sexta-feira, 30 de maio de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue pertence ao livro A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil, em 2006.
O bezerro de ouro

 "É da essência do capitalismo que tanto os bens como o trabalho  sejam geralmente comprados e vendidos no mercado. Nessa sociedade, as relações entre as pessoas são dominadas pelo princípio da troca de equivalentes, do quid pro quo, não só em assuntos econômicos, mas também em todos os outros aspectos da vida" (Baran e Sweezy, Capitalismo monopolista).

O muro nasce num instante insuportável de tamanho medo e imediatamente se põe a crescer ali dentro do peito de Armando, em silêncio, escalando escarpas e escombros, serpeando encostas, escrevendo as divisas de seu território. Como coisa que medra, uma vida que renite obstinada. Armando consegue vislumbrá-lo iluminado em suas cores, todo concreto com o peso, uma barreira intransponível. Desde a primeira betoneira de argamassa, onde se assentam os primeiros tijolos, que o coração vai-lhe sendo aliviado muito reflexivo, uma suavidade de espírito já esquecida há duas semanas e que não permite ultrapassar alguma simplicidade: um homem pode ser a medida de seu medo?  Levanta-se da escrivaninha e de compasso aberto mede o carpete da espessura de quatro dedos - um trilho até a janela.

O sol bate sem qualquer ruído sobre o pátio limpo, por isso todo iluminado como um deserto. O menor movimento poderá ser visto de tanto que não há movimento algum. Duas semanas de total descrença na maioria dos seres humanos. Na quase totalidade dos seres humanos. Seu sofrimento não tem mais fim de uma forma tão intensa que desejaria adormecer, entorpecido, para acordar apenas quando tudo isso for um pesadelo antigo.

Para além da sebe de hibiscos, uma nuvem trêmula no céu, nuvem espiralada e vermelha que sobe da terra e mergulha no azul. Armando volta à escrivaninha e pressiona o botão do interfone. O botão vermelho. Aqui, pensa contente, aqui ninguém manda mais do que eu. E olha pela janela inútil, por onde passa apenas uma nuvem branca e perdida, além de uma quina do prédio da destilaria, com uns frisos antigos, desbotados. Finalmente, depois de um estalido seco, a voz da secretária. Dona Iolanda, localize o Ademar, imediatamente. Quero ele na minha sala com urgência. Desligado o interfone, volta à janela. Menos apreensivo, agora, depois daquela ordem tão firme que chega a ser um conforto sua autoria.

Para além da sebe de hibiscos, a nuvem trêmula e vermelha desloca-se tão lentamente, por causa da distância, aqueles quilômetros de paisagem verde e ondulada, que parece não sair do lugar. Vem dos fundos, onde o canavial mantém a cidade prisioneira, os limites, de onde nunca se espera ninguém.

Acariciando as três sílabas com lábios úmidos, dona Iolanda repete várias vezes o nome do chefe, como o código não compartilhado com ninguém de suas fantasias amorosas. Armando finalmente atende com o imperioso e seco: - Fale, dona Iolanda!

A secretária informa então que o presidente do sindicato aguarda na linha.

Todo o gosto amargo da vida sobe-lhe das entranhas, devastador e quente, dando o maior sinal numa dor aguda na boca do estômago - queimação antiga com que o médico ameaça-lhe o futuro. Não fosse esse Adão, todas as metas previstas estariam sendo alcançadas. O mundo já conheceu momentos mais felizes. Os olhos embrenham-se no rosto sisudo de seu pai, pendurado na parede acima da escrivaninha. O cenho carregado e o bigode espesso de seu pai, o fundador. Em seu tempo, jamais tratou com presidentes que não fossem do país ou de grandes empresas. A corja, aos poucos, toma conta do mundo. Como um castigo? Veja lá o que ele quer, dona Iolanda.

Ele está perguntando se o senhor confirma a reunião para as onze horas. Armando sente-se cansado, um cansaço repentino e denso, todos os gestos pesados demais. No tempo de seu pai, sim, era tudo mais simples: uns mandavam, os outros obedeciam. O mundo de Deus, ordenado como Ele o fez. Agora tudo desandou: ninguém manda e ninguém obedece.

- Doutor Armando!

