Viviane de Santana
Paulo (São Paulo),
poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de
Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim
(contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez!
Verlag,
Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou poemas em revistas e jornais
entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Argos
e Alforja (México). Participou do VIII Festival Internacional de
Poesia em Granada, Nicarágua.
CONTO:
As janelas
A primeira vez
que eu vi o programa, se bem me recordo, foi no dia em que despertei com o melancólico
ruído do dedilhar da chuva no vidro da janela, mesclava-se à candente voz de
Charlotte pronunciando o meu nome. Donato, acorda! Bom dia! Senti os lábios
dela pousarem leves e breves nos meus. Acorda, Donato Rotiel Borgues, senão
você vai perder a hora.
Ah, não! Está
chovendo! Os dedos da chuva insistiam na janela.
Sim, as plantas
precisam de chuva. Ela me consolou ao mesmo tempo que se despedia de mim.
Tchau, eu já vou.
Não vou poder ir
de bicicleta hoje. Constatei desanimado.
Quer que eu te leve
de carro? Mas você tem de se apressar.
Não, não precisa
não, obrigado! Vou de metrô. Ela estava debruçada sobre mim ainda deitado na
cama. Não usávamos cortinas na janela devido ao longo inverno embebido de
escuridão. No entanto, na primavera clareava mais cedo e a luz excessiva
incomodava. Mas apreciávamos ser incomodados pela claridade sobeja e a celeuma
dos pássaros cantando.
Não me aperte
assim! Você está amassando a minha roupa. Queixou-se Charlotte. Tchau. Bom
trabalho! Ela me deixava e ia embora. Charlotte Werther entrava mais cedo do
que eu no trabalho. Era disciplinada. Eu chegava atrasado quase diariamente.
Levantei, tomei
a ducha e fiz o café que sorvi em grandes goles, em pé, segurando a caneca
quente, diante da porta de vidro que dava para o alpendre. Eu contemplava, do
segundo andar, os espelhos partidos no chão da rua refletindo pedaços das
fachadas das casas antigas, as sacadas com vasos de plantas e flores, e o
outdoor nas entranhas de uma obra. Era uma propaganda de cerveja com o grafite-bigode
na cara sorridente do jovem e ao fundo a paisagem crepuscular flavescente com
sabor de aventura e férias. Mantive a vã esperança de que a chuva passasse até a
hora de eu sair, mas engrossou. Precisei pegar o metrô.
Subi as escadas
cheias de gente, na estação Zoologischer Garten, e circundado pela
multidãozinha debatendo-se, saindo dos vagões, cruzando direções, fui compelido
a pensar sobre as diferenças de ontem e de hoje. As diferenças surgiam
irremediáveis, um dia nunca era igual ao outro, embora tivéssemos a impressão
de que nada havia mudado, porque o que mudara não nos interessava e ansiávamos
outras mudanças, as radicais que nos remetiam à realização dos nossos desejos.
Estas mudanças eram as mais difíceis! Enquanto estas mudanças não aconteciam eu
ficava com essas minimalistas, como por exemplo, encontrar outros passageiros
dentro do vagão ou não ver a moça de salto alto, casaco de couro e pele, bolsa
de marca de grife, que vez ou outra aparecia entre os passantes. Comprei um
sanduíche de pão com presunto, tomate e alface, e um copo de coffee to go. Fui sentado no banco do
metrô tomando o café e comendo o sanduíche.
Era 2014, ano em
que as manifestações políticas se sucediam, contra a bolsa de valores, os
bancos, e em certos países as manifestações haviam se iniciado. Época das
queixas de cidadãos nas ruas e de um Amarildo Dias de Souza sumir nas mãos da polícia carioca, além dos outros que sempre
desapareceram e desaparecerão nas mãos da polícia de países lentos com a justiça. Época de compartilhar a
realidade no Facebook e de possuir mais de trezentos amigos.
Era nove e um, e
eu uma ostra no interior da sala de um escritório. O telefone tocava e eu ouvia
a voz da pessoa com suas dúvidas em relação ao requerimento do documento. Eu
era de responder as indagações mais simples. Minhas respostas eram evidentes.
Há algo de perverso em um mundo desnecessariamente fácil, baseado em indagações
que não são uma busca porque o óbvio da resposta não oferece espaço para
interpretações diferentes. Dúvida requer compreensão. É um paradoxo, mas para
se indagar sobre o que não entendemos, temos que primeiramente entender o que
escapa de nossa compreensão. E é uma arte saber perguntar.
Neste dia, pedi
um livro emprestado ao Umberto di Rose, o italiano, magro, alto, miope, que
veio à minha sala fazer a atualização do Windows XP. Era função do Steven
Jobbys, mas eu não suportava a arrogância deste cara, que não passava de um
puxa saco e só conseguia ascensão na firma por causa de seus servicinhos particulares
de informática à chefia! Pedi ao Umberto, programador e amante da literatura. O
passa tempo de Umberto consistia em montar páginas na internet contendo as
obras preferidas dele. Montou os sites
de Dante, Goethe, Fausto, e Guimarães Rosa, Grandes Sertões Veredas, repletas
de pastas, abas e links com janelas carregadas de imagens geográficas ou
ilustrações, referências biobibliográficas e cinematográficas, e assim por
diante. Umberto me revelou que trabalhava na página de Pirandello e a próxima
seria Geórgicas, de Virgílio.
Umberto,
sentado à minha mesa digitava qualquer coisa no teclado, olhava para a tela concentrado
nos movimentos luminosos do monitor, não me falou se emprestaria o livro ou
não. Mas, sem tirar os olhos da tela, fazendo o backup dos meus arquivos, começou a discursar sobre a necessidade
de se ter livros em casa, enfileirados na estante, dando de cara com o dono. O
e-book era para leituras rápidas, que não carecem de anotações nas margens ou escritas
em pedaços de papeis avulsos esquecidos no meio das páginas, que não carecem de
sublinhamentos ou dobras de páginas.
Umberto
prosseguia com o monólogo, certificou-se ao mesmo tempo, de haver espaço livre
suficiente no disco rígido. Havia
no mínimo 3000MB de espaço disponível para instalar a versão de 64 bits do
Windows 8.1.
No meio de um livro você pode encontrar uma nota de dinheiro esquecida, uma
anotação interessantezinha rabiscada e com letrinhas quase ilegíveis, que pode
ser trabalhada e transformada em uma obrinha literária, uma folha de álamo
vermelha de outono, o tíquete do cinema, e lembrar-se daquele filme, agora
antigo, e da ocasião em que você esteve no cinema com o/a amigo/a que sumiu do
mapa ou o/a amigo/a leal ou o/a namorado/a ou o/a amante —, falava mencionando
o masculino e feminino —, o tíquete do teatro (lembrar-se da peça e da ocasião
em que você esteve no teatro em uma noite, por exemplo, cinza e fria), o número
do telefone de um/a amigo/a, que você nunca telefonou não se sabe o motivo. E
não é agora que você vai telefonar só porque encontrou o papelzinho no meio do
livro, em uma época em que todo mundo anota número de telefone direto no
celular. Mas você não quer ficar com o seu celular cheio de números de pessoas
que você mal conhece. E continuou: ...além dos trechos sublinhados que você
pode reler e refletir a razão que te fez marcá-los, reler as anotações e perceber
que são supérfluas e não precisariam estar “estragando” o livro, mas reconhecer
a sua própria letra denunciando que o livro te pertence e as anotações
incorporam algo como marcar o território. E aí você não empresta o livro para
ninguém, com vergonha da pessoa ler as anotações. Mas quem possui a necessidade
endógena de ter os livros em casa, enfileirados na estante, evita emprestá-los.
Para ele o livro é alienável.
Umberto di Rose
era um porre! Presumi e me arrependi de ter feito o pedido. É compreensível a
sensação de segurança ao possuir o livro em casa, no seu próprio reino, e ter a
possibilidade de pegá-lo a qualquer hora do dia ou da noite, entre as tarefas
domésticas, depois de um dia de trabalho, no intervalo de algum filme, na
metade da tarde de um domingo tedioso, em uma manhã de sábado, ainda na cama,
no fundo de uma madrugada de insônia. Nada mais seguro do que ter a certeza de
que o livro está na estante, à disposição de teus anseios, curiosidade,
solidão, inteligência, sensibilidade, durante vários anos. Sem mencionar a
beleza e o material da capa, a aparência de cada livro com tamanho e espessura
individuais. Mas não é por isso que ele não pode me emprestar um livro, porra!
Tá bom,
Umberto, já entendi! Não se preocupa não. Não era importante e eu ainda estou
terminando de ler outro livro. Obrigado mesmo assim!
Umberto digitou
algo no teclado, abriu janelas, fechou janelas. Seus movimentos eram rápidos, parecia
tocar um allegro maestoso, para piano
em D-flat major, de Khachaturian.
