
Não sou canibal
Quando eu chamei, ela não veio, como costumava na hora da
ração. Esperei até o sol desaparecer, escondido nas trevas da noite. Os demais
foram chegando, passo lento, mugindo uns para os outros, sua vizinhança, mas
minha vaquinha, aquela de estimação, aquela não veio. Ainda pensei em sair à
procura dela pelo campo, mesmo na escuridão, ideia que minha mulher, esta aí,
me tirou da cabeça com palavras de ferir meus sentimentos. Foi difícil embarcar
na canoa do sono: ela balançava muito. Decerto cochilei alguma coisa, mas tão
pouco que de manhã eu saí da cama dizendo ter passado a noite em claro.
O café me queimou a língua apressada, e saí para o campo
mastigando ainda um pedaço de pão. Na mangueira, a Mimosa, com suas malhas
pretas e marrons não estava. A trote
atropelado atravessamos o campo até o capão sem nada ver. As moitas sem
estatura para esconder um animal, mesmo que fosse minha vaquinha, não
atrapalhavam nossa busca. Beiramos a cerca, no seu correr, e fomos sair do
outro lado, o resto de pasto mais verde, de terra úmida. Então já podíamos
pensar que nos encontrávamos nas lonjuras, lugar pouco frequentado por estes
meus semoventes, que por aqui ficaram. Eu gritava o nome da Mimosa e ficava de
ouvido esperto esperando resposta. Mugido nenhum.
E eu, que não sou de acreditar em pressentimento, comecei a
palpitar algum dano, pois não faz muitos anos que andou aqui pelo distrito um
caminhão que deixou rombos em muita cerca. Reses e cavalos andaram sumindo.
Contornamos o capão e enveredamos pelo carreiro que vai dar
no alto da colina, um lugar de capim ralo, que não podia contar com a
preferência destes seres pasteiros, mas de onde nossa visão abrangia os
recônditos do espaço. A passo pausado, no aclive, o peso do corpo, chegamos ao
alto, de onde. De pé no estribo, mirei com meus olhos toda extensão. E vi.
No início, o que divisei, foi apenas a mancha diferente no
fosso. E uma vaga de suor me inundou quando me pareceu ter notado algum
movimento. A mancha que eu via misturava preto e marrom. Da distância.
A descida, apesar da pressa, foi ainda mais lenta, o cavalo
quase sentado no chão. O sol já estava no ponto de quente, mas não me
incomodava o sol. Eu só olhava querendo duvidar.
Chegamos, finalmente, ao início da várzea, e o rebenque fez
o cavalo galopar. Não era muito grande a distância a percorrer aquela malha de
campo seu capim verde mas lagoas e valetas um tanto delas havia lagoas e
valetas das quais era preciso que a gente se desviasse por isso mantive os
calcanhares cutucando as ilhargas do animal cutucando rápido até ele demonstrar
muito boa vontade para com minha urgência.
Antes que o atropelo do galope terminasse, solavanco brusco,
eu já estava no chão correndo. Era mesmo a Mimosa, de pernas para cima,umas
pernas, sem poder se aprumar. Pulei dentro do valo e corri até sua cabeça, onde
uns olhos grandes, lacrimejantes, me pediam socorro. Há quanto tempo ali presa,
entalada nos barrancos? Três corvos com suas roupas de luto circulavam no azul,
à espera, espertos, contando as horas.
E aquela posição?, uma coisa errada seu corpo dobrado como
estava: paleta e anca perto demais, em proximidade. Suei novamente, o suor do
medo. Foi quando voltei para o cavalo e galopamos endoidecidos, a Mimosa nos
meus olhos, grudada. O vento vindo veloz penetrava nas minhas ideias, e aquela
mais renitia era Quem me ajuda?, porque em casa, o que eu tinha, e tenho, é uma
mulher e as duas crianças, sem traquejo de lidar com animal. Passei pelo
terreiro no mesmo galope que vinha e me atirei pra casa do vizinho, que decerto
àquela hora ainda não tinha saído de casa.
O Juvenal, que encontrei na porta da cozinha lá dele,
entendeu minha história assim como minha pressa e não levou mais do que meio
minuto para estar montado no seu baio a meu lado, correndo de volta.
Na beira do fosso, pulamos de cima dos cavalos, e o Juvenal
gritava Ehê! Ehê! como se quisesse dizer tudo que passava por seu pensamento.
Chegamos juntos ao lado da Mimosa, que pareceu espantada, por isso ela
esperneou um pouco e me pareceu que por fim se acalmava. Meu vizinho levou a
mão por baixo, apalpando em investigação. Depois me olhou triste. E sacudiu a
cabeça.
O espinhaço, ele disse, jeito nenhum que se dê.
Pulei pra cima do barranco e me virei de costas, mas os
ouvidos perceberam o mugido rouco, vindo do peito, baixo e grave, e o ar puxado
pelas ventas fez ruído que até os cavalos se excitaram, com nervos. Eles sabem
de tudo.
Os olhos vidrados da Mimosa, posso esquecer? Com os dois
cavalos e as cordas conseguimos puxar minha vaquinha para cima do barranco. Ela
quis pular, dizia o Juvenal, uma coisa que eu já tinha percebido. O pasto mais
viçoso do outro lado. Mas não alcançou o barranco do lado de lá. Ainda tivemos
de ajudar empurrando por trás.
Ele, meu vizinho, desabalou com seu baio, para as vasilhas e
ferramentas, enquanto fiquei ali sozinho, tirando o couro sem segurar o choro.
Ela ainda quente perdendo sua cobertura preta e marrom. Como um cobertor.
Quando ele voltou com mais gente e vasilhame, a Mimosa já estava
fora de seu couro.
E eu que tinha botado toda minha esperança nesta vaquinha,
boa parideira, bezerros que ia criando, nos tempos, me arrumando com a família,
os rendimentos crescentes. E ela parecia entender meu pensamento, amiga do
jeito que se pôs. Agora, o que é que eu tinha? Bastante carne, e outros
apetrechos necessários a um vivente: os de dentro.
O Sol já estava a ponto de sumir quando veio a carroça e
carregou com tudo para cima, aqui em casa. Tudo salgado, retalhado, repartido
nas caixas, bacias e gamelas. Era muita carne, além dos miúdos e outras partes.
Quem inventou o churrasco, como se vê, foi minha mulher,
esta daí, achando difícil guardar sozinha tantos quilos: os espaços.
Alguns devem estar estranhando as lágrimas, que eu não posso
esconder. Eles comem com bom apetite, mas pra mim isso é impossível. Seria como
me botar a mastigar alguém da família: não sou canibal.
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