Doces como caramelos, as cinco sílabas a rolar entre os lábios da secretária. Pode confirmar, dona Iolanda. Às onze horas. E aproveitando, dona Iolanda. O toldo. Mande alguém baixar o toldo aqui da minha janela. Daqui a pouco vai ter sol querendo invadir minha sala, ouviu, dona Iolanda? Pois não, doutor Armando. Já vou providenciar. Ah, sim, só mais uma coisa: Dona Rita de Cássia me pediu para lembrá-lo de que hoje é sábado e que espera convidados para o almoço. A única resposta de Armando não é vista pela secretária porque é uma cara azeda que ele faz, cara de quem chupa o limão dos compromissos sociais.
                                                                     

*

 Armando senta-se em sua cadeira atrás da escrivaninha porque tem necessidade de algum lugar onde existir e a cadeira é estofada, confortável, mas, sobretudo, porque tem um espaldar alto como um império. Começa a relaxar e está sozinho, por isso não interrompe um bocejo que se prolonga até a ponta dos braços esticados. Ele alcança. Olha para os lados e sente que pode alcançar. Suas mãos prolongadas, aquele espaço. Então percebe a escrivaninha, limpa como um recesso, e vê que tinha deixado de ser local de trabalho. Há duas semanas deixara de ser a sede do poder para transformar-se num móvel de escritório, ordinário, um móvel inutilizado pela intransigência humana, lugar para apoiar os braços. Fecha os olhos para ver melhor os trabalhos de construção do muro e apenas os lábios se abrem num sorriso satisfeito.

De norte a sul, de um sol ao outro, multidão de homens trabalhando na construção do muro. Embora sem fisionomia, por causa da distância que tudo dissolve, Armando orgulha-se da regência que exerce sobre aqueles seres anônimos e sobre a pressa com que trabalham, mesmo sem saber para quê. Alguns preparam a massa em betoneiras provavelmente ruidosas, outros descarregam caminhões de tijolos, uns terceiros correm com suas carriolas e nem é possível saber o que transportam além de carriolas. A sensação de segurança é um conforto para seus olhos fechados. Por isso Armando não quer mais abri-los. A não ser quando tudo isso for apenas um pesadelo antigo.

O sossego, entretanto, como qualquer sossego, é de pouca duração. A imagem de uma nuvem trêmula suja novamente o céu de seus olhos fechados. É uma nuvem espiralada e vermelha que sobe para além da sebe de hibiscos. Armando coleciona inquietações, por isso estar dentro da própria roupa é um desconforto. Então levanta-se rapidamente para espiar pela janela. Lá está ela, praticamente no mesmo lugar. Quem poderá chegar por um lado assim, do limite fechado, por onde ninguém jamais chega? O rosto imóvel de tão atento, os olhos concentrados num ponto distante, Armando mantém seu medo preso entre as mãos. Mas não sai do lugar?, lembra-se, e sorri aliviado porque de repente pode ser a nuvem de poeira de um redemoinho, uma vertigem que sobe para o céu. Talvez nem precise do Ademar com tanta urgência, mas a ordem está dada e é melhor mantê-la. A hesitação não infunde confiança.

Atravessa a sala em passo contente, para enxugar as mãos na toalha do banheiro e olhar-se no espelho, conferindo, mas apenas enxuga o medo das mãos sem consultar o espelho, pois teme descobrir no rosto as marcas de todos aqueles sustos que desde cedo vinha levando.

Armando quase volta para sua cadeira estofada atrás da escrivaninha, mas passava pela frente da janela e pára. Um homem vem atravessando o pátio com uma caixa de ferramentas que puxa seu ombro para baixo, seu ombro direito. É uma caixa metálica e não consegue impedir que o reflexo do sol aumente o brilho da manhã. No meio do pátio o homem muda de rumo como se mudasse de opinião, dirigindo-se para o prédio das moendas. Carrega uma caixa de ferramentas e uma boca silenciosa. Por fim, desaparece por trás dos tanques da destilaria e o pátio volta a ficar sozinho debaixo do sol. Armando olha aquilo com o corpo todo, principalmente com o peito, onde sente um peso de pesadelo. Sacode a cabeça várias vezes, seus olhos desfocando-se na paisagem.

Depois de passar as costas da mão na testa, os lábios quase fechados de secura, Armando finalmente vê o quadrilátero coberto de paralelepípedos polidos. Tudo limpo como se o ano fosse demorar ainda para ter seu início.

De repente vira-se e encara o interfone com um desejo assassino de espancá-lo. Aproxima-se da escrivaninha e pressiona o botão vermelho.

- Dona Iolanda!

A secretária não demora a responder, Pois não, doutor Armando, mas o mel de sua voz não adoça a irritação do chefe. Dona Iolanda, mandei que a senhora me convocasse o Ademar para minha sala, que providenciasse alguém para me baixar o toldo e alguma outra coisa que nem me lembro mais o que era. E então, dona Iolanda? Um instante de silêncio transparente e Armando se debate entre o gozo e o sofrimento adivinhando gotículas de suor a cobrir o buço da secretária. Ela tensa, encurralada. Doutor Armando, o Ademar, agora, percorre as entradas pra fiscalizar a segurança, como o senhor mandou. Me disse que já, já está aqui. Sim, mas e o toldo? Já pedi que alguém subisse da oficina, doutor Armando. Já deve estar chegando. E aquele Adão, que hora mesmo que a senhora marcou a entrevista com aquele baderneiro? Às onze, doutor Armando. Pois então liga pra esse sujeito e diga pra ele vir às dez. E avisa a Rita de Cássia que vou chegar atrasado. Ela que vá se virando com os convidados.

