Conto publicado no livro A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil.
Toda uma noite: o prêmio
Entra meio empurrado para o quarto e senta-se com a beirada do corpo
sobre seu cansaço na cama estreita. Um peso. O mundo ali, com todos aqueles
disfarces, quase impossível arrastar-se por inteiro até o centro do cenário.
Sentado fundo, à espera, primeiro aquela mão de Humberto, ainda um pouco
estúpida, explorando o edredom: tecitura e dobras, seu relevo. Os olhos, então,
já menos assustados, percebem as grandes flores da cortina e o nicho com a vela
acesa sobre a penteadeira. Um recorte de revista enfeita a porta do roupeiro.
Tudo simples entrando por seus olhos já menos assustados. Está então a ponto de
sentir-se em profundo bem-estar. A mulher que lhe destinaram, arrumando-se no
banheiro, cerimoniosa, deferente. Ele sentado, sem medo de cair, só esperando.
Não há o que temer. As narinas, entretanto, as narinas recém-chegadas e
sensíveis, mas inexperientes, querem saber de que espécie e origem aquele
cheiro meio morno insosso, um tanto orgânico, como de vida que não chegou a
vingar. Um cheiro que está grudado nas paredes, que parece subir das entranhas
da cama. Sua intuição lhe diz que é o próprio cheiro do tempo e isso volta a inquietá-lo.
Com a porta fechada, agora, mal se ouvem as pancadas mais fortes da
bateria, que ainda há pouco, no salão, ameaçavam ensurdecê-lo sem motivo
aparente. Tudo que vem de fora chega de maneira abafada, mesmo as lembranças
mais recentes. Apesar de assim protegido, começa a se incomodar com o suor que
lhe poreja no buço e na testa, um desconforto.
Depois de o instalar sentado na cama, a Ruiva, a mulher que lhe
destinaram, saiu dizendo que demorava um instantinho só. Fosse tirando a roupa
e se arrumando, enquanto isso. E bateu atrás de si a porta que dava para o
corredor por onde haviam chegado eles dois, e por onde vinham a música e as
gargalhadas do salão. Era preciso dizer-lhe que se tratava de sua primeira vez,
mas ela parecia ter pressa.
Vira a cabeça para a esquerda e se vê com surpresa congelado no espelho
da penteadeira. Mais pálido que de costume, os olhos redondos e sem outra
expressão que não seja o pavor mudo e infantil que já não percebe por ser
expressão que o acompanha todos os dias da semana. Seu cão farejava qualquer
coisa entre os trilhos do bonde. Humberto, na calçada, viu chegar a distância
um bonde imenso e veloz. E o bonde se aproximava barulhento, mas seu cão estava
distraído com aquilo que acabava de descobrir entre os trilhos. Talvez pudesse
correr e salvá-lo. Talvez pudesse gritar e chamá-lo. A visão antecipada da
tragédia, entretanto, imobilizava-o. O último ganido foi abafado pelo barulho
das pesadas rodas sobre os trilhos. E ela saiu sem lhe perguntar se era sua
primeira vez, sem falar de sua paciência com principiantes, mesmo quando já
muito além da idade apropriada. No espelho, por cima de sua cabeça, o brilho
meio desmaiado da arandela, aquela mancha na parede. Em seu rosto mais pálido
que de costume, separando a testa das faces, uns olhos redondos e sem
expressão.
O tempo, ali dentro, é líquido espesso, denso, lento. Lento como o
espelho, como a cortina imóvel. Um instantinho só. Que demorava um instantinho
só.
A mão direita volta a pesquisar a superfície do edredom, agora
acompanhada pelo olhar fatigado, em fuga do espelho. Eram flores vermelhas e
amarelas em fundo verde. Lírios e rosas, provavelmente. As mesmas flores da
cortina, verdes e amarelas em fundo vermelho. Seus olhos, esquecidos do rosto
pálido preso no espelho, distraem-se a subir e descer, do edredom para a cortina,
descobrindo simetrias. Poderia imaginar um jardim, além da janela, com tuias,
moitas de arecas, caramanchões e pérgulas, aléias de saibro, delgados
ciprestes. Poderia. Mas, além de não ter o hábito do devaneio, está mergulhado
em seu próprio corpo, um corpo prestes a florescer e ele não sabe o que deve
fazer. Por onde começar? É muito comum que o sucesso resulte da primeira
atitude. Tal idéia, entretanto, fica a meio caminho de sua formulação. Enquanto
espera, quase imóvel sentado sobre seu peso, não passa de uma sensação, de uma
sensação até um pouco desagradável, espremida entre a língua e o palato, aquela
náusea que sobe do vácuo aberto em seu estômago. Seu vazio.
O silêncio da vitrola não chega a cair em sua consciência: uma alteração.
O silêncio. Talvez uma falta, sensação difusa de uma ausência. Apenas isso.
Quando ouve passos no corredor, entretanto, passos que se aproximam,
crescendo, fica imóvel, o olhar
mergulhado no espelho, tenso engatilhado, o corpo todo dorido porque usado
inteiro na escuta.
Ouve vozes, mas não distingue as palavras. Suspende a respiração. O suor
volta a porejar no buço e na testa e agora também nas palmas das mãos. Estão
muito próximos. Vira-se então para a porta, os olhos fixos na maçaneta. Todo
ele fixo, parado. Os passos se afastam, carregando as vozes de palavras indistintas.
Distende os músculos, volta a respirar sem medo. Não, ainda não era a
Ruiva. Um bocejo devolve-lhe a paz dos membros. Um bocejo muito aberto, amplo
mesmo, quase uma entrega. Sente calor e tira o paletó, pendurando-o no espaldar
da cadeira de palhinha. Repete o bocejo como se preparasse um conforto, por
isso alonga os braços e joga o tronco para trás, na cama onde está sentado,
quase esquecido de que era apenas por um momentinho.