Passados vários minutos aproximou-se a um Brasileirinho,
de Waldir Azevedo. Ele usava uma munhequeira no punho direito para aliviar a
dor causada pela tendinite.
Falaram-me que não
era complicado atualizar o Windows XP, mas estou vendo que não é verdade. Ainda
bem que eu te chamei!
Demora um
pouco, mas não é complicado. Estou fazendo outra coisa. Quero te mostrar isto
aqui. Feche a porta!
Tive receio de
que fosse me ilustrar algum tedioso passo de informática, que não me
interessava. Mesmo assim fechei a porta e voltei a ficar em pé, ao seu lado,
verificando os procedimentos sem entender nada.
Ponha os óculos
3D!
Não sei onde
guardei. Ah, na gaveta! Abri a gaveta e peguei os óculos Samsung 3D SSG-3700CR/XC. Coloquei-os. De repente uma gigantesca janela se abriu a minha frente
e invadiu a sala, expandiu-se como o universo de Lamaître, e a antiga
biblioteca adquiriu contornos nítidos, semelhante à da Alexandria antes de
pegar fogo. Se bem que não a conheço, creio que ninguém sabe como era. Minto.
Não era como a da Alexandria, era como a sala teológica do Mosteiro Strahov.
Caralho,
Umberto, o que é isso?
É um programa
especial, em 3D, que estou desenvolvendo. Não revele a ninguém! Estamos no
ambiente de trabalho e como você sabe, recebemos ordens de não fazer nada
particular no horário do expediente. Mas eu queria mostrá-lo.
Na minha frente a ampla sala retangular materializou-se
magnífica, margeada por altas estantes, e o teto ornamentado com estuques e
afrescos barrocos coloridos exibia passagens
da Bíblia, havia uma mesa ao
centro e seis grandes globos terrestres e celestiais nas laterais, feitos de
cobre e sustentados pela armação de madeira talhada lustrosa, como o Globo
Blaeu ou Coronelli, o chão de assoalho de madeira dourada brilhava.
Puta que pariu, cara, que esplêndido!
Não fique aí
parado sem se mexer. Você pode se movimentar pela biblioteca, pegar os livros e
vê-los sentado à mesa nas laterais. Você só tem dez minutos e espero que
ninguém entre na sala neste ínterim.
O chefe não
chegava antes das dez e meia. Eu estava atônito, minha percepção procurava
abranger todas as estantes, mas eram muitas. Seria necessário bem mais do que
dez minutos para manusear os livros.
Anda logo,
Donato, o programa apaga automaticamente após dez minutos. Eu te disse que ele
ainda não está pronto.
Mas como eu
podia me apressar se eu estava paralisado? E como eu podia avaliar algo tão
maravilhoso em uma fração de dez minutos? Umberto não desviava a atenção do
monitor, seus olhos estavam fixados na tela.
Despertei do
enleio da perplexidade e dei alguns passos inseguros sobre o assoalho luzidio,
entrei na biblioteca. Parei diante da estante: vi a epopeia de Gilgamesh nas
doze tabuletas de barro; a Tora; a Bíblia; o Alcorão; os escritos de Confúcio; os manuscritos com a tradução do tibetano para o mongol
das escrituras budistas, Kanjur e Tanjur; o Códice de
Dresden; Ilíadas e Odisseia de Homero; Os Sermões do Padre Anchieta; A Trágica
História do Dr. Fausto, de Marlowe; Hamlet; A Divina Comédia; Os Aneis de
Niebelung; As Cartas dos Trovadores; Kojiki, de Ō no Yasumaro; Eugene Onegin; a primeira edição da Encyclopédie.
E em seguida não
pude ver mais porque a Beatriz bateu na porta e entrou sem esperar a resposta.
A imagem desapareceu num passe de mágica. Não sei se foi porque Umberto havia
dado o comando ou se os dez minutos haviam se esgotado. Só não desapareceu o
espanto na minha fisionomia o que a fez estranhar.
Credo, Donato,
que cara é essa? Estou atrapalhando alguma coisa?
Não, não. Eu só
levei um susto.
Com o que? Vocês
estão fazendo alguma coisa que não devam? Ou eu sou tão horrorosa assim?
Não. Quer dizer
sim. Não que você seja horrorosa! Nós é que estamos fazendo o que não devemos.
Sorri para disfarçar. Sabia que se eu dissesse a verdade a atraente Beatriz,
trajada com um vestido justo preto, usando os cabelos compridos loiros em um
rabo de cavalo e saltos altos, não acreditaria em mim.