Vai desligar o interfone, mas uma idéia começa a circular em volta de sua cabeça. Mais uma coisa: quem é que está na engenharia? Deve ser o doutor Thiago. Hoje é dia dele. Pois veja quem é e mande subir até a minha sala. Com urgência, dona Iolanda. Já estou providenciando, doutor Armando.

Ao soltar o botão vermelho, Armando ocupa com o corpo todo sua cadeira imperial.
                                                     

*
Um tal muro é o que pode isolar no mundo um espaço exclusivo para seu império, território seu, o lado de dentro. Mas Armando examina com atenção um longo trecho do muro e seu coração volta a confranger-se aflito A idéia que circula em torno de sua cabeça finalmente se impõe, exigindo mudanças no projeto inicial. Não são umas tantas questões de custo que vão reduzir sua segurança. Gastaria toda sua fortuna para conservar o poder, que é o poder de conquistar a fortuna. Para isso é preciso construir a cada cinqüenta metros uma guarita com visão total dos dois lados: o de fora e o de dentro. A idéia completa proporciona-lhe uma satisfação de que precisa, neste momento, para manter sua paz, então o sorriso que ensaia repuxa sua boca para o lado esquerdo, um sorriso torto, e em seus olhos aparece um brilho de atávica selvageria, uma alegria de predador.

E esse Thiago, agora, onde anda escondido, que não aparece?

Nestas últimas duas semanas, Armando acabou conhecendo cada pedra do caminho entre a tensão e o relaxamento, mas conhecê-las tem sido de pouco proveito, pois continua tropeçando nelas toda vez que passa. Carrega os ombros e a nuca doloridos como se estivessem suportando um peso muito grande, e ele sabe bem de que resulta a dor, mas não tem como evitá-la. Respira fundo três vezes e solta os membros tentando relaxar. Precisa da imaginação para jogá-los por cima de uma nuvem leve e branca, mas a imaginação, arisca, foge pela janela e mergulha na claridade do sol, uma claridade agressivamente gloriosa.

Armando corre até a janela porque está desconfiado de que a nuvem vermelha mudou de lugar e, olhando de testa franzida e olhos apertados como filtros, ele descobre que, por cima da sebe de hibiscos, bem longe, além das primeiras quadras do canavial, algum veículo se aproxima levantando poeira. Dá um murro na soleira da janela e solta um palavrão que rola até o carpete como corpo morto, aquela impotência. De que adianta pagar salário astronômico para um chefe de segurança, se ele some e não atende a uma convocação? Olha por cima do ombro e encara rancoroso o interfone. Estará seu próprio funcionário, o Ademar, envolvido com os baderneiros?

Só depois de alguns segundos opacos, em que tudo se esconde atrás da claridade, é que Armando vê os paralelepípedos polidos ricocheteando o sol. Nunca os vira assim vagos, por baixo do céu, que não fosse entressafra, no ressono de máquinas e caminhões, no descanso da terra e de seus habitantes. A labareda sobe-lhe então do estômago para a garganta, e Armando lembra-se do médico e suas catástrofes apregoadas. Mesmo então, concentra-se todo no mundo lá fora, à espera de um homem que venha atravessando o pátio com uma caixa de ferramentas que puxe seu ombro para baixo, seu ombro direito. Nada se move, entretanto, como se o mundo fosse uma tela antiga, pintada por algum artista mal-humorado. Uma tela apenas em seu valor de exposição.

E esse Ademar, por onde será que anda?

Tudo aquilo, o mundo e seus desequilíbrios, a paisagem estática e dura, a demora no cumprimento de suas ordens, aquilo tudo invade os olhos de Armando, argueiro incômodo, então ele pisca muitas vezes, testa enrugada de aborrecimento. No lado esquerdo do pátio, acácias e fícus mantêm-se imóveis dentro de suas copas de sono morno por cima de uns poucos automóveis. Tanta calma é uma hostilidade que Armando não suporta. Bate a testa na vidraça e volta-se para o interior da sala, onde pode criar com as próprias mãos um tempo só para si.

O olhar de seu pai é sombrio, pendurado na parede acima de sua cadeira de alto espaldar. Talvez acusador. Tanto sacrifício, lutas intermináveis, para um dia ser apenas um olhar severo pendurado numa parede. Então Armando olha com pressa para fora, porque essa idéia começa a arder-lhe no estômago. O sol já se ajeita inteiro no carpete - um brilho.  

