sábado, 16 de maio de 2015

RESENHA DA SEMANA

A partir de agora, todos os sábados serão postadas resenhas de livros produzidas por amigos. Quem quiser participar , basta que me envie seu texto, ficando porém claro que passarão por análise de conveniência. Nosso foco é a literatura.

A resenha de hoje é sobre o livro Malditas Fronteiras, de João Batista Melo e quem escreve é Ronaldo Cagiano.  
Livro: Malditas fronteiras
Autor: João Batista Melo
Editora: Benvirá, 2014 Pgs. 289  (R$ 32,50)




Entre dois mundos, um horizonte de espantos

Ronaldo Cagiano (*)


João Batista Melo
              Vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais e finalista do Prêmio Benvirá de Literatura (2014), Malditas fronteiras, do mineiro João Batista Melo, aborda a recorrente questão da insularidade do estrangeiro na ótica de duas crianças que, na Belo Horizonte da década de 1940, compartilham questionamentos e perplexidades, a reboque do clima de apreensão que antecede à Segunda Guerra Mundial.

              Pelo olhares argutos de Valentino (filho de um empresário xenófobo) e da pequena e cega Sophie (neta de Konrad, um mestre cervejeiro alemão, que vive a eterna busca da uma receita perdida de uma cerveja bávara) vão se descortinando tempos e geografias, numa simbiose entre presente e passado, diante da bruma indecifrável do futuro. Num movimento pendular entre Alemanha e Brasil, tendo Ettal e Belo Horizonte como cenários de suas deambulações afetivas e territoriais, a infância onírica é destronada, marcada  tanto pelo medo e instabilidade emocional diante da possibilidade de ingresso do Brasil no conflito, quanto pela amargura dos que, no exílio, assistem, inermes, ao plano bélico que desaguou no holocausto.  


              Habilidoso narrador, Melo já demonstrou em obras anteriores, entre elas os premiados  O inventor de estrelas (Prêmio Guimarães Rosa, MG, 1998), Patagônia (Prêmio Cruz e Sousa de Romance,  SC, 1998), As baleias do Saguenay (Prêmio Cidade de Belo Horizonte, 1994) e Um pouco mais de swing (Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, 1998) a fusão entre a invenção e a memória, o trânsito entre o social e o lírico, o percurso entre a fantasia e a realidade, utilizando-se como pano de fundo o fato histórico ou político para compor uma ficção em que o imaginário serve de catapulta para uma visão crítica do mundo e suas relações.

            Transcendendo o teatro dos horrores desse período e as tensões dos personagens que, com suas consciências, sutilezas e projeções psicológicas alimentam a trama e servem de sustentação ao seu projeto narrativo, o romance também se particulariza pela linguagem extremamente delicada e poética, cujo acento diáfano não dissimula a dimensão trágica dos acontecimentos.

Em Malditas fronteiras está em jogo não apenas a relação entre Sophie e Valentino, aviltados em sua inocência pela brutalidade de um momento crucial nas suas vidas, como no destino de amigos e parentes, entre eles Osório, pai de Valentino, que se afastou do filho e se exaure numa trajetória de angústia e melancolia; os irmãos Hermann e Ferdinand, o padre Wolfgang,  Bernardo, Erika, Arnold e outros personagens que dão vida às paixões em meio a tanta morte e destruição, des(a)fiando o fio de Ariadne de um imenso labirinto em que a guerra os confinou.

 Entre o Brasil e Alemanha, o romance de Melo é uma profunda e apaixonada discussão sobre valores, instaurando uma percepção ética e humanitária sobre a injustiça e os malefícios da intransigência e do preconceito, essas as verdadeiras e malditas fronteiras que empanam a beleza da existência e amordaçam qualquer espírito de compaixão pelo outro e pela diferença, expondo o instinto maquiavélico e a pulsão de barbárie ainda tão enrustidas nas consciências das pessoas e dos líderes políticos e que afloram justamente nesses momentos catastróficos, de beligerância entre estados e nações.

             Pelos olhos sensíveis de duas crianças, a narração ganha status de um profundo questionamento sobre a brutalidade desse mondo cane, em que a realidade, com toda sua carga escatológica e apocalíptica, é desnudada com uma consciência crítica, mostrando as dicotomias e a falta de compreensão dialética naquele momento da história.

             O espaço abissal entre o ver e o sentir, quando está ausente qualquer possibilidade de entendimento, é simbolizado pela sensação de embate entre a cegueira real e a cultural, que a voz do velho Konrad, num dos momentos altos do livro, reverbera: “Cada ser humano percebia de modo distinto o sol e as florestas, a chuva e as pessoas com quem convivia, e em cada pupila se retratava algo diverso. Assim, havia um céu que era seu, nuvens que eram suas, orvalhos que eram seus. Mas uma posse por afinidade, não por propriedade. Tudo isso ameaçou mudar com o nascimento de Sophie cega, mostrando para Konrad novas formas de perceber o mundo”. 

                 Malditas fronteiras, sem dúvida, é um dos mais significativos romances brasileiros contemporâneos sobre um tema milenar e recorrente na literatura universal, o do apartheid de raças e povos e as terríveis conseqüências do rastro de dilaceramento físico e íntimo dos que foram compelidos a uma existência de sombras e sustos, ao degredo do pré e pós-guerra, com seus escombros e espantos;  enfim,  ao despertencimento.

João Batista Melo, que morou alguns anos em Brasília, é jornalista e funcionário da Caixa, exercendo a chefia de comunicação e marketing do banco na capital mineira,   nessa obra percorre a  trilha literária de Amós Oz, David Grossmann, Philip Roth, Primo Levy, Isaac Basevi Singer, Schmuel I. Agnon , Aharon Appelfeld e A. B. Yehoshua, e entre nós, no mesmo diapasão de  Moacyr Scliar, Michel Laub, Noemi Jaffe, Luis S. Krausz e o polêmico Samuel Rawet, autores que construíram uma obra de inspiração espiritual e estética em torno dos mesmos dramas sofridos pelos que são forçados a essa marginalidade,  culminando na perda da identidade ou na dissolução de valores, ou a consciência aviltada pela desterritorialização.

(*) Autor de Dicionário de pequenas solidões (Contos, Ed. Língua Geral) e O sol nas feridas (Poesia, Dobra Editorial), dentre outros, vive em São Paulo.

Trecho:

  As bombas vão libertar aqueles que estão presos na Alemanha, nos campos de prisioneiros. Vão acabar com o mal que ameaça dominar o mundo. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. É preciso que seus líderes percam a guerra. Que Hitler acabe. Que Mussolini acabe. Que Goebbels. Que Goering. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. E sei que preciso jogá-las porque senão eles matarão meus amigos, meus conterrâneos de Minas Gerais, há um monte deles por aqui. E então eu jogo minhas bombas. E sonho com aqueles homens todas as noites. Espero que esteja tudo bem em Belo Horizonte. Esse é um consolo. Persigo os fascistas alemães e italianos aqui para que eles não cheguem até a serra do Curral ou até a Pampulha”. (pg. 200)














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