Conto do livro À sombra do cipreste, vencedor do Prêmio Jabuti 2.000. A edição atual é da Global Editora.
O relógio de pêndulo

Cumprimenta-me como se não me visse, como se o vulto parado
à sua frente, na porta, fosse um objeto fora de lugar, jornal velho esquecido
sobre uma cadeira. Seus olhos devassam ansiosos cada um dos desvãos da sala,
procurando uma face, uma sombra, qualquer ângulo que lhe devolva o passado
perdido, que lhe dê a certeza de haver
chegado ao termo de sua viagem. Apesar da aba do chapéu, que lhe ensombrece o
rosto, percebo logo os sulcos profundos gravados em sua testa pelas léguas de
estrada: é Abelardo, meu irmão mais velho, só pode ser ele, o mito familiar.
Seus lábios finos e ressecados, por fim, abrem-se num quase sorriso: pendurado
na parede desbotada, ele acaba de descobrir, marcando o tempo, o velho relógio
de pêndulo, que, daquele mesmo lugar, outrora, costumava interromper,
rabugento, sua participação nos serões da família.
Ao responder que sim, aqui mesmo a casa de seu pai, onde
ele nasceu, sinto uma alegria tão grande que meu desejo é o de apertar nos
braços o herói desconhecido, mas nada faço além de balbuciar que entre, a casa
é sua, porque ele me intimida. Muito mais pelas histórias que nos contavam na
infância e que povoaram o território todo de minha imaginação do que pela
figura frágil que se verga para apanhar a mala e onde me parece inverossímil
caberem tantas aventuras.
No percurso entre a sala e a cozinha, Abelardo me segue em
silêncio, misturando-se a tantas outras sombras de antepassados com que me
habituei, nestes últimos anos, a conviver. Inconformado ainda com a
desproporção entre conteúdo e forma, olho para trás, conferindo, e noto que meu
irmão examina com ansiedade as portas fechadas ao longo do corredor. Uma delas
foi a sua, sem dúvida, a porta sob cuja proteção, na infância, construía os
detalhes de suas viagens. O que escondem agora?, parece perguntar, e eu me viro
bruscamente, temendo que ele me faça a pergunta.
Na cozinha, Abelardo larga a mala ao lado de uma cadeira e,
como eu não digo nada, ele senta-se. É uma dessas malas pequenas, de papelão
escuro e cantoneiras metálicas, modelo antigo que não se usa mais, e que,
apesar do tamanho, parece cansá-lo muito. Ele olha o teto, as paredes, os
móveis em redor, então volta a cabeça para a porta com aquela mesma ansiedade
que eu já percebi antes. Fome?, pergunto, e ele, sacudindo a cabeça, confirma
que sim, com fome. Também, emendo com fingida distração, a distância de que
você veio! E Abelardo, sem notar minha tentativa, limita-se a grunhir: é, é.
Ninguém sabia de onde nem como chegava a notícia, mas todos
ficavam alvoroçados. O regresso de Abelardo, que eu não conhecia senão pelas
histórias que nos contavam, ajudaria nosso pai a levantar a hipoteca da casa,
reconciliaria Abigail com o marido, mostraria a certos vizinhos quem é que não
é homem aqui nesta rua, e até a paralisia do Beto poderia ser convenientemente
tratada em hospital de fora. Por isso a faxina geral na casa, aquelas roupas
novas ou reformadas, todos os preparativos. Minha mãe pedia livros de receitas
às amigas e passava horas, à noite, a copiar as que julgava serem as melhores.
Ele chegou sem mandar aviso e eu não tenho, para oferecer, nada além de umas
batatas cozidas com guisado e uma escumadeira de arroz: o que sobrou do jantar.
Começo a mexer nas panelas quando meu irmão pergunta: O pai e a mãe? Surpreso
pelo absurdo da pergunta, fito-o sem resposta por alguns instantes. A mesma
testa estreita de meu pai, seu queixo pontudo, os mesmos olhos gateados. Não
existem mais há muito tempo. Com minha resposta, ele parece encolher um pouco,
pequeno demais para a blusa de couro surrada. Seus olhos, todavia, brilham ao
me atingirem. E como foi, como aconteceu isso? Não lhe dou resposta porque
estou ocupado na preparação de seu jantar. Ele insiste na pergunta e eu mexo a
batata com uma colher de pau. Do passado, apenas as promessas não me machucam.
Servido seu prato, Abelardo concentra-se na comida, que
mastiga meticuloso, lentamente. Da outra extremidade da mesa, observo a cena,
dissimulado, até que o silêncio me exaspere. Você é que deve ter comido por
este mundo a fora coisas que a gente aqui nem pode imaginar! Ele continua
mastigando, mas agora me olha duro, o que me causa um certo mal-estar. Por fim,
lacônico, ele responde que pode ser. Espero em vão que ele alongue o assunto, porém permanece
mudo até esvaziar o prato. E a Abigail?, pergunta então, seus olhos tristes
sacudindo-me pelos ombros. Também. E me escondo atrás da urgência em lhe passar
um café.
Em lugar nenhum do mundo se toma um café como o daqui, diz
ele entre dois goles, e eu me animo, lisonjeado, preparando-me para ouvir o
relato de suas peripécias. Afetando modéstia, apresso-me a responder que ora,
decerto nem é tanto assim. Abelardo, entretanto, já está novamente viajando,
não sei se pelos confins do mundo ou de sua infância. Para tê-lo de volta outra
vez, ofereço-lhe mais café, ele, porém, esquiva-se de minha cilada com um gesto
simples da mão direita.
O relógio de pêndulo, da sala, atravessa a casa com duas
badaladas, e pergunto a meu irmão se não quer descansar um pouco, os quartos
como antigamente. Ele diz que não, que não vale a pena, apesar das marcas que o
sono vai deixando em seu rosto.
O relógio da matriz confirma as horas, como sempre com uns
dois minutos de atraso. Nada vejo no pulso de Abelardo, não sei se para ele faz
alguma diferença a passagem do tempo.
Sinto frio nos pés e nas mãos. A esta hora, em qualquer
época do ano, sinto frio nos pés e nas mãos. Tomo um pouco de café na esperança
de me aquecer, mas sem resultado, porque esqueci a garrafa aberta e o café está
apenas morno. Faz algum tempo que Abelardo ressona com a cabeça apoiada nos
braços. Acho que uma pessoa assim, como ele, não sente frio. Suas mãos não são
muito grandes, como deveriam ser as mãos dos heróis, apesar disso parecem muito
fortes, por causa da pele tisnada coberta de grossos pêlos. Não, não deve
sentir frio. As pessoas que sentem frio não viajam com malas tão pequenas.
Poderia requentar este café, se tivesse alguma disposição para me levantar. Não
me levanto e tento distrair-me contando os estalidos que os pés descalços da
noite produzem nas tábuas do forro.
Acordo assustado: Abelardo me sacode a cabeça. E os
outros?, ele me pergunta sem disfarçar a raiva.
- Ninguém mais, além de nós dois.
Quando a manhã, azulada de orvalho, vem bater à janela da
cozinha, ainda sinto o cheiro forte de estrada que ficou na cadeira vazia.
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