Ora viva, finalmente, exulta Armando, alguém por mim nesta terra. Acabava de ouvir o estalido seco do interfone e a voz de dona Iolanda, em cujos lábios rolam aquelas cinco sílabas doces como caramelos. Doutor Armando! Ele pára quase encantado e espera que ela repita o chamado para então atender. Ouve com paciência a história, mas no fim explode, Oh, não, dona Iolanda! Pelo amor de Deus. Mas que merda é isso?! O Ademar pensa que está brincando de mocinho. Que droga! Ligue pra ele e ordene que mande os meninos embora, mas sem violência. Ora, mas que merda, se incomodar com moleque chupando cana, dona Iolanda, como se não tivesse mais nada pra fazer! E diga a ele que compareça imediatamente à minha sala. Tem algum veículo se aproximando por dentro do canavial. Preciso saber do que se trata. Sim senhor, doutor Armando. Eu já disse a ele que viesse logo, mas vou repetir. E esse porra do Adão, dona Iolanda, vem ou não vem? Ele disse que vem, doutor Armando. Mas quando?! Prometeu que estaria aqui às dez horas. Pois então, dona Iolanda, já são dez e meia. Que merda, hein, nada funciona nesta droga! E o sol, a senhora não disse que mandava alguém abaixar o toldo, dona Iolanda? Desculpe, doutor Armando. Já liguei cinco vezes pro almoxarifado e eles disseram que alguém estava a caminho.

No banheiro, Armando abre a torneira e deixa escorrer o jato de água fria nas mãos, que leva algumas vezes ao rosto para enxugá-lo daquele pânico pegajoso e quente. Melhor não houvesse espelho na frente da pia, porque não gosta nada do rosto arruinado em que se descobre.

                                   
                                                                            *

Todos morando nas quatro colônias que envolvem a usina. É assim que Armando vê o futuro. Ninguém de fora, do exterior. Ninguém de olhos escondidos, de pensamentos cheios de fumaça, nenhuma seita exótica, incompreensível e perigosa. Para além das colinas mais próximas, ninguém mais trabalha no muro: ele, agora, ainda sem as guaritas, recorta do mundo um território que os braços de Armando podem abranger. Por isso ele se alonga, muito grande, e boceja cansado, como se fosse relaxar.

O sol, em silêncio, escala a escrivaninha e ali se instala, deitado e luminoso. Armando repele brusco tal contato e pressiona o botão vermelho do interfone. Grita duas, três vezes o nome da secretária, que finalmente responde, Pois não, doutor Armando. A senhora está demitida, dona Iolanda, sumariamente demitida por descumprimento do dever. Espera algum tempo a resposta, que não acontece. Dona Iolanda, com a voz menos áspera, a senhora está me ouvindo? Ela assoa o nariz antes de responder que sim, sim, que está ouvindo, mas que não tem culpa de nada. Tudo bem, mas não precisa chorar, agora. Esqueça o que eu disse.  
Armando enxuga o rosto com uma toalha de papel, mas o rosto continua úmido.

Que horas são, dona Iolanda? Quase refeita do susto, a secretária informa, Onze e cinco, doutor Armando. E aquele bosta do Adão, aquele canalha, não ia chegar às dez? Foi o que ele prometeu. Pois então anote aí, dona Iolanda: quero o Ademar imediatamente na minha sala; mande alguém baixar o toldo; preciso falar com o Thiago nos próximos cinco minutos; finalmente, veja o que aconteceu com este merda do Adão. Entendido? Ela responde timidamente, com medo de descumprir seu dever.

Para ir até a janela, é necessário fazer a difícil viagem que separa o interior do exterior, um lago de sol por onde Armando penetra sem se dar conta, totalmente concentrado na nuvem de poeira que se move por cima e para além dos hibiscos. Já não há mais dúvida de que se trata de um veículo, e o chefe da segurança ainda não foi encontrado.

O pátio, observa Armando, sempre vazio, parado, como um animal morto, uma coisa repugnante. Volta apressado para sua cadeira. Onze e cinco. A hora penetra-lhe pelas narinas misturada com o ar. Mesmo com a respiração precisa tomar cuidado. Poder dormir e só acordar quando tudo não passe de pesadelo antigo.

Ouve o estalido metálico do interfone e atende ansioso: Então, dona Iolanda, alguma coisa resolvida?

- Doutor Armando.

Ele espera alguns segundos, mas a secretária não continua. Fale, dona Iolanda.


- Doutor Armando, o Adão está do outro lado do muro e o portão não abre mais.

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