Sobre o autor:
"Devo agora falar de mim. Isso seria um passo em direção ao silêncio."
Samuel Beckett sintetizou magistralmente a impossibilidade de se definir.
Quem sou eu? Eu não sou; eu estou. Ou talvez eu seja; mas não mais do que possibilidades. Uma personagem no expediente comercial (o Publicitário); outra à noite (o Professor de Filosofia e Sociologia) e outras duas aos finais de semana (o Escritor e o Artista plástico). Se necessário for colar em mim um rótulo, que seja o de Tapador de Buracos. Afinal, a Arte é uma necessidade de preencher espaços vazios. E estes, para a minha fortuna, nunca cessarão de existir.
Fonte: www.matheusarcaro.art.br/
Maatheus lançou, em 2014, a coletânea de contos Violeta velha e outras flores pela Editora Patuá.
Eis o conto do livro acima que o autor nos enviou:
A mancha arroxeada que abraçava o olho esquerdo não foi suficientemente apelativa para que Timóteo continuasse o movimento. Desobediente, a mão manteve a faca enferrujada imóvel, encostada à pele do pescoço meticulosamente talhada pelo tempo. O espelho, estreito como seu espírito, uma vez mais testemunhou a covardia, silencioso. Com esforço, o suor que nascia farto nas fontes nuas vencia as valas do rosto e repousava salgado nas clavículas.
Eis o conto do livro acima que o autor nos enviou:
Violeta velha
A mancha arroxeada que abraçava o olho esquerdo não foi suficientemente apelativa para que Timóteo continuasse o movimento. Desobediente, a mão manteve a faca enferrujada imóvel, encostada à pele do pescoço meticulosamente talhada pelo tempo. O espelho, estreito como seu espírito, uma vez mais testemunhou a covardia, silencioso. Com esforço, o suor que nascia farto nas fontes nuas vencia as valas do rosto e repousava salgado nas clavículas.
Olhou para o lado, olhos arredios, e notou os pelos brancos que
começavam a se alastrar pelo rosto do menino deitado no sofá (seria sempre um
menino para ele). “As crianças são naturalmente cruéis”. Lembrou-se da frase
ouvida há quase setenta anos, numa tentativa inconsciente de dar sentido ao que
sentia, de explicar aquelas coisas que não cabiam em seu mirrado peito. Os
acontecimentos antigos pareciam esculpidos na memória; os recentes lhe escorriam
pelas fendas da massa cinzenta. Mas a visão é uma grande aliada da lembrança
senil: os hematomas raramente abandonavam seu corpo. E doíam. Doíam muito.
Contudo, doíam menos que a ciência de que o autor deles era aquele menino.
O álcool exalado pelo corpo embutido no estofado inundava o
minúsculo cômodo, metade da casa alugada. As paredes, com as intimidades à mostra,
compartilhavam sua aspereza com o senhor de cabelos esbranquiçados. Errei,
Senhor. Um vaso não sai torto se forem boas as mãos do oleiro! A parábola era
perfeitamente plausível: Timóteo trabalhara quarenta anos na olaria da pequena
cidade e orgulhava-se de nunca ter recebido uma reclamação sequer sobre os
vasos e vasilhas que produzia.
Ficou maior o espelho e, de relance, ele reparou na mesa de
madeira: as migalhas do pão seco que comera no almoço refletiam a luz do sol a
entrar pela esquálida janela, acima do sofá. Aquele feixe de luz parecia suturado
ao ambiente: a vitalidade dos pingos luminosos que tremeluziam sobre a madeira
surrada oprimia o velho. Na verdade, evidenciavam que, por mais sórdida que
seja a situação, sempre há pontos de luz. E ele não soube identificar isso no
filho. Apertou veementemente o cabo da faca na esperança de esmagar a sua
culpa. Precisava dissecá-la, mas era como um legista recém-formado; não
encontrava o fio para conduzir sua regressão; a memória, uma colcha de retalhos
com buracos. De súbito, veio à mente o nascimento do filho: sem clemência, a
parteira enfiara um ferro na esposa, pra que um ferro desse tamanho, dona?
