a curiosidade que a mordia. Tinha um inquilino
com quem se comunicava e do qual não falaria jamais a quem quer que fosse. Era
mais um de seus segredos. Chegou a vir bem cedo à obra, mas já encontrava tudo
arrumado e deserto.
Assistida por aquela distração, Clotilde atravessou o verão, entrou pelo
outono até o inverno. Sua mãe deixara de importuná-la com seus moços bonitos,
conformada, talvez, com a viuvez encruada da filha, ela, que já andava de
flerte notório com viúvo das redondezas. Quando os dias começaram a esfriar,
contudo, seu inquilino misterioso desapareceu. Deixou frutas que não foram
tocadas e a cama de papelão, uma vez retirada, não voltou a seu lugar. Clotilde
andou nervosa e abatida alguns dias, mas novamente viúva, conformou-se,
voltando para seu crochê.
Diminuiu as visitas, já não tinha muita vontade de passar pela obra, que
perdera o encanto.
Numa tarde gelada de julho, um domingo longo e vazio, Clotilde voltava de
uma visita a Leonor, agora noiva e de
casamento marcado, quando parou parada, estátua, seu corpo, mas seu coração
pulando, completamente enlouquecido. Mato nenhum na obra, a pilha de telhas
transformada em telhado. Tudo assustadoramente limpo. Não teve coragem de
entrar. Seus pés, assim que se desgrudaram do asfalto, conduziram-na de volta
para casa, entre pequenas corridas e passos agitados.
A sala estava em penumbra de domingo à tarde, uma penumbra azulada e
espásmica. Toda sua família na sala, divertindo-se com calouros ingênuos, mas
sonhadores. Entrou e sentou-se em sua poltrona sem dizer nada. Também não lhe
perguntaram o porquê daqueles olhos parados, abismados, daquela respiração
ofegante como se todo o ar da sala fosse pouco para seus pulmões. Ninguém
perdia o menor movimento do que acontecia na TV. Pelo menos até a hora em que a
campainha tocou.
O grito que Marcela deu quando abriu a porta, encheu-os de terror. Todos
mudos, imóveis, olhando para a aporta.
Sebastião entrou sorrindo, com seu tamanho, e Clotilde sentiu-se de
repente iluminada como em seus sonhos. Encontraram-se no meio da sala e começaram
a dançar.
-
Vim marcar a data -
ele disse para a sogra, quando a música terminou.
*
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