A partir de agora, todos os sábados serão postadas resenhas de
livros produzidas por amigos. Quem quiser participar , basta que me envie
seu texto, ficando porém claro que passarão por análise de conveniência. Nosso
foco é a literatura.
A resenha de hoje é sobre o livro Malditas Fronteiras, de João Batista Melo e quem escreve é Ronaldo Cagiano.

Livro: Malditas fronteiras
Autor: João Batista Melo
Editora: Benvirá, 2014 Pgs. 289 (R$ 32,50)
Editora: Benvirá, 2014 Pgs. 289 (R$ 32,50)
Entre dois mundos, um horizonte de
espantos
Ronaldo Cagiano (*)
![]() |
João Batista Melo |
Pelo olhares argutos de Valentino
(filho de um empresário xenófobo) e da pequena e cega Sophie (neta de Konrad,
um mestre cervejeiro alemão, que vive a eterna busca da uma receita perdida de
uma cerveja bávara) vão se descortinando tempos e geografias, numa simbiose
entre presente e passado, diante da bruma indecifrável do futuro. Num movimento
pendular entre Alemanha e Brasil, tendo Ettal e Belo Horizonte como cenários de
suas deambulações afetivas e territoriais, a infância onírica é destronada,
marcada tanto pelo medo e
instabilidade emocional diante da possibilidade de ingresso do Brasil no
conflito, quanto pela amargura dos que, no exílio, assistem, inermes, ao plano
bélico que desaguou no holocausto.
Habilidoso narrador, Melo já
demonstrou em obras anteriores, entre elas os premiados O inventor de
estrelas (Prêmio Guimarães
Rosa, MG, 1998), Patagônia (Prêmio Cruz e Sousa de Romance, SC, 1998), As baleias do
Saguenay (Prêmio Cidade de
Belo Horizonte, 1994) e Um pouco mais de
swing (Prêmio Fundação
Biblioteca Nacional, 1998) a fusão entre a invenção e a memória, o trânsito
entre o social e o lírico, o percurso entre a fantasia e a realidade,
utilizando-se como pano de fundo o fato histórico ou político para compor uma
ficção em que o imaginário serve de catapulta para uma visão crítica do mundo e
suas relações.
Transcendendo o teatro dos horrores
desse período e as tensões dos personagens que, com suas consciências,
sutilezas e projeções psicológicas alimentam a trama e servem de sustentação ao
seu projeto narrativo, o romance também se particulariza pela linguagem
extremamente delicada e poética, cujo acento diáfano não dissimula a dimensão
trágica dos acontecimentos.
Em Malditas fronteiras está em jogo não apenas a relação
entre Sophie e Valentino, aviltados em sua inocência pela brutalidade de um
momento crucial nas suas vidas, como no destino de amigos e parentes, entre
eles Osório, pai de Valentino, que se afastou do filho e se exaure numa
trajetória de angústia e melancolia; os irmãos Hermann e Ferdinand, o padre
Wolfgang, Bernardo, Erika,
Arnold e outros personagens que dão vida às paixões em meio a tanta morte e
destruição, des(a)fiando o fio de Ariadne de um imenso labirinto em que a
guerra os confinou.
Entre o Brasil e Alemanha, o romance
de Melo é uma profunda e apaixonada discussão sobre valores, instaurando uma
percepção ética e humanitária sobre a injustiça e os malefícios da
intransigência e do preconceito, essas as verdadeiras e malditas fronteiras que
empanam a beleza da existência e amordaçam qualquer espírito de compaixão pelo
outro e pela diferença, expondo o instinto maquiavélico e a pulsão de barbárie
ainda tão enrustidas nas consciências das pessoas e dos líderes políticos e que
afloram justamente nesses momentos catastróficos, de beligerância entre estados
e nações.
Pelos olhos sensíveis de duas
crianças, a narração ganha status de um profundo questionamento sobre a
brutalidade desse mondo cane, em
que a realidade, com toda sua carga escatológica e apocalíptica, é desnudada
com uma consciência crítica, mostrando as dicotomias e a falta de compreensão
dialética naquele momento da história.
O espaço abissal entre o ver e o
sentir, quando está ausente qualquer possibilidade de entendimento, é
simbolizado pela sensação de embate entre a cegueira real e a cultural, que a
voz do velho Konrad, num dos momentos altos do livro, reverbera: “Cada ser
humano percebia de modo distinto o sol e as florestas, a chuva e as pessoas com
quem convivia, e em cada pupila se retratava algo diverso. Assim, havia um céu
que era seu, nuvens que eram suas, orvalhos que eram seus. Mas uma posse por
afinidade, não por propriedade. Tudo isso ameaçou mudar com o nascimento de
Sophie cega, mostrando para Konrad novas formas de perceber o mundo”.
Malditas fronteiras,
sem dúvida, é um dos mais significativos romances brasileiros contemporâneos
sobre um tema milenar e recorrente na literatura universal, o do apartheid de raças e
povos e as terríveis conseqüências do rastro de dilaceramento físico e íntimo
dos que foram compelidos a uma existência de sombras e sustos, ao degredo do
pré e pós-guerra, com seus escombros e espantos; enfim, ao despertencimento.
João Batista Melo, que morou alguns anos
em Brasília, é jornalista e funcionário da Caixa, exercendo a chefia de
comunicação e marketing do banco na capital mineira, nessa obra percorre a trilha literária de Amós Oz, David
Grossmann, Philip Roth, Primo Levy, Isaac Basevi Singer, Schmuel I. Agnon ,
Aharon Appelfeld e A. B. Yehoshua, e entre nós, no mesmo diapasão de Moacyr Scliar, Michel Laub, Noemi
Jaffe, Luis S. Krausz e o polêmico Samuel Rawet, autores que construíram uma
obra de inspiração espiritual e estética em torno dos mesmos dramas sofridos
pelos que são forçados a essa marginalidade, culminando
na perda da identidade ou na dissolução de valores, ou a consciência aviltada
pela desterritorialização.
(*) Autor de Dicionário de
pequenas solidões (Contos,
Ed. Língua Geral) e O sol nas feridas (Poesia, Dobra Editorial), dentre
outros, vive em
São Paulo.
Trecho:
“As bombas vão
libertar aqueles que estão presos na Alemanha, nos campos de prisioneiros. Vão
acabar com o mal que ameaça dominar o mundo. Mas é sobre aqueles homens lá
embaixo que jogo minhas bombas. É preciso que seus líderes percam a guerra. Que
Hitler acabe. Que Mussolini acabe. Que Goebbels. Que Goering. Mas é sobre
aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. E sei que preciso jogá-las
porque senão eles matarão meus amigos, meus conterrâneos de Minas Gerais, há um
monte deles por aqui. E então eu jogo minhas bombas. E sonho com aqueles homens
todas as noites. Espero que esteja
tudo bem em
Belo Horizonte. Esse é um consolo. Persigo os fascistas
alemães e italianos aqui para que eles não cheguem até a serra do Curral ou até
a Pampulha”. (pg. 200)
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