Conto inédito
Quatro anos depois

Por sorte meus passos são silenciosos, e isso me evitava o
cuidado com a possibilidade de acordar alguém, de sorte que pude caminhar
tranquilo, olhando os nomes gravados nas lápides, alguns conhecidos, que me
faziam lembrar fatos de minha vida. Uns tantos túmulos me encheram de inveja,
pelo zelo dos familiares: isso era respeito à memória de seus mortos. Outros,
não. Percebi, no desleixo em que estavam mergulhados, o alívio com a partida do
ente querido. Seu olvido.
Minha silenciosa viagem trouxe-me inúmeras recordações:
amigos que haviam partido antes de mim, e as aventuras que compartilhamos; um
professor, morto em idade avançada, que declarava com toda a honestidade não
gostar de mim; um vizinho com quem tive de brigar por causa do volume excessivo
de seu aparelho de som. Coisas da vida, pensei, ninguém se livra delas.
Enquanto caminhava, parando, olhando e lembrando, por
aqueles longos corredores, não me dava conta de que tudo era feito para
retardar a chegada a meu túmulo. Postergava o momento. Eu queria vê-lo e ao mesmo
tempo tinha medo do que veria.
O lugar em que me enterraram fica em um dos extremos mais
retirados do cemitério. E é incrível que o tenham conseguido, pois suicidas não
podem jazer (quase disse “conviver”) na companhia daqueles que tiveram morte
cristã. E o único cemitério da cidade é este onde estou sepultado, o cemitério
da Igreja. Não sei quais foram os argumentos utilizados, as mentiras piedosas
com que convenceram o padre de que meu corpo não poderia viajar até a cidade
mais próxima em que houvesse um campo santo administrado pela prefeitura.
Só a desesperança em sua dimensão absoluta, ia pensando,
pode explicar o desejo do fim. Pois foi o meu caso. Elevei o amor por minha
mulher à condição de supremo bem, a única razão por que continuar a vida. E isso
ela ouviu em confissão que lhe fiz uma noite antes de apagar a luz. Mas ela,
assombrada, apenas me encarou por alguns segundos, sem nada dizer. A madrugada,
entrando pela janela, me entrou pelos olhos abertos. Naquela noite percebi que
meu amor não encontrava em Fricka a ressonância necessária para que a vida se
justificasse. Para mim, que a amei com cada uma de minhas células e com uma
intensidade que me deixava no limiar da loucura, tornou-se insuportável a
convicção de que havia algum segredo em sua vida impedindo-a de me amar.
Só me faltava a certeza, e de minha mulher, de sua boca,
jamais conseguiria as palavras que me apaziguassem. Por isso passei a observar
os detalhes de seu comportamento. Nada me escapava: seus olhares, os gestos,
seus passos, os afagos que me dispensava. Vasculhei seu passado, quis conhecer
seus colegas de escola, passava noites imaginando traições. Então achei que
seus olhos se evadiam de mim, suas mãos, muitas vezes úmidas e frias, outras
vezes quentes e secas no afago que me parecia cada vez mais distraído. Ou
urgente.
Com a passagem dos meses, a observação atenta me cansou. E o
cansaço me deu a certeza de que precisava.
E foi assim que fui parar logo ali, a vinte passos, à sombra
daquelas árvores.
Por fim, me vi em frente a um túmulo em cuja lápide meu nome
se destacava. Com minhas datas e uma foto oval em que identifiquei meu rosto
antigo. Um olhar triste tinha sido captado pela máquina em uma das últimas
fotos que me tiraram. Uns olhos que naquela época já conduziam a uma alma que
se arrastava de angústia. Era o sentimento da solidão, do amor sem ressonância.
Me aproximei o suficiente para ver que o lugar onde jazia
meu corpo era talvez o mais bem cuidado de todo aquele cemitério. Mármore e
granito, vasos com flores artificiais, como eram permitidos, palavras em alto
relevo folheadas a ouro, objetos de bronze brunido. Tudo perfeito, impecável,
exatamente como eu havia imaginado não estar.
Sentado no ombro da sepultura, gastei as horas de que não
tinha mais necessidade. Eu queria entender. Era preciso que entendesse. Não sei se dormi. Minha noção de tempo anda
bastante prejudicada. Mas foi grande o susto quando, sol alto, aproximou-se um
vulto totalmente envolto em roupas pretas. Só quando o susto tornou-se surpresa
foi que identifiquei Fricka debaixo daqueles panos escuros. Mais magra, mais
pálida. Cheguei a me levantar num princípio idiota de fuga: ela não poderia me
ver.
Minha viúva lavou as pedras, arrumou a posição das flores
nos vasos, bruniu as peças de bronze, então se ajoelhou suspirando ao lado da
campa e assim permaneceu por algum tempo. Por fim, levantou-se, enxugou uma
lágrima e despediu-se, Até amanhã, meu infeliz amado.
Então me afastei rapidamente, uma seta envenenada
atravessada em meu pensamento: Que horror é a eternidade.
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