
Todos os meses, o Grupo de Leitura Dom Quixote escolhe um clássico da literatura, ou uma obra contemporânea, para ler ao longo do período e discutir no encontro seguinte.
Decidimos que a partir deste ano, os livros escolhidos pelo grupo serão resenhados e publicados aqui no blog.
O primeiro título que lemos depois dessa decisão foi "Ilusões Perdidas", de Honoré de Balzac, e coube a Matheus Arcaro a tarefa de resenhá-lo.
ILUSÕES PERDIDAS: UM MONUMENTO
LITERÁRIO
Não é exagero afirmar que Honoré de Balzac (1799-1850)
foi fundamental para a consolidação do gênero romance. Junto com Stendhal, é
considerado o precursor do realismo moderno, já que, em suas obras, pela
primeira vez representa-se a vida contemporânea e cotidiana. Precursor porque Balzac
ainda cria personagens “maiores que a vida”, característica que se desfará anos
mais tarde com Gustav Flaubert. Nunca é demais lembrar que o Realismo é rebento
do Positivismo, escola filosófica fundada por Augusto Comte no início do século
XIX, que pregava o grande poder da ciência e da razão. Para Comte, o mundo está
organizado de maneira lógica e, além disso, suas leis gerais são captáveis pela
racionalidade.
Balzac era de uma produtividade impressionante. Em cinquenta
anos de vida, escreveu em torno de 90 romances que, em conjunto, receberam o
nome de A Comédia Humana. Alguns críticos apontam que seus livros, muitas
vezes, foram feitos às pressas, não recebendo o merecido tratamento estético. Sobre
isso há, inclusive, uma anedota: se Balzac tivesse o mesmo cuidado que Beckett,
por exemplo, com a linguagem, não teria escrito um terço dos seus livros.
Obviamente, não é lícito comparar escritores de épocas tão distantes, com
intentos literários tão distintos. Além do mais, Balzac foi um dos primeiros
escritores profissionais da história, recebia por obras escritas: eis um dos
motivos de tamanha produção.
Entremos propriamente no romance. Se, em algumas obras
balzaquianas existe descuido, esse não é o caso de Ilusões Perdidas. Escrito
entre 1835 e 1843, tem personagens complexas e uma inteligência narrativa de
fazer qualquer escritor iniciante repensar sua carreira. Alguns o classificam
como romance de costumes. Só que ele é muito mais que isso. É uma aula de
literatura em quase 800 páginas. Contudo, algumas objecções estéticas podem
emergir. Elenco três: excesso de descrições; didatismo maçante em algumas
passagens; uso do “telling” em vez do “showing”. Na verdade, somente esta
última poderia, de fato, ser passível de crítica. Como se sabe, literariamente
é muito mais rico colocar os personagens em ação do que contar o que eles são.
Se um autor intenta mostrar que determinada personagem é caridosa, cabe a ele
colocar essa personagem em atos de caridade (ajudando uma pessoa faminta, por
exemplo) em vez de simplesmente dizer que ela é caridosa. Mesmo assim, são
poucas as vezes que Balzac faz uso do “telling”. As outras duas críticas são anacrônicas:
no início do século XIX, não existiam recursos audiovisuais de informação.
Portanto, o leitor precisava (e gostava) dos detalhes, tanto dos ambientes quanto
das personagens. Em relação ao didatismo (explicar o processo de fabricação do
papel e os tributos de promissórias não pagas, por exemplo) vale o mesmo: era
preciso informar o leitor para que o contexto fizesse sentido; para que a obra
fosse inteligível.
Discutidas as objecções, mergulhemos nos inúmeros
méritos. A sociedade da primeira metade do século XIX não escapa ao estilo
judicioso de Balzac. E aqui, logo de início, é possível traçarmos uma relação, em
dois níveis, com Jean-Jacques Rousseau. Primeiro: é famoso o adágio deduzido da
obra rousseauniana de que a sociedade corrompe o homem. Sem entrarmos em minúcias
conceituais, podemos dizer que este preceito está presente em Ilusões Perdidas,
inclusive na vida provinciana: o peso das instituições é descarregado sobre o
indivíduo. Ambição, hipocrisia, vaidade e avareza são retratadas com
mordacidade. Em segundo lugar, é possível destacar a crítica ácida ao
Romantismo (crítica, inclusive, que rendeu troca de pauladas entre Balzac e seu
“padrinho” literário Victor Hugo): o êxtase e o devaneio, típicos da escola
romântica, são massacrados pela dura realidade material. O choque entre
imaginação e cotidiano (regido pelo interesse e pelas necessidades físicas), presente
nas Confissões de Rousseau, se mostra no romance através de Lucien: um jovem
poeta provinciano, seduzido pelo brilho da capital, que faz uso de sua extrema
beleza para ascender socialmente. Todavia, tal beleza só abre as portas da
antessala do sucesso. Bem verdade que ele é talentoso: tanto o livro de poemas
(As margaridas) quanto o romance (O arqueiro de Carlos IX) são bem avaliados
por alguns parisienses letrados. Incitado pelos elogios, Lucien entra na carreira jornalística para apressar os
passos da glória. Eis a oportunidade para Balzac carregar o discurso contra a
imprensa.
