sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir está na coletânea À sombra do cipreste, 6ª ed. pela Global Editora, Prêmio Jabuti, livro do ano, em 2000.

Terno de reis

Enxuguei as mãos no vestido, urgente, e, do jeito que estava, apareci por trás das crianças, protegida, na porta da sala, onde não cabia mais ninguém. O brilho excessivo das vestes reais, franjas e bandeiras coloridas, o séquito ruidoso que acompanha os cantadores, me pareceram sempre um conjunto grotesco que me intimidava. Ajeitei por cima da orelha um fiapo solto de cabelo que me incomodava, tentei disfarçar o embaraço. Depois de passar a tarde em preparativos certa de que eles viriam, de que outra vez invadiriam nossa casa, como todos os anos, ainda sentia as mãos geladas e a testa úmida porque o ritual, embora saiba que não muda, parece nunca ser o mesmo - uma surpresa: as risadas de sempre, cochichos e cumprimentos, o primeiro acorde do violão anunciando o início da cantoria.


Da cozinha, para onde olhava com insistência a fim de evitar que alguém viesse conversar comigo, o cheiro da baunilha - os biscoitos ainda quentes na bandeja de inox, a peça mais valiosa de nossa baixela. Irromperam finalmente nos agradecimentos aos senhores donos da casa, versos que sei de cor, que minha avó também já sabia. Puxei contra meu corpo o Betinho, mais para ocultar a inutilidade momentânea das mãos que para exibição de carinhos a que não estamos afeitos. Ele tentou desvencilhar-se, talvez envergonhado, mas só fez aumentar a pressão de minhas mãos. Voltei a olhar para trás, fugitiva, adivinhando olhares e sentindo-lhes o visco. Ensaiei uma carícia na cabeça de meu filho, a furto, e retrocedi assustada. Sentada no jardim, tinha passado a tarde do domingo tocando com as pontas dos dedos as folhinhas nervosas da sensitiva que, cheia de pejo, fechava-se por alguns segundos. Aquela reação de animal me divertia muito. Pare com isso, menina. Na manhã seguinte ela apareceu murcha e cuidado algum a pôde salvar.

Eu me sentia horrível com o suor porejando em minha testa. Aquele ar, se ao menos alguém, a janela fechada. De repente a sala começou a oscilar como barco à deriva, e as peças de cerâmica, improvisadas em presépio sobre a mesa,  ameaçavam jogar-se das alturas no vermelhão do piso de cimento. Tudo rodava, e por cima de todos balançava a bandeira do divino - velho e encardido pedaço de seda carmesim. Pensei que fosse desmaiar. À última nota dos agradecimentos de praxe - ardido e prolongado falsete heroicamente arrancado com ressaibos de cigarro e cachaça daquelas gargantas - me afastei na direção da cozinha: é também do ritual oferecer alguma bebida nos intervalos aos cantadores. Suspirei aliviada, distendi os músculos. A vida toda esta vertigem dos primeiros instantes, o desconforto de estréia? Saí pela porta dos fundos, espiei aqui de baixo o silêncio do céu, cumplicidade antiga, e engoli sôfrega o ar úmido de orvalho. Em volta, o bairro todo dormia, a exceção de  um galo ou outro no cumprimento do dever.

Refeita, vim andando devagar pelo corredor, os olhos fixos nas garrafas abertas, que a custo equilibrava na bandeja - tanta gente, meu Deus! - e avançava com o coração bem agasalhado, então, certa de que os passos seguintes não me poderiam mais surpreender e que em pouco tempo, do burburinho, nada mais restaria além de uns pobres fantasmas a voejar pelos cantos escuros de meus sonhos daquele resto de noite. As portas novamente estariam cerradas, e a vida, outra vez, resguardada de sobressaltos. Estava quase feliz quando cheguei à porta da sala e tive de erguer a cabeça para escolher caminho até a mesa.

