sexta-feira, 25 de abril de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir pode ser encontrado no livro A coleira no pescoço, publicado pela editora Bertrand Brasil

O rico sorriso de Rita

Eu sabia, responde Rita ofegando seu desespero, claro que sabia. O buço trêmulo cobrindo-se de orvalho. Claro que sabia, repete extenuada, o olhar tolo e solto, um olhar inteiramente intransitivo. Então o peito desinfla e os ombros despencam duplos, de súbito.  Em seguida respira até o fundo, sua profundidade, e esgota o ar tentando acalmar-se. Finalmente, e de rosto imóvel, ela arremata, Mas não tive escolha. 
O marido sabe que não se trata de uma solução, aquele desabafo, mesmo assim não consegue mais pensar em culpa, pois se não havia escolha. Ele toma entre as suas, em consolo, as mãos pálidas de susto da mulher. Rita deixa-se levar, indefesa. Bem, só pra morte não se dá um jeito, conclui muito masculino e enrugando a testa, concentrado como se estivesse inventando uma frase inteligente. Dá um beijo na face imóvel de Rita, que, agradecida, debalde tenta sorrir.
Depois de soltar as mãos da esposa, Leonardo levanta-se e vai até a janela, pensando em cerrar as cortinas: há pessoas que estão sempre à espreita, ansiosas por desgraça alheia que os ajude a suportar os próprios infortúnios. Pára algum tempo com os braços abertos e erguidos, mãos segurando no alto as duas bandas da cortina. Como se fosse a primeira vez que vê a paisagem – a rua tranqüila, as casas conhecidas, todas aquelas certezas tão incertas. Um movimento brusco de braços e a sala encolhe na penumbra. Talvez, ele afirma com a voz enrugada ao virar-se para Rita, talvez a gente ainda tenha de procurar uma casa mais barata. Ainda mais agora que não precisamos de dois quartos.

Rita suspira o comentário possível e único, Tudo por causa de uma chuva.
Leonardo boceja enquanto alonga os braços e faz caretas estúpidas com movimentos frenéticos dos músculos do rosto numa demonstração abjeta de superioridade. 
Algumas chuvas são tão ácidas que se tornam fatais, ele comenta por fim como se acabasse de fazer uma reflexão capaz de refazer os percursos do tempo. Ao encarar novamente a esposa, percebe que ela está enxugando umas tantas lágrimas involuntárias. É um absurdo não terem tentado um tratamento médico. Com tanto recurso existente hoje em dia. Uma falta de consideração.
Cansada de ouvir e repetir as mesmas verdades, Rita suspira antes de rebater com paciente delicadeza o pensamento do marido. Sabe, começa lentamente, com a experiência que lhes é peculiar, bem assim o gerente falou, com a experiência que nos é peculiar, eles conhecem os casos em que não adianta insistir. O meu caso, segundo eles, é irreversível. Seu caso é irreversível, dona Rita, a senhora não nos serve mais. Perda de filho, dona Rita, principalmente se  ainda não completou dez anos, não tem cura.
A testa novamente enrugada, Leonardo apóia os cotovelos sobre os joelhos e esfarela entre as mãos, que se esfregam, alguns sonhos mais urgentes. Suas faces provavelmente enrubesceram, mas Rita não percebe porque ele tinha acabado de cerrar as cortinas. O marido ergue o rosto para poder encarar a mulher. E você não reagiu, não ameaçou com a lei, não disse nada? Rita desvia o rosto, efígie muda, músculos imóveis de múmia.
Acho que nunca te contei, começa arrastando as palavras, lenta. Eu ainda não te conhecia quando comecei a trabalhar no atendimento do público. Nem eu mesma me lembrava mais de alguns detalhes. As pestanas tremem-lhe descontroladas com a lembrança. Ela impõe-se pausa prolongada para que se desfaça o nó da garganta.
De que você está falando, Rita?
Claro que reagi, gritei, invoquei meus direitos. Exigi que me acusassem com base em alguma falta grave. Nossos clientes, o gerente me disse, nossos clientes exigem-nos funcionários felizes, ou, pelo menos, que aparentem sê-lo. E é o mínimo que eles merecem. Ninguém mais procura empresa cujos empregados não recebam os clientes com um sorriso nos lábios. Exatamente assim que ele falou: nos lábios. Porque eles pagam pelo conforto de um mundo agradável, entendeu, dona Rita? 
Deste  jeito?
Exatamente assim.
Ninguém pode lidar com o público, berrou o gerente, sem um sorriso, entendeu, dona Rita? Um sorriso nos lábios. Respondi que sim, que sabia, mas não era culpa minha se tinha chovido. Ele arregalou os olhos imensos e agressivos e disse raivoso que a empresa não queria saber de empregados sujeitos a qualquer chuvinha à toa.
Então reagi, dizendo que nada me obrigava a colaborar para o conforto dos clientes. Mas nisso é que eu estava enganada. Ele abriu o cofre e me mostrou o contrato que assinei quando assumi o cargo na empresa: sorriso exposto ou justa causa.
Exausta, Rita encontra o silêncio nos olhos do marido.

Mesmo com as cortinas cerradas, a noite aos poucos infiltra-se pelas janelas e penetra na sala, onde Leonardo e Rita, de mãos dadas, esperam a chegada do futuro. Mas o que vem chegando, mesmo, é a noite, uma noite indesejada, que ameaça transformar-se em chuva. 

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