Jari Mauricio da Rocha nasceu em São Leopoldo-RS em
1963. Graduado em Letras - UNISINOS, RS e mestre em Lingüística e Letras -
PUC-RS.
Foi diretor (2005 - 2012) do Centro Cultural José Pedro Boéssio – São
Leopoldo-RS, coordenador do Prêmio Literário Sergio Farina e da Feira do livro
de São Leopoldo-RS. É professor, agente cultural e autor do livro “Textículos –
narrativas curtas” (Carta Editora, 2013), no qual está publicado o conto de hoje.
Tonho e Krum
Como não nos deixar levar por desvios da vida para a difusão
da cultura e do conhecimento?
Átila, rei dos hunos, já dizia: todo o artista tem de ir onde
o povo está.
E assim, de forma aleatória, o destino bateu à minha porta.
Não atendi. Estava revendo os gols da Colômbia, mas o destino insistiu.
- Lembra de mim, professor? Do supletivo, tá ligado?
Embora não lembrasse todas as carinhas daquelas salas de
aula com quase uma centena de alunos, aquele jovem me era familiar.
- Dieison, o Quebrado, tá ligado?
Contou-me que o Tonho, lá da comunidade, tinha mandado me
buscar para umas aulas de cultura lá na comunidade. Ainda perguntou quanto
custava o bagulho e que me resgatariam às duas da tarde.
Tinha me esquecido de perguntar sobre qual cultura
especificamente eles estavam falando, mas acabei juntando meia dúzia de livros
para o caso de aperto. Lembrei que no meio da conversa haviam mencionado “esses
bagulho dos livro”.
Às 13 horas e 58 minutos o destino buzinou na frente de
casa.
Os vizinhos acharam estranho quando entrei naquele carro
preto rebaixado com o porta-malas escancarado. Sim, rolava uma trilha sonora. A
música era contagiante, talvez porque não conseguisse ouvir minha própria voz.
Chegamos à comunidade e andamos a pé por algumas ruelas até
chegarmos à sala de aula. Tonho estava na porta e foi muito atencioso.
Perguntei pelo Quebrado que não estava.
- Foi fazer uma mão. Ele disse que o senhor é o cara,
professor!
A sala tinha sido arrumada para o evento. Caixas de Schin
para os alunos e de Skol para o professor. Nada que me intimidasse, mas quando
Tonho apontou meu assento, vi sob sua camisa uma pistola niquelada.
- Senta aí, professor. Qué um bagulho pra tomar? Uma água,
uma purinha, uma ceva?
Os alunos foram chegando. Nove ao todo e as idades variavam
de doze a vinte anos, na maioria meninos.
O absoluto silêncio dizia que era hora de mostrar serviço.
Por onde começar e qual o conteúdo “adequado” para cada faixa etária? Na
passagem de olhos pela turma percebi que todos os olhos estavam fixos em mim,
não era assustador, pelo contrário. Então comecei.
Acomodei a meia dúzia de livros sob o chão de cerâmica e
contei duas ou três histórias. Gostaram, percebi. A literatura é sempre fascinante.
Mas fui interrompido.
- O senhor não vai ler pra gente? A gente queria histórias
de verdade. Disse uma mocinha de olhos castanhos claros, enquanto digitava num
I-phone,
Respirei, peguei um livro - o primeiro da pilha - e abri numa
página. Guilherme, o conquistador (1027-1087).
Funcionou. Os olhos ficaram ainda mais fixos, sequer piscavam.
Mas Tonho demonstrava certa impaciência, que se desfez logo que a história
começou a se desenrolar. Fui interrompido na parte que falava da infância daquele
francês da Normandia, que fora rei da Inglaterra, não falava inglês, era
analfabeto, que revolucionou a língua inglesa e que tinha se tornado duque da
Normandia aos oito anos de idade.
- Oito anos? Aos oito eu já era quase gerente. Disse
empolgado Tonho e logo pediu desculpas pela interrupção.
Ainda li sobre a Batalha de Stamford Bridge, cujos detalhes
muito agradaram a clientela. Compenetrados, eles pediram que eu relesse a parte
de como o rei da Noruega fora morto e suas tropas desbaratadas.
- Burro! Burro! Referiam-se a Harold Hardraade.
Peguei outro livro e julguei mais adequada, àquele momento,
a história da propagação do cristianismo por Carlos Magno. Tonho pediu que eu
explicasse como funcionava, na prática, a renovação do juramento de fidelidade
dos súditos homens a cima de doze anos. E achou justo que, no caso de recusa do
batismo ou de retratação depois do batismo, os “traíras” fossem punidos com a
morte.
Todos acharam curiosa a relação estabelecida entre o rei e o
Papa Leão III. E riram muito ao saber que o lugar dos papas, antes do Vaticano,
se chamava “Palácio do Latrão”. Houve gargalhadas por causa do nome do pai de
Carlos Magno: Pepino, o Breve.
Também tive que reler o capítulo em que Leão III fora
atacado nas ruas de Roma, durante uma procissão, num tempo em que sua popularidade
não andava muito bem. Teve os dois olhos vazados e a língua cortada.
- Bem feito! Alguma esse cara aprontou. Disse um aluno.
A vibração foi enorme, só não foi maior, porém, quando da
passagem que narra a desgraça em que caíra o império bizantino no ano 811. Os búlgaros pagãos, sob comando do príncipe
Krum - que segundo consta, tinha apenas dez anos de idade - destruíram o
exército do imperador Niceforo, de cujo crânio foi feita uma taça de vinho para
Krum.
Neste instante todos os alunos levantaram-se e aplaudiram. A
aula, de quase três horas, tinha chegado ao término com um “gran finale”.
Depois de muitos elogios, por parte dos alunos e do diretor
Tonho, pediram-me para voltar. Além do pagamento combinado da hora/aula Tonho
fez questão de oferecer um bônus e justificou: tá muito merreca isso daí,
professor. Pega mais aqui. O senhor aqui é nosso confirmado, tá ligado? Ó e
traz mais uns livro desse Krum e do rei aí. Os cara são furioso!
A próxima aula será na semana que vem. Alguém tem alguma
leitura aí pra indicar?
Agradecido e honrado pelo convite!
ResponderExcluirSaudações literárias!
Foi com prazer que publiquei, Jari.
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