
Edmar Monteiro Filho
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) (Instituição sede da última proposta de pesquisa)
Possui graduação Ciências Biológicas Modalidade Médica pela
Universidade Federal de São Paulo (1980) e graduação em História pela Fundação
Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (2008), com especialização em
História Cultural pela mesma instituição de ensino (2010). É mestre em Teoria e
História Literária pela Universidade Estadual de São Paulo - UNICAMP (2013).
Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária também pela UNICAMP. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura, conto, oficina literária,
construção do conhecimento e Graciliano Ramos. (Fonte: Currículo Lattes)
Edmar Monteiro Filho escreve e publica desde 1980. Formado
em Ciências Biomédicas e História, recebeu os prêmios literários Guimarães
Rosa, da Rádio França Internacional, Cruz e Souza, Cidade de Belo Horizonte e
Luiz Vilela, todos na categoria contos. Publicou os livros de poesia A Lápis e
Halma Húmida, as coletâneas de contos Aquários, Às Vésperas do Incêndio e Que
Fim Levou Rick Jones?, a novela Azande e o romance Fita Azul, finalista do
Prêmio São Paulo de Literatura, edição 2012, na categoria livro do ano de autor
estreante. Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP e
reside em Amparo SP.
Conto de hoje:
EM SILÊNCIO
A convivência, como a moita de "unhas de gato" que
galgava o muro entre o terreiro e a casa. Arrancar os galhos teimosos e
deparar-se com as marcas deixadas no seu trajeto, os sinais agarrados na tinta
velha, nos tijolos: resistências. Assim como conviver, quando os traços de um
se mudam ao toque de Midas de outro, para o brilho do ouro ou para a matéria
escura da indiferença. Para as mães e seus filhos, a vantagem de haver
partilhado as entranhas, como unhas de gato arranhando o útero.
Nada de
extraordinário em ouvir os gritos mudos de alguém na distância, mesmo distraída
pelo desconforto da água gelada, endurecendo as mãos na pia da cozinha,
enquanto planejando o sacrifício de uma ave para o almoço. Brusco como um
susto, um cutucão ferrão nas têmporas. Fechar a torneira, tirar o avental e
conferir mentalmente o paradeiro do marido, dos dois filhos, da velha na
varanda, balançando-se ao sol em sua cadeira, zangando com o cão, descartada.
O menino
mais novo, o mudo, cambaleando pelo caminho cercado de geada, vindo dos
estábulos. Aflição localizada mesmo ali da janela: duas mãos tapando o rosto,
errando o rumo encharcado de sangue na blusa de lã clara suja o ferrão mais
fundo. Serena de pronto, o mesmo gelo da manhã, seu socorro. Com a pressa
possível, atravessou o terreiro e foi de encontro ao menino que reconheceu o
abraço não correspondido, as mãos pregadas, empapadas, o cheiro no ar fino.
Para
dentro de casa, evitando a atenção desarrumada da avó, mas não do cão,
preocupado. Tinha que ver, de medo, todo o medo em saber parado na boca do
estômago e as mãos crispadas. Enfim, uma. Resto do nariz torto, esmagado, a
testa deformada; no lugar de um olho, um resto de pálpebra, oco escuro. Sob a
outra mão afastada, o olho inchado e rubro. O menino, tremendo, tombando de
joelhos numa pavorosa súplica. A mãe, prática, depressa as chaves da perua,
muda também. De dor.
Já a
caminho, breve parada junto à cerca que o filho mais velho consertava.
- Estou
indo para o hospital, levar seu irmão que tomou um coice da China. Corre avisar
seu pai, diz para ele ir depressa. Sua avó está sozinha, volta e fica com ela.
O pescoço esticado para o banco traseiro, sem tempo, que a
perua partia.
Só duas
horas depois, o pai, que nada sentira, suas unhas de gato secas de sol.
- O
moleque só me achou agora.
O corredor
frio, cheirando a antisséptico. Botinas de terra e "o senhor não pode
entrar desse jeito, que isto aqui é hospital", as mãos sujas, limpar no
lenço.
- Como é?
- No
rosto. Perdeu uma vista. Vão tentar salvar a outra.
