O conto a seguir está publicado no livro A coleira no pescoço, lançado pela Bertrand Brasil.
A coleira no pescoço
Nenhum dos dois conseguia disfarçar os danos da
velhice, que suportavam em silenciosas e mútuas acusações. O velho parecia
fazer um esforço muito grande para puxar o cão ladeira acima. A sola seca de
seus sapatos esfolava o ladrilho da calçada arrancando-lhe um ruído ríspido,
áspero, como de alguma coisa que se arrasta, e isso irritava o cão, cuja cabeça
se mantinha o tempo todo virada para fora, o focinho apontando para o lado da
rua. Seu corpo todo era uma recusa tensa e escura e ele tinha o olhar
aborrecido de quem não pode esperar mais nada da vida além daquela coleira no
pescoço, na ponta de uma corrente.
Uma língua de vento gelado passou rente ao chão,
levantando em revoada, vida efêmera,
folhas mortas de magnólia e de plátano, que se misturavam a outros
detritos da rua. Com seu grosso boné de lã na mão direita, o velho cobriu o
rosto e pensou que uma das maneiras de se morrer pode ser assim mesmo: sufocado
pelo cheiro da própria cabeça, um cheiro de suores noturnos e pesadelos.
A caminhada estava suspensa à espera de que o vento
fosse brincar em outras bandas da cidade, em alguma rua onde, a uma hora
daquelas da manhã, ninguém cumprisse o destino de caminhar. Enquanto isso, parado
sobre as pernas muito abertas, o velho suportava paciente as agulhadas da chuva de areia suspensa no ar.
O cão, de cabeça virada para a rua, permaneceu de
olhos fechados, espremendo muito as pálpebras em proteção, aborrecido com
aquele passeio cuja significação extraviara-se nos anos de sua juventude.
Sacudiu a cabeça, abanando suas orelhas dependuradas, frouxas, porque era esse
o modo de expressar sua recusa. Não olhava para a frente. Um rancor muito
antigo impedia que os dois se encarassem. Mesmo por trás, e sem a vigilância
daqueles dois olhos lacrimosos presos em suas órbitas avermelhadas, a figura do
velho causava-lhe repugnância. Por isso o pescoço torto, a cabeça virada para a
rua: o lado de fora.
A manhã passava sozinha, sem auxílio nenhum do sol,
que se mantinha escondido entre nuvens grossas e leitosas. O vento amainou e o
boné voltou para o alto da cabeça. Sem proferir uma só palavra, o velho andou
coisa de três passos. Outra vez aquele ruído áspero esfolando os ouvidos
sensíveis do cão. Preso à ponta da corrente esticada, ele apenas manteve o
equilíbrio: suas patas tentavam cravar as unhas no ladrilho do passeio, mas era
uma tentativa absurda. Moveu-se o suficiente para não cair. O cão sabia por
experiência que estava preso à ponta de uma corrente esticada. Muitas vezes a
vira, algumas vezes experimentara seus dentes nos elos de ferro. Há muito,
entretanto, tinha desistido da liberdade. Ultimamente intuíra a existência de
correntes menos visíveis e de elos sem forma definida, mas quase todas muito
mais rígidas do que os dentes de um cão. Parado na calçada, pernas trêmulas,
ele pressentiu a proximidade da magnólia. A idade não lhe extinguira o faro.
Havia, naquele tronco, imensa variedade de cheiros sobrepostos demarcando
inutilmente o sítio. Gesto atávico, há muito tempo destituído de qualquer
significado. Preso à corrente, nem essa ilusão de poderio lhe era concedida.
A rua subia a ladeira encolhida entre casas de
janelas fechadas e algumas árvores de folhas amarelas. Tosses e vozes mal chegavam
às venezianas: a cidade recusava o dia. Além do velho e do cão, arrastando-se
com dificuldade pela calçada, bem poucos transeuntes, de cabeça baixa,
enfrentavam o frio que ainda restava da noite longa.
Cada um tem que cumprir seu itinerário na vida, pensava
o velho com o braço esquerdo esticado para trás, puxando seu fardo. Há muito,
entretanto, desistira de olhar-se no espelho.
Mesmo sendo um fragor conhecido, repetido a cada
manhã, o cão encolheu-se um pouco, em proteção, quando o velho levou com a mão
direita o lenço ao nariz. As orelhas pretas e caídas não se moveram. Além do
susto já fraco, de tão cotidiano, suas patas malferidas na superfície áspera do
passeio deveriam ser debitadas também ao companheiro. O cão piscou seu
desconforto à passagem de um carro que desapareceu na primeira esquina, então
foi arrastado por mais três passos.
A dor no ombro esquerdo só poderia ter como causa a
teimosia daquele maldito cão, que nunca aceitava sem resistência as caminhadas
matinais. O médico dissera-lhe que era desgaste da idade, a dor nos joelhos.
Não havia razão para duvidar, mas o próprio desgaste teria sido menor se o
companheiro não fosse aquele peso a ser arrastado.
As pernas secas do velho, com seus joelhos gastos,
mediam o passeio menos de quarenta centímetros a cada vez em que se moviam.
Compasso hesitante, de articulações enferrujadas, que pouco se abria. Em sua
concentração, havia indícios de uma desconfiança antiga, principalmente quando
seus pés encontraram as arestas duras de alguns ladrilhos salientes, empurrados
para cima por raízes grossas que se escondiam debaixo da terra. Depois de
avançar meia dúzia de metros, o velho parou, suado, a mão direita espalmada
contra uma parede cinza, e então olhou para trás. A progressão existia,
realmente, ou não passava tudo de alguma ilusão? Atrás ou na frente, o que via não eram pontos
a compor um ponto maior, o todo estático? Sempre aquelas dúvidas a
importuná-lo. O cão, pelo menos, o cão estava lá, no fim da corrente, com a
cauda escondida entre as pernas retesadas e trêmulas, mergulhado em seu peso e
seu pretume. Ir até o cão, seria cobrir uma distância. Esse foi um pensamento
indesejado, pois jamais faria isso, mas que lhe concedeu a paz de que tinha
necessidade.
Nos últimos tempos chegaram a passar dias, semanas,
às vezes, sem a troca do menor gesto que os ligasse. E isso foi acontecendo aos
poucos, sem que percebessem. O latido rouco do cão já não tinha qualquer
significado, e o ruído desnecessário exasperava o velho, que detinha o poder do castigo. Então
espancava o companheiro, sem dó, para depois ralhar com ele, exigindo que
ficasse quieto. O cão se encolhia todo e soltava uma espécie de gemido agudo
pela boca fechada. Modelavam-se os dois, um pelas rabugices do outro. Por fim,
aprenderam a engolir o próprio rancor em silêncio.
Quando o Sol por fim se mostrou entre galhos e
platibandas, o velho e seu cão já haviam dobrado a mesma esquina por onde o
carro tinha sumido. Primeiro sumiu o velho com sua altura ameaçada de desabar,
depois foi a vez do cão, com a cabeça virada para trás. Os dois, acorrentados
um ao outro, cumprindo uma interminável caminhada.
*
Identifico-me com essa personagem dupla, uma atrelada à outra, a remoer o envelhecimento concomitante.
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