Um engano, aquilo, alguém semelhante, só isso. E tentei esconder-me com meu susto, de volta no corredor vazio, mas não havia mais corredor, nenhum, e meus olhos cheios de espanto, mesmo depois de tantos anos, ainda retinham o ângulo de seu nariz, a curva suave do queixo, o traço espesso da sobrancelha, a cor da pele e a largura do sorriso: todos os detalhes que a vontade presumia extintos. Ali, sua tonta, debaixo do fícus mais alto, no banco depois do chafariz. Domingo, três horas da tarde, e eu senti uma vontade imensa de estar morta, mas nenhuma nuvem no céu que atendesse a meu pedido. A última vez, aquela?  Não sabia o que fazer da bandeja nem se o cumprimentava ou fingia desconhecê-lo, enquanto ele, tranqüilo, me fitava: a mesma expressão do rosto como se o tempo o tivesse esquecido. Três horas da tarde e o domingo anoiteceu de repente na praça da matriz. Pudor algum no modo de me encarar e me desvestir, bem ali, dentro da casa onde suspirei em noites de sacrifício, onde concebi e criei dois filhos,  onde compartilho a cama com um homem escolhido às pressas e por vingança. As garrafas tremiam sobre a bandeja,  mas não conseguia decidir-me. Olhei apavorada as paredes para ver se era possível perceber ainda vestígios dos gemidos do gozo contratual que tive de aprender. A olhos mais atentos nada se escondia. Na praça, as pessoas continuaram domingando do mesmo jeito, como se já não tivesse anoitecido. Mãe, a cerveja! Dei dois passos, tonta, e larguei a bandeja sobre a mesa. Esbarrei na Lúcia, que vinha chegando com os bolinhos e biscoitos, respondi ao cumprimento de dois ou três conhecidos e fugi apressada para o banheiro com a sensação de ter sido descoberta em pecado.

Abri a torneira até o fim e mergulhei os pulsos no jorro dágua. Mas o que pode ter acontecido a esta planta? De longe, olhando desconfiada, eu temia que alguém se lembrasse do domingo. Molhei as têmporas e a nuca, esfreguei com aspereza as mãos no rosto. Ali, sua tonta, no banco. Em quem maior confiança do que em meus próprios olhos, que antes de anoitecer, e apesar da distância, conseguiram ver quem era e que não estava sozinho? A água já me escorria pelos cabelos e inundava minhas costas por baixo do vestido. Na manhã seguinte a sensitiva apareceu murcha e cuidado algum a pôde salvar. Qual a diferença entre um suicídio e a morte provocada por um grande desgosto? À mesa, o mal-estar. Isso é conversa de criança, menina? Ah, um dilúvio que me lavasse, que me tornasse outra vez inocente! Em vão o recado pelo próprio portador da aliança, devolvida sem explicações, em vão todos os outros recados. O carteiro, por fim, já não insistia mais antes de carimbar os envelopes que levava de volta. As portas estavam trancadas: era a manhã seguinte. Mirei-me demoradamente ao espelho pendurado acima da pia, na parede. Me descobri velha, doze anos mais velha, e ridiculamente patética: aqueles sulcos descendo das aletas até as extremidades da boca e o arroxeado por baixo dos olhos. Que absurdo! Ele era apenas um homem de cuja história, por escolha, me separei. Com todo o direito de mudar, de eventualmente encontrar algum prazer na companhia de um violão.

Da sala, em surdina, chegaram as vozes dos cantadores contando a história da manjedoura, uma história que aprendi mesmo antes de entender a significação das palavras. Agora era camuflar bem a devastação da tormenta e retornar à sala, ao bom desempenho do único papel que me competia. Enxuguei o rosto e os cabelos, conferi: o aspecto não me agradou. Entre aquelas vozes todas, qual a dele? Um batom mais claro, quem sabe? Vontade nenhuma de causar má impressão. Enquanto retocava o rosto, com pressa, procurava no conjunto uma voz que fosse conhecida. Em nenhuma delas aquele veludo grave e levemente fanho que outrora afagara-me os ouvidos e o coração.

Cheguei  inutilmente silenciosa à porta: todos atentos à narrativa dos reis magos. Apoiei-me novamente em meu filho, as mãos espalmadas em seu peito. A sala parecia pequena para tanta música. No meio de seus companheiros, o mais alto de todos, ele me pareceu o único a ter notado minha ausência. Mais majestoso que o próprio rei. Quando nossos olhos casualmente se encontravam, os dele pareciam ainda pedir-me uma explicação. A casa, então, começou a parecer-me pobre e triste, com esta luz amarela pendente do teto, estas paredes desbotadas e os trastes que, nestes anos todos, têm-nos servido de móveis. Acho que foi vergonha, o que senti, e uma vontade imensa de chorar. O que poderia estar acontecendo comigo?

A meu lado, satisfeito, dorme o marido que me escolhi, enquanto a madrugada me traz, abafados mas nítidos, os versos de uma história que se repete em outra casa, talvez num outro quarteirão. Em que poderia a vida ter sido diferente? Estremeço com essa pergunta, e meus olhos secos e abismados não encontram resposta, porque é noite, há muito tempo que é noite.



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