Não tivera como recusar. Uma bobagem, aquilo de rifa. Não acreditava. E o
prêmio esdrúxulo: aquela noitada. Por vontade própria não jogava dinheiro fora.
Mas a pressão dos colegas era circular e não deixava ninguém de fora. Até o
gerente, eles diziam. Até o gerente. Então dera o dinheiro mas recusara-se a
escolher um número. Uma bobagem, isso. Não acredito. Depois a festa, as
brincadeiras, aquela tontura da cerveja e o medo de acabarem descobrindo que
era sua primeira vez.
Me paga uma cerveja, a voz da Ruiva borrada de rímel. E a bateria no
aparelho de som como se quisesse ensurdecê-lo. Buscou socorro nos colegas,
qualquer orientação - se aquilo fazia parte do acordo. Eles rodavam pelo salão
dançando, muito ocupados. Ergueu as sobrancelhas, o queixo apontado para a
Ruiva, como é que é? E ela repetiu o pedido gritando em seu ouvido, impossível
continuar fingindo que não ouvira. E os dois rodando no meio do salão, uma
cerveja?, e eles não olhavam e o garçom já vinha trazendo uma garrafa de
cerveja e a Ruiva pegara em seu queixo agradecida. Não dava mais para recusar.
Sente o suor brotando de seu corpo e não se mexe, como se na imobilidade
encontrasse uma solução. O teto oscila suave: um embalo. Fecha os olhos e o
mundo aderna. Precisa abri-los novamente para saber que não está caindo. Boceja
ruidosamente antes de se apagar inteiro.
É um círculo muito grande de homens, alguns deles com gravatas tremulando
ao vento. Eles batem palmas e batem os pés na grama, sorrindo e cantando alguma
coisa que não se pode saber o que é. Os mais altos são também os mais
barulhentos. Os rostos risonhos e agressivos transformam-se em focinhos de cães
sem pararem de cantar. Humberto tenta escapar, mas o círculo é muito fechado e,
à medida em que o ritmo das palmas se intensifica, mais estreito vai ficando o
círculo. Até que sente os focinhos roçando em seu rosto, como um barulho áspero
e acorda apavorado, erguendo bruscamente o corpo. A porta está aberta e a Ruiva
despede-se de alguém que segue pelo corredor.
A porta fechada, ela se aproxima por trás do sorriso carmim, com olheiras
cansadas e roxas, e quer saber. Como, ainda vestido? Humberto, intimidado por
sua presença e sua voz tão desconhecida, mas indeciso entre a raiva pela espera
tamanha e o alívio com seu fim, ergue os ombros e consegue arrancar do peito
alguma coisa como sabe, é minha primeira vez. A Ruiva assume ares maternais,
com os lábios em bico de beijo e, estralando a língua, começa a abrir a camisa
de Humberto, diligente e lenta, enquanto diz palavras carinhosas com meloso
jeito infantil. Importância nenhuma, isso, de primeira vez: amor sem
treinamento.
Humberto se entrega, tenso, primeiro, depois, e aos poucos, sentindo-se
relaxar e, finalmente, com um tesão que o imobiliza, como se a vida toda
estivesse concentrada ali, em seu inábil aparelho reprodutor. Fecha os olhos
pudicos quando sente a cueca escorregando pernas a baixo, uma vertigem. Nunca
sentira um rosto de mulher assim tão próximo que pudesse respirar seu hálito,
nem fora jamais tocado por mãos assim femininas, feitas de um tecido macio como
pedaços de um sonho colorido. Ao primeiro toque dos lábios em seu pênis
enristado, ejacula pensando que finalmente conhece as fímbrias da morte, sua
dor e seu gozo: um desmaio. Seu coração está entregue, inteiro e virgem, às
mãos astutas da Ruiva.
Depois de um curto repouso e algumas carícias, Humberto está novamente
pronto para o desempenho masculino, que se agrava agora com a visão do corpo
inteiramente nu da mulher. Meu Deus, ele pensa cheio de remorsos pelo fato de
ter esperado tanto por sua primeira vez. E joga-se desajeitado por cima da
Ruiva, que acaba de se deitar. Cheia de paciência, ela o guia por caminhos
desconhecidos, e ele deixa-se guiar sem resistência.
Quando está para morrer pela segunda vez, movido então pelos urros em que
a Ruiva se desmancha, abre-se a porta com violência e o quarto se vê invadido
por um cordão carnavalesco recém-formado no salão. Suas gargalhadas abafam os
gemidos da Ruiva, que, entretanto, parece indiferente àquelas presenças
hediondas. Humberto, acuado, tenta cair de cima da Ruiva para enrolar-se no edredom verde com flores
vermelhas e amarelas. Todos cantam e gargalham, dançando sem parar, porque não podem conter tanta
alegria. Tenta, mas com as pernas trançadas em seu dorso ela o retém. Não,
ainda não, que acabaram de abrir-se as janelas do paraíso.
Os foliões retiram-se em silêncio respeitoso ao perceberem a consumação.
Estirados sobre a cama, transformados em dois corpos que se conhecem, o homem e
a mulher ressonam, exaustos, sonhando o
mesmo sonho.
Quando o sol atravessa a cortina vermelha de flores verdes e amarelas,
anunciando o dia com suas claridades, Humberto veste-se triste como quem tem de
partir. Na porta, à sua espera, entretanto, encontra a Ruiva com sua reduzida
mala na mão.
*
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