Quanto sangue, meu Deus! Calma, meu bem. Nossa Senhora do Bom Parto há de olhar
pela gente. Os dedos da mulher, que há instantes pareciam cravados à lateral da
cama, agora tremulavam a poucos centímetros do chão. Era obsceno o contrastaste
entre a boca roxa dela e os berros do menino que desocupara o ventre.
O velho sacudiu a cabeça. Com isso, reavivou a primeira prisão de
Afonso. Ele não fez nada, seu guarda, aquele pacote não era dele! Os homens de
cinza o atiraram no chão de barro batido feito um saco de cimento.
Algemaram-no. As sirenes invadiram o quarteirão e, como ímãs, atraíram os
vizinhos para fora de suas casas, espetáculo ao vivo, gratuito. Dois anos e
oito meses no reformatório, até atingir a maioridade. Os olhos baços do espelho
morderam-no novamente. A cabeça do filho tombou levemente e os cabelos sebosos
misturaram-se ao suor da testa. Nem de longe lembravam os fios vivos da
infância de Afonso. Penteie direito, senão o cabelo eriça em cima, menino. Tem
que ficar bonito no retrato que vamos colocar na estante, perto do da sua mãe.
Ela ficaria orgulhosa: nosso menino na primeira comunhão! Pela boca entreaberta
do filho deitado escorria uma gosma esverdeada. Timóteo sentiu nojo de Afonso
como no dia em que ele começou a roubar as coisas de casa. Preciso de um
trocado, pai... Velho mentiroso, eu sei que você tem dinheiro. Cadê a grana da
aposentadoria? Após destruir a pauladas os parcos objetos da sala, o jovem saiu
carregando o ferro de passar roupa.
Tossiu violentamente o homem do sofá, mas não abriu os olhos.
Estava ali fisiologicamente, emprestado à atmosfera. Do movimento de descida do
peito desnudo nascia um ruído tão imundo quanto seus pés. Em tempos desbotados,
o velho correria para acudir o menino, dando-lhe uns tapinhas nas costas, como
lhe ensinaram as irmãs da igreja que frequentava religiosamente. Porém, os
cabelos ralos não se moveram. Tampouco a barata que passeava sobre o
porta-retratos foi capaz de suscitar-lhe alguma reação. O corpo de Timóteo
estava suturado ao momento. A mente, por sua vez, parecia suspensa; como uma
bailarina, abraçou a lembrança da festa que preparara para Afonso: o bolo
custara-lhe duas semanas de trabalho. Os salgados, o refrigerante e as bexigas
faziam-se presentes graças às economias que guardara debaixo do colchão de
palha. O sacrifício valia a pena: a primeira década do filho carecia de uma
celebração digna de fotografias. Para testemunhar o apagar das velas foram
chamados quatro amiguinhos de Afonso e também André, fotógrafo amador. Depois
do bolo cortado, a foto oficial da festa. Os convidados nem precisaram
espremer-se para o enquadramento. Sorrisos e abraços... E gritos... Solta meu
filho, seu filho da puta! Quem era aquele homem de aproximadamente quarenta
anos que invadira a festa e espancava o menino? As crianças saíam correndo aos
gritos enquanto o homem desferia socos e pontapés no protagonista da festa. Por
que não acudi meu filho? Sangrava, sangrava e o pai soldado no chão, atirando
palavras.
Um ruído, desta vez mais negro, e Timóteo voltou novamente a
cabeça para o sofá. Era ele o agressor! Por que fez isso com você mesmo,
Afonso? Timóteo teve ímpetos de arremessar a faca na cabeça que pendia do móvel
despelado, mas não desceu da intenção. Pela primeira vez em anos experimentou o
sal nascido nos olhos. E a ardência, que começara nas cicatrizes dos lábios,
espessara-se e avançava boca adentro deixando rastros de azedume pela língua. O
líquido desceu esfolando o esôfago, avalanche cáustica que arrastava a
impotência de um pai negligente, bateu no estômago e voltou impregnado de
bílis. Com o passado entre os dentes, Timóteo dessentiu os membros. Observou o
olho esquerdo, gineceu de uma violeta velha, murcha e úmida, até o sol vestir a
capa da noite.
Matheus Arcaro
Conto integrante do livro “Violeta velha e outras
flores”, publicado em 2014 pela Editora Patuá.
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