O conto que segue foi publicado no livro À sombra do Cipreste
Anoitando
- Satisfeita? - insiste Gaspar.
Confusa, Jandira ergue os ombros. Sorri. Responder o quê? Ainda há
pouco era-lhe um estranho, sem história ou nome. Chegara de súbito com a
promessa de transformar sua vida, antes mesmo de qualquer revelação. Sua
presença é incômoda. Desprende-se de seus braços, tenta afastar-se.
Densa e macia a sombra começa a descer dos telhados vizinhos para
inundar o quintal. Como remoto silêncio de um ermo escorrendo.
- Sei que há muito o que fazer, mas quando se tem por onde começar...
Interrompe-se desolado. Embaraço a esconder. Olha em volta, seu
território, imagina a vida ali, transcorrente.
Meia dúzia de canteiros, de que restam somente cômoros de contornos arruinados
pela chuva, mal sustêm o verde miserável de uma vegetação envilecida. Mistura
de horta, de pomar, abandono e jardim. Difícil enquadrar o futuro sonhado na
realidade disponível. A felicidade podendo ser apenas palavra em sutil
abstração: miragem evanescente.
Em sua fuga vã, os pés de Jandira tateiam o terreno tépido. À beira de
sua aventura, não sabe como recuperar-se e sente que apenas se deixa carregar.
Um gato brasino, surpreendido no sono vagabundo, irrita-se com a
invasão de seu ambiente e foge pulando a cerca. Seu gesto de pânico faz
estremecerem raquíticas folhas de couve-tronchuda que emergem do mato e que,
povoadas de pulgões, abanam pedidos de socorro. Assustado, o pardal abandona o
galho onde descansava e projeta-se na direção do Sol. Jandira os observa e no
primeiro instante não compreende a razão de tomarem rumos opostos, nascente e
poente sendo meras objeções geográficas para indicar a localização de seu
quintal: o centro e o pólo, o foco.
Entre ramagens de quintais contíguos, descobre incontáveis olhos
devassadores. Encolhe-se acuada.
- Eu fico pensando se não é tudo diferente do que você gostaria que
fosse.
Olhos enxutos e abrasados, a mulher volta-se e encara Gaspar.
- Por favor.
Ele a enlaça, esperançoso, e ainda uma vez Jandira foge. Quase estéril,
a roseira agarra-se com pertinácia ao que fora uma cerca e, orgulhosa de sua
origem aristocrática, recusa-se à promiscuidade com as guanxumas. Duas
laranjeiras, gêmeas, por certo, definham desamparadas no mútuo consolo da mesma
desgraça.
Gaspar sofre calado os tantos recuos, mas compreende o esforço da
mulher e se encoraja.
- É assim mesmo. A gente sonha e sonha, e no sonho todos os projetos
são facilmente realizáveis.
Ela nada comenta, distraída.
Tomando rumos opostos, nada mais fizeram que obedecer a um equilíbrio
dialeticamente necessário. Como num jogo de regras fixas. Bem antes de vê-los
em fuga, antes mesmo de conhecer a casa e o quintal, fora possível determinar
com relativa exatidão o trajeto de cada um. E isso a perturba sempre. O pardal,
ao penetrar no disco de fogo, continuava batendo as asas. Crestavam-se-lhe
primeiro as plumas e depois os remígios enrodilhavam-se aniquilando toda forma
lógica, até se transformar por inteiro em uma bola de carvão, que rapidamente
perdia tamanho e desaparecia. Apenas um instante, um ponto de negro tempo. Mas
não poderia ter sido diferente.
A sombra alonga-se e encobre o bairro de telhados encardidos. Olhos
redondos e faiscantes multiplicam-se na folhagem escura das árvores. No céu,
algumas nuvens imóveis retêm a caliça de um sol morrente.
- Você não deve se martirizar. Procure entender que ninguém tem culpa.
Eu, o que peço, é só mais um pouco de tempo até me acostumar com a nova
situação. Tão pouco!
Bem no fundo, no último ângulo do quintal, a touceira de cana-rosa
balouça as folhas afiadas no vaivém do vento. No canto oposto, o amontoado de
cacos. Latas velhas, vidros de xarope, pedaços de tijolo, de telha, trapos da
cor do barro, a primeira página de um jornal gritando o último desastre, cacos
de louça: resíduos de outros moradores que por ali passaram.
Sobrevoando os canteiros, uma nuvem de mosquitos ameaça transformar-se
em sólido e pesado bloco de zumbidos.
- Procure entender.
Gaspar sorri e enternecido aperta contra si o corpo trêmulo da mulher que,
por fim, se entrega. Jandira chora fagulhas para bordar seu firmamento.
- Mas é claro que entendo!
Uma labareda consome as entranhas de Jandira. É necessário, por Deus
que sim! E num deslumbramento ela desvenda o infinito, percebendo que da menina
que se arrojara outrora contra o fogo do Sol, nasce a mulher ataviada de garras
e presas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças