sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

CONTOS CORRENTES

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Edmar Monteiro Filho

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)  (Instituição sede da última proposta de pesquisa)


Possui graduação Ciências Biológicas Modalidade Médica pela Universidade Federal de São Paulo (1980) e graduação em História pela Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (2008), com especialização em História Cultural pela mesma instituição de ensino (2010). É mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de São Paulo - UNICAMP (2013). Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária também pela UNICAMP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura, conto, oficina literária, construção do conhecimento e Graciliano Ramos. (Fonte: Currículo Lattes)

Edmar Monteiro Filho escreve e publica desde 1980. Formado em Ciências Biomédicas e História, recebeu os prêmios literários Guimarães Rosa, da Rádio França Internacional, Cruz e Souza, Cidade de Belo Horizonte e Luiz Vilela, todos na categoria contos. Publicou os livros de poesia A Lápis e Halma Húmida, as coletâneas de contos Aquários, Às Vésperas do Incêndio e Que Fim Levou Rick Jones?, a novela Azande e o romance Fita Azul, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, edição 2012, na categoria livro do ano de autor estreante. Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP e reside em Amparo SP.

Conto de hoje:

EM SILÊNCIO


A convivência, como a moita de "unhas de gato" que galgava o muro entre o terreiro e a casa. Arrancar os galhos teimosos e deparar-se com as marcas deixadas no seu trajeto, os sinais agarrados na tinta velha, nos tijolos: resistências. Assim como conviver, quando os traços de um se mudam ao toque de Midas de outro, para o brilho do ouro ou para a matéria escura da indiferença. Para as mães e seus filhos, a vantagem de haver partilhado as entranhas, como unhas de gato arranhando o útero.

            Nada de extraordinário em ouvir os gritos mudos de alguém na distância, mesmo distraída pelo desconforto da água gelada, endurecendo as mãos na pia da cozinha, enquanto planejando o sacrifício de uma ave para o almoço. Brusco como um susto, um cutucão ferrão nas têmporas. Fechar a torneira, tirar o avental e conferir mentalmente o paradeiro do marido, dos dois filhos, da velha na varanda, balançando-se ao sol em sua cadeira, zangando com o cão, descartada.

            O menino mais novo, o mudo, cambaleando pelo caminho cercado de geada, vindo dos estábulos. Aflição localizada mesmo ali da janela: duas mãos tapando o rosto, errando o rumo encharcado de sangue na blusa de lã clara suja o ferrão mais fundo. Serena de pronto, o mesmo gelo da manhã, seu socorro. Com a pressa possível, atravessou o terreiro e foi de encontro ao menino que reconheceu o abraço não correspondido, as mãos pregadas, empapadas, o cheiro no ar fino.

            Para dentro de casa, evitando a atenção desarrumada da avó, mas não do cão, preocupado. Tinha que ver, de medo, todo o medo em saber parado na boca do estômago e as mãos crispadas. Enfim, uma. Resto do nariz torto, esmagado, a testa deformada; no lugar de um olho, um resto de pálpebra, oco escuro. Sob a outra mão afastada, o olho inchado e rubro. O menino, tremendo, tombando de joelhos numa pavorosa súplica. A mãe, prática, depressa as chaves da perua, muda também. De dor.

            Já a caminho, breve parada junto à cerca que o filho mais velho consertava.

            - Estou indo para o hospital, levar seu irmão que tomou um coice da China. Corre avisar seu pai, diz para ele ir depressa. Sua avó está sozinha, volta e fica com ela.

O pescoço esticado para o banco traseiro, sem tempo, que a perua partia.        

            Só duas horas depois, o pai, que nada sentira, suas unhas de gato secas de sol.

            - O moleque só me achou agora.

            O corredor frio, cheirando a antisséptico. Botinas de terra e "o senhor não pode entrar desse jeito, que isto aqui é hospital", as mãos sujas, limpar no lenço.

            - Como é?

            - No rosto. Perdeu uma vista. Vão tentar salvar a outra.

            - Tentar?

            A mulher-Midas, muda como o filho.