Ah, não quero
nem saber o que é para não servir de cumplice. Disse ela brincando. Assine o
seu holerite, por favor! Você também, Umberto! Eu já vou deixar vocês com os
seus segredos. Beatriz nos entregou os papeis. Não farei o comentário sobre o
meu salário baixo que eu ganhava há anos e que não condizia com a minha
produtividade e eficiência comprovadas. Pronto, já fiz o comentário! Era
difícil de evitar o pensamento de mau agouro cada vez que eu assinava o
holerite. Guardei a minha cópia na gaveta. Umberto dobrou a sua e colocou-a no
bolso.
A vertigem ainda
não tinha me abandonado, agora adicionada à sensação de injustiça pelo salário
baixo. Beatriz saiu da sala e fechou a porta. Voltei-me para o Umberto.
Umberto este
programa é fantástico! Você ficará milionário!
Não se
entusiasme tanto assim! Faz anos que não consigo passar disso: dez minutos. Não
consigo prorrogar o tempo e nem ampliar as opções de comando. Além disso,
faltam muitos livros na biblioteca. Me inspirei em um conto de Borges.
O telefone tocou.
Era o Stevens informando que o Umberto deviria comparecer na sala dele. A
chefia o procurava. Passei o recado. Antes de sair ele instalou a ferramenta PCmover Express (software responsável pela migração dos
dados), deixou o meu computador fazendo o download da versão do programa e dos
novos updates, e instruiu-me a
reiniciá-lo assim que ele terminasse.
Foi tudo tão
rápido e um tal de me chamarem para executar essa ou aquela tarefa que passadas
algumas horas não me restou outra alternativa a não ser abrandar a perplexidade.
Não saí para o
almoço.
Alexandre
Groesse entrou na minha sala para indagar sobre a minuta do contrato para a
filial no Brasil. As papeladas haviam sido analisadas e enviadas ao
departamento competente. Esperava-se uma resposta que demorava. Não era
compreensível a demora, mas não havia alternativa a não ser esperar. Não são
todos que possuem uma solução ideal, existem problemas que sempre permanecerão
problemas e cujas soluções são essas: esperar, abstrair, fugir. Existem
respostas que são assim: vagarosas. Possuem o seu prazo e não adianta querer
adiantá-las. Surgirão somente quando for o momento delas. E se for tarde
demais. Paciência! Não é culpa da resposta, a culpa é de quem não soube
esperar, não soube planejar sua vida de forma que os atrasos e os imprevistos
fossem adicionados e resolvidos. E se a questão estava lá no departamento
competente e já se indagou e recebeu-se a resposta de que ainda não havia
resposta, então era melhor não insistir. Alexandre entendeu e saiu da sala com
o e-mail impresso na folha em que a pessoa pedia ajuda para obter, o mais breve
possível, aliás, em caráter de urgência —, a resposta. Como se uma resposta
deste tipo fosse algo banal que não necessitasse de antecedentes, documentos,
assinatura e carimbos, como se não fosse uma questão de leis e regulamentos.
Trabalhei a tarde toda, digitei cartas, emiti documentos, carimbei, copiei,
arquivei... —, mas a burocracia existia até mesmo em Uruk, ao sul da
Mesopotâmia, há três mil anos antes de Cristo. Na megacite, sem eletricidade, computador, telefone, caneta, já se
usavam os carimbos, os registros escritos com caracteres cuneiformes nas
tabuinhas de barro: lista dos reis, registro de alimentos e escravos, epopeias.
Isso prova que as coisas mudam, mas não mudam, trocam a casca, a polpa é a
mesma. O homem está para a burocracia como os macacos para os galhos. Thomas
Hobbe que o diga ao reconhecer que o homem não passa de um ser selvagem e
egoísta ao estar desprovido das leis, dos regulamentos, dos registros, dos
acordos, dos contratos redigidos, impressos, assinados, carimbados, copiados,
escaneados, salvos no disco rígido, no USB flash drive (e mesmo provido deles o
homem continua um ser egoísta, porém dotado agora de um egoísmo civilizado,
justificado por leis e burocracias).
Após o expediente encontrei Umberto, embaixo de uma bétula carregada de
brotos de folhas verdes, na calçada, em frente à empresa, e o interpelei.
Umberto, queria ver este programa de novo.
Não sei se vai dar, cara! Eu não deveria ter te mostrado. Ainda não está
terminado e é um segredo. Alguém pode roubar a minha ideia e conseguir
prorrogar o tempo e ficar milionário no meu lugar.