Além de dono de tipografia, Balzac trabalhou em alguns
jornais, onde pôde espiar as frestas desse canal de comunicação. Frestas
emboloradas e fedorentas: artigos encomendados para alavancar ou derrubar alguém,
colunas sociais com futilidades para todos os gostos, a literatura subjugada a
interesses pessoais e econômicos etc. Aliás, sobre esse ponto, interessante trazer
à tona uma fala do jornalista Vernou:
– Nós somos
negociantes de frases e vivemos de nosso comércio. Quando você quiser fazer uma
grande e bela obra, um livro, enfim, poderá colocar nele os seus pensamentos,
sua alma, amá-lo, defendê-lo; mas artigos, lidos hoje e amanhã esquecidos,
esses não valem a meus olhos senão aquilo que por eles nos pagam.
E também uma de outro jornalista, Blondet:
- Se existisse um jornal dos corcundas, ele provaria
dia e noite a beleza, a bondade e a necessidade dos corcundas. Um jornal não é
mais feito para esclarecer, mas para adular opiniões. Assim, todos os jornais
serão, mais cedo ou mais tarde, covardes, hipócritas, infames, mentirosos,
assassinos; matarão as ideias, os sistemas, os homens e florescerão exatamente por
isso.
Tais imundícies do jornalismo, representadas sobretudo
por Lousteau (responsável pelo início da carreira jornalística de Lucien), são
contrapostas à dignidade dos membros do Cenáculo, espécie de reduto moral do livro,
liderado por Daniel d’Arthez, escritor com imensa capacidade de resistir ao que
Theodor Adorno chamaria de Indústria Cultural cem anos mais tarde. Notemos como
Balzac prenuncia magistralmente o conceito adorniano:
Lucien atravessou a Pont-Neuf, às voltas com mil
reflexões. O que ele compreendera desse jargão comercial o fez adivinhar que,
para aqueles livreiros, os livros eram como os bonés de algodão para os
chapeleiros, uma mercadoria para se vender caro e comprar barato.
Não
apenas o confronto entre província e capital marca o âmbito social do romance,
mas, sobretudo, o antagonismo entre aristocracia e burguesia. Lembremos que o
contexto histórico suscitava tal debate: a Revolução Francesa acontecera meio
século antes da escritura da obra, ou seja, a burguesia ascendia, enquanto a
aristocracia entrava em decadência.
O Homeau, assim, não obstante seu ativo e crescente
poder, nunca passou de uma dependência de Angoulême. No alto, a nobreza e o
poder; embaixo, o comércio e o dinheiro; duas zonas sociais constam ente
inimigas sob todos os aspectos; difícil era assim adivinhar qual das duas
cidades mais odiava à rival.
Todavia os valores aristocráticos ainda prevaleciam. Por
isso Lucien queria recuperar o sobrenome nobre da mãe. Justamente por buscar os
valores aristocráticos a todo custo, o jovem poeta teve suas ilusões perdidas.
Na passagem a seguir, ele tece seus lamentos: “- É difícil ter ilusões sobre qualquer coisa em Paris. Aqui há
impostos para tudo, vende-se tudo, fabrica-se tudo, até mesmo o sucesso.”
Negócios inescrupulosos pululam nas páginas
balzaquianas. Destaque, para, além de Lousteu, os irmãos Cointet, donos da
tipografia da província que leva David Séchard, amigo e cunhado de Lucien, à
falência e à prisão. A astúcia dessas personagens, que fazem tudo para atingir
seus objetivos, remete à “razão instrumental”, conceito de outro pensador da
Escola de Frankfurt, Max Horkheimer: inteligência como cálculo, como simples
ferramenta para alcançar determinado fim que sequer é posto à reflexão. Eis um
trecho da fala de Lousteu a Lucien: “- A
consciência, meu caro, é uma dessas bengalas que cada um pega para bater no
vizinho, e da qual jamais se serve para si mesmo.” O pragmatismo dos irmãos
Cointet é contraposto ao cientista David, que se dedica praticamente em período
integral a descoberta de um novo tipo de papel. Este tipo criado por Balzac
ilustra o homem inventivo, mas com pouco tino comercial; é, assim, uma crítica
ao “mundo real”, cruel com quem não sabe manipular as regras do jogo.
Ao longo do romance, várias ilusões são perdidas.
Metonimicamente, trago mais duas: as da mãe e da irmã de Lucien, que o adoravam
até descobrirem suas atitudes em Paris: o ídolo delas tinha pés de barro. E as
de Lucien em relação a si mesmo, que passa da auto-adoração à cogitação do
suicídio.
É evidente que, pelo propósito desse texto, temas passíveis
de reflexão não foram discutidos. Dentre eles, menciono: o embate das gerações.
A vingança do amor-próprio ferido. A avareza projetada no pai de David. As tantas
formas do amor (a mulher mais velha que ama o adolescente, a atriz que ama o menino
bonito, a esposa que ama o marido e o amor idealizado. Quanto a esse, destaque
para a passagem: “A essência do amor
verdadeiro oferece constantes semelhanças com a infância: a irreflexão, a
imprudência, a dissipação, o riso e as lágrimas”).
Com esse aperitivo, espero que esteja proposto um
convite à apreciação de Ilusões Perdidas, um dos maiores livros da literatura
universal.
Muito bom, Matheus!!!
ResponderExcluirBoa Matheus. Acrescenta muito na reflexão sobre a obra.
ResponderExcluirBoa Matheus. Ajuda muito na reflexão sobre a obra.
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