            - Quem é o médico?

            - Rodrigo. O que cuidou da minha mãe.

            - Quanto tempo?

            - Vai demorar, estão operando.

            O telefone falou alto na sala da fazenda. O menino atravessou o mar de tábuas ruidosas.

            - Alô.

            - Vai até o escritório. Em cima da estante velha tem a garrucha. Toma cuidado, carrega e deixa no jeito.

            - Pai? O que aconteceu? E o Ju?

            - Seu irmão perdeu uma vista e está operando a outra. Depois eu ligo de novo.

            - O que eu vou fazer com a garrucha?

            - Espera. Eu vou ligar de novo. Acho que você vai ter que fazer uma coisa. Pelo seu irmão, por nós todos.

            Silêncio.

            Medo. Cuidado para não despertar qualquer coisa que vivia sob as tábuas. Por isso a recomendação de não correr na sala e os passos miúdos desde sempre. A arma carregada: há quanto tempo não se ouvia seu estrondo? Um peso de ameaças, muito maior que os tantos quilos sobre a mesa, esperando.

            A tarde esfriando a varanda, a avó por tantas horas, resmungando sua intransponível falta de razão. O menino vagando pela casa, pelo pomar. Às vezes o tamborilar dos dedos da velha nos braços marcados da cadeira de balanço. Por fim, cada minuto insuportável, trilhar o caminho até o estábulo, coração na boca.

            A baia maior, a última, na sombra. O menino chegou seu passo conhecido, o sacudir-se da égua, com relincho. Retribuir o cumprimento e então o afago, o abraço mais doído no pescoço quente, querido. Cada gesto afoito do animal falante, tanta explicação.

            - Minha China, minha China linda.

            Talvez uma reprimenda no balançar vigoroso da cabeça.

            - Demorei sim, tava com medo. O que foi que aconteceu, menina?

            O menino com dedos de escova pelo dorso castanho, a pergunta repetida com a boca tão próxima da grande orelha. A égua pateando, nervosa.

            - Depois conto história, China. O que foi que você fez?

            Que não fosse uma lágrima, que não fosse tristeza ou o medo reconhecido nos olhos do menino. Que não fosse esse peso diferente na mão de todos os dias, tão cedo pela manhã, mão de afagos e carinhos, de abraçar e falar tão próximo, ou conversar pelos pastos em passo macio, ensinado pela paciência das palavras do menino, quando o animal nascera para o trote duro; ou gritar em galope sem rédea, com vento de alegria – depois, uma história longa e cansada ao pé das mexeriqueiras. Que não fosse nada de mais aquilo derramado das pontas dos dedos eriçando os pêlos, ponta de agulha, vacina profunda. Porque o menino, o outro, pequeno indiferente, sem jamais uma palavra, o direito de tocar, de bater a mão miúda e desajeitada no pescoço, o direito de alisar a crina, querer montar. Nunca uma palavra, um ruído pela boca, só o agrado seco da mão, em silêncio. Então, a chance: um corcoveio preciso para punir a ousadia de montar sem palavras. O menino caído, coice estudado há tanto tempo, certeiro.

            Mas agora, a tarde inteira, pronta, alguma coisa perdida. Os modos castanhos do animal, tão efusivos, contrariando o silêncio imposto na casa desde sempre. Ali, o único lugar de com quem falar, vitória cotidiana companheira dos dois, contra as refeições mudas, o pai austero, a mãe tensa, a avó inalcançável e a obra prima, o irmão ausente de si, talvez juntando a escuridão ao seu silêncio perfeito.

            - O que você foi fazer, China?

            A égua saracoteando o corpo, exalando seu bafo úmido no rosto do menino, cabeceando, toda graças. Tanto tempo juntos, desde cedo a convivência ditada para todo o entendimento. O único, o melhor modo.

            - Uma história curta, então.

            O relincho satisfeito e a voz do menino enchendo o estábulo, o ar pesando de palavras.

            Na casa, tão distante, a avó gritava incoerências; o telefone insistia e insistia para a indiferença.




















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