sábado, 30 de maio de 2015

RESENHA DA SEMANA


Sonâmbulos


Quando se fala em literatura em língua portuguesa, sem dúvida nos direcionamos para dois territórios dessa produção: Brasil e Portugal. Mas não são apenas esses dois países que produzem literatura no idioma materno de Camões e de Fernando Pessoa. É comum poucos se lembrarem que lá na África, por exemplo, também se fala e se produz alta literatura em português. E por aquelas terras, considerando a língua portuguesa, um dos destaques é o moçambicano Mia Couto. Autor de grande talento e de uma boa bagagem de livros publicados há tempos.



           Um dos romances de destaque de Mia Couto é Terra Sonâmbula. O
livro foi lançado em 1992. Nele se narram elementos do folclore local moçambicano intercalados com outras narrativas. Resumidamente, Terra Sonâmbula apresenta dois personagens centrais no início, o velho Tuahir e o jovem Muidinga. Ambos estão vagando por um cenário de guerra civil, em que vários horrores bélicos podem ser constatados explicitamente pelo leitor. Corpos mutilados e mortos, destruição de vilas, de ônibus, ausência de perspectiva de um bom futuro, tristeza... enfim, uma enciclopédia detalhada de como a humanidade consegue, com poucos esforços, ser frequentemente desumana.


            Já no começo do livro, Muidinga encontra uma mala com alguns cadernos perto de um cadáver. São de um sujeito chamado Kindzu. Nos cadernos, há episódios pessoais, folclóricos de Kindzu. Tais histórias passam a fazer companhia principalmente a
Muidinga, que as lê, e a Tuahir, que ouve a leitura do companheiro. São relatos poéticos repletos de uma cultura exótica, espiritual e de muitas peripécias. Tanto ingrediente sedutor assim faz, momentaneamente, Muidinga esquecer o inferno bélico ao seu redor e penetrar nos cadernos, ainda que as histórias de Kindzu também estejam recheadas de violência e outras tristezas.

            Das grandes virtudes de Mia Couto, certamente destaca-se seu primor linguístico. A linguagem é rica e sensivelmente sonora. Ela capta a atenção do leitor e faz cada palavra sonorizar aos ouvidos, ora como melodia suave, ora como um estrondo para as aberrações produzidas pelo ser humano. Tudo é muito bem organizado e atinge seu propósito comunicativo. Mia Couto, lembrando nosso Guimarães Rosa, não consegue escrever sem poetizar as palavras e nem deixar de lado o linguajar típico da região retratada. Para muitas palavras, o autor recria seus significados e as estrutura sem as amarras sintáticas tradicionais. A palavra de Mia Couto nessa sua Terra Sonâmbula não apenas diz, mas também se mostra com vida e plena de liberdade.

            Muidinga, ao apresentar as histórias dos cadernos, desliga o plano de sua realidade e insere o leitor nos eventos de Kindzu. O livro se divide, portanto, em dois planos: o do presente e o das histórias de Kindzu.

            O universo daquilo que se encontra nos cadernos é mágico, fantástico. Quem já leu Gabriel Garcia Márquez sem dúvida identificará lapsos dele em Mia Couto.

        Ler Terra Sonâmbula é uma experiência impactante. A vontade que se tem após finalizar a leitura é de correr atrás de outro livro de seu autor. Motivo? Continuar a descobrir muito sobre um universo pouco divulgado na literatura em português: uma África rica em letras, como também são as de Portugal e Brasil. Mia Couto confirma essa riqueza africana em cada página de sua Terra Sonâmbula. Quem ainda não leu, é bom começar a ler ontem.

Vitor Miranda

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