- Tentar?
A mulher-Midas, muda como o filho.
- Quem é o
médico?
- Rodrigo.
O que cuidou da minha mãe.
- Quanto
tempo?
- Vai
demorar, estão operando.
O telefone
falou alto na sala da fazenda. O menino atravessou o mar de tábuas ruidosas.
- Alô.
- Vai até
o escritório. Em cima da estante velha tem a garrucha. Toma cuidado, carrega e
deixa no jeito.
- Pai? O
que aconteceu? E o Ju?
- Seu
irmão perdeu uma vista e está operando a outra. Depois eu ligo de novo.
- O que eu
vou fazer com a garrucha?
- Espera.
Eu vou ligar de novo. Acho que você vai ter que fazer uma coisa. Pelo seu
irmão, por nós todos.
Silêncio.
Medo.
Cuidado para não despertar qualquer coisa que vivia sob as tábuas. Por isso a
recomendação de não correr na sala e os passos miúdos desde sempre. A arma
carregada: há quanto tempo não se ouvia seu estrondo? Um peso de ameaças, muito
maior que os tantos quilos sobre a mesa, esperando.
A tarde
esfriando a varanda, a avó por tantas horas, resmungando sua intransponível
falta de razão. O menino vagando pela casa, pelo pomar. Às vezes o tamborilar
dos dedos da velha nos braços marcados da cadeira de balanço. Por fim, cada
minuto insuportável, trilhar o caminho até o estábulo, coração na boca.
A baia
maior, a última, na sombra. O menino chegou seu passo conhecido, o sacudir-se
da égua, com relincho. Retribuir o cumprimento e então o afago, o abraço mais
doído no pescoço quente, querido. Cada gesto afoito do animal falante, tanta
explicação.
- Minha
China, minha China linda.
Talvez uma
reprimenda no balançar vigoroso da cabeça.
- Demorei
sim, tava com medo. O que foi que aconteceu, menina?
O menino
com dedos de escova pelo dorso castanho, a pergunta repetida com a boca tão
próxima da grande orelha. A égua pateando, nervosa.
- Depois conto
história, China. O que foi que você fez?
Que não
fosse uma lágrima, que não fosse tristeza ou o medo reconhecido nos olhos do
menino. Que não fosse esse peso diferente na mão de todos os dias, tão cedo
pela manhã, mão de afagos e carinhos, de abraçar e falar tão próximo, ou
conversar pelos pastos em passo macio, ensinado pela paciência das palavras do
menino, quando o animal nascera para o trote duro; ou gritar em galope sem
rédea, com vento de alegria – depois, uma história longa e cansada ao pé das
mexeriqueiras. Que não fosse nada de mais aquilo derramado das pontas dos dedos
eriçando os pêlos, ponta de agulha, vacina profunda. Porque o menino, o outro,
pequeno indiferente, sem jamais uma palavra, o direito de tocar, de bater a mão
miúda e desajeitada no pescoço, o direito de alisar a crina, querer montar.
Nunca uma palavra, um ruído pela boca, só o agrado seco da mão, em silêncio.
Então, a chance: um corcoveio preciso para punir a ousadia de montar sem
palavras. O menino caído, coice estudado há tanto tempo, certeiro.
Mas agora,
a tarde inteira, pronta, alguma coisa perdida. Os modos castanhos do animal,
tão efusivos, contrariando o silêncio imposto na casa desde sempre. Ali, o
único lugar de com quem falar, vitória cotidiana companheira dos dois, contra
as refeições mudas, o pai austero, a mãe tensa, a avó inalcançável e a obra
prima, o irmão ausente de si, talvez juntando a escuridão ao seu silêncio
perfeito.
- O que
você foi fazer, China?
A égua
saracoteando o corpo, exalando seu bafo úmido no rosto do menino, cabeceando,
toda graças. Tanto tempo juntos, desde cedo a convivência ditada para todo o
entendimento. O único, o melhor modo.
- Uma
história curta, então.
O relincho
satisfeito e a voz do menino enchendo o estábulo, o ar pesando de palavras.
Na casa,
tão distante, a avó gritava incoerências; o telefone insistia e insistia para a
indiferença.
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