Não se preocupe que não vou revelar a ninguém. Só queria dar mais uma
olhada com calma. Talvez na minha casa, algum dia que você tenha tempo.
Não sei! Não tenho muito tempo à disposição. Os gêmeos dão muito trabalho e
a Mathilde anda doente estes dias.
Não. Não precisa ser hoje, nem amanhã. Algum dia desses!
Não era verdade, deveria ser o mais breve possível. Eu estava ansioso para
rever a biblioteca. Não faz mal que durasse apenas dez minutos. Eu poderia
reabrir a janela cem vezes, se fosse necessário. Mas não demonstrei a minha
impaciência. Ele poderia interpretá-la mal e negar-me de vez a oportunidade.
Tudo bem, Donato, eu te falo quando der.
Peguei o metrô e fui para casa. Ventava forte e gelado. Dentro do vagão
consegui um lugar para sentar e vim lendo, no eBook Readers Devices, um destes livros bons que conduz a gente em suas estações de histórias e
cenários, e a gente corre o risco de não perceber que chegou a estação na qual
a gente tem de descer, indo parar três ou cinco estações adiante, dar-se conta
quando as portas estão se fechando e, finalmente, descer e pegar o metrô, vindo
do lado oposto, e regressar até chegar ao destino certo.
Em casa, a Charlotte estava mais interessada em preparar o penne com molho branco e salmão do que no
meu comentário sobre uma biblioteca virtual inacabada e inacessível.
Mas você não está de dieta? Perguntei ao sentir o cheiro apetitoso do
molho.
Já fiz dieta a semana inteira. Hoje quero comer algo cheio de carboidrato,
gordura e delicioso.
Eu vou nessa! Charlotte possui problema de peso e eu de calvície aos trinta
e sete anos. Nada grave, dizemos um ao outro.
Jantávamos a mesa da sala, tomávamos vinho branco e comíamos a massa quando
sugeri fazermos um jantar para um colega meu de trabalho. Nos quatro anos que
moramos juntos eu nunca havia convidado ninguém da empresa. Alguns amigos nos
visitavam esporadicamente, mas geralmente estávamos ocupados e reservávamos os
dias livres para viajar.
Não sei, Donato! Esta semana tem reunião com os diretores do museu da
Suíça. Estamos organizando uma nova exposição e preciso preparar a apresentação
PowerPoint para a minha chefe. Tenho de incluir três slides e gráficos que
ainda não estão prontos. Até trouxe serviço para casa. Quem é este colega, eu o
conheço?
Sim. É aquele que estava com a esposa e os gêmeos na festa de Natal, no
restaurante árabe. Lembra?
Ah, sim! Conversei pouco com eles. Mas os gêmeos são umas gracinhas! Para
dois garotos de cinco anos eles se comportaram bem.
E que tal fazermos o jantar na quinta? Eu preparo tudo. Você não precisa se
preocupar com nada. E eles não ficarão até tarde por causa das crianças.
Eu preferia deixar para a outra semana. Sempre que temos reunião com
diretores é um nervosismo total no escritório. E realmente há muito trabalho agora.
Mas você não terá que se preocupar com nada, Schatz! Como eu já disse, eu preparo tudo. Você só precisa
conversar um pouco e sorrir. O resto é comigo!
Ainda acho melhor deixarmos para a outra semana.
Ok, Charlotte! Vamos fazer assim, se eles tiverem tempo nessa semana, eu
faço tudo, senão deixaremos para a outra.
Não era nenhum banquete, não sou Agaton. Meu estratagema consistia em
atrair o Umberto ao meu apartamento, envolvê-lo em uma conversa descontraída,
falar um pouco sobre o trabalho, mas não muito para não entediar as mulheres;
um pouco sobre arte, mas não muito para não entediar a Mathilde, a esposa do
Umberto que é enfermeira; um pouco sobre crianças, mas não muito porque não
tínhamos nenhuma, e por fim levá-lo ao meu escritório com o pretexto de
mostrar-lhe as fotos da estadia em Florianópolis e solicitar-lhe que abrisse o
programa. Com a comida eu não me preocupava. Planejava encomendar alguma coisa
pronta: patê grego, folhas de uva recheadas, pão turco, queijo e vinho francês,
panna cotta de sobremesa encomenda no
italiano da esquina de casa.
No dia em que Umberto aceitou o convite para jantar em casa fui trabalhar
pedalando pela ciclovia da Potsdamer Strasse, apesar da garoa flutuante pairar
no ar como uma névoa e manchar a paisagem de cinza, umedecendo a minha cara.
Peguei uma brecha nos congestionamentos. O fluxo contém os interstícios de
menor fluência, o que chamo de hemistíquios
da metrificação do trânsito, como se trânsito tivesse o mínimo a ver com
poema alexandrino. Desta vez, não me deparei com a caminhonete entregando
mercadoria estacionada na ciclovia, nem com o ponto de ônibus cheio e gente
espalhada na ciclovia, nem com o passageiro abrindo a porta do carro
estacionado sem verificar se há bicicleta percorrendo a ciclovia. Hoje foi o
dia que os hemistíquios se deram de
forma sucessiva e levaram-me a chegar cedo ao escritório. Liguei o computador e
fui pegar um café para tomar com o lanche comprado no caminho. O computador não
funcionava direito. Esperei até o Umberto chegar.
Umberto,
estou com problemas de travamento no Firefox. Você poderia dar uma passadinha
na minha sala?
Agora
não dá, meu irmão! Irei lá pelas onze. Enquanto isso faça a limpeza de cookies e cache e reinicie o Firefox! Se não der certo verifique os plugins e reinstale o Firefox! Talvez
assim você o desbloquei.
Acho
melhor você fazer isso. Pode ser que eu faça alguma coisa errada e aí estraga
tudo.
Não é
complicado não!
Eu
sabia que não era complicado. O problema com o Firefox veio a calhar para ser
usado como pretexto e eu atraí-lo à minha sala, criando a oportunidade de
entrar de novo na biblioteca.
Vou
tentar, Umberto, mas de qualquer maneira venha às onze verificar se está tudo
correto.
Você
também pode fazer o resete, restaure
todas as preferências para padrão do Firefox.
Não,
isso não sei fazer não!
É só
clicar no botão ,
ir para o dub-menu
e selecionar . Depois acessar o menu about:support na barra de endereços para abrir a
página Troubleshooting information. , digitar
Não, cara! Não
vai dar certo. Eu te espero às onze.
Ok.
Deixa prá lá. Eu passo aí depois.
Ele
não veio às onze, meia hora depois estava na minha sala. Disse ter arrumado um
tempo, mas estava com pressa. Executaria o serviço rapidamente. E logo sentou-se
em frente ao computador e começou a fazer o resete.
Hesitei um instante em pedir para colocar o programa fantástico, com receio
dele perceber a minha agonia. Eu desconhecia o motivo pelo qual eu havia sido o
previlegiado em vê-lo.
Você
nem sequer chegou a fazer a limpeza dos cookies,
Donato!
Eu ia
fazer isso agora. Não esperava que você viesse tão rápido.
Enquanto
os cookies estavam sendo apagados e
ele esperava o computador terminar o comando perguntei-lhe por que havia me
mostrado o programa das bibliotecas.
Foi
só pra me deixar curioso e ansioso, Umberto? Você sabia que eu ia gostar e não te
deixaria mais em paz.
Não
pensei nas consequências. Confesso que fui impulsivo. Mas eu queria saber a
opinião de alguém e as circunstâncias te escolheram.
Ah,
quem bom! Que sorte a minha, hein?! E será que não dá pra me mostrar mais uma
vez? Só mais uma vez? Não vou perguntar mais.
Não
era verdade. Assim que eu terminei de falar antevi que eu nunca mais o tiraria da
cabeça.
O
programa não está pronto e está com defeito. Não adianta entrar em uma
biblioteca cujos livros estão pela metade, desorganizados, e faltam várias
obras. Você só pode ler as primeiras páginas. Não serve um programa assim!
Sim,
pra mim serve sim. Eu só quero olhar. Não tenho tempo de ler estes livros.
Quero apenas dar mais uma olhadinha, nada mais. Qual é, cara? Quebra essa pra
mim!
Umberto
mirou-me indeciso e não atendeu ao meu pedido. Mas aceitou ir jantar em casa.
Lembro-me
de não ter conseguido dormir bem na noite de quarta para a quinta. Acordei
ansioso, suado e cansado. Trabalhei inquieto e tranquilizei-me somente após
passar no mercado e chegar em casa.
Naquela
noite, a voz de Charlotte alcançou a cozinha ao abrir a porta e exclamar hallo. Escutei-a tirar os sapatos no
corridor, depositar a bolsa sobre o móvel, ao lado do cabideiro, e pendurar o
casaco de meia estação no cabide, justamente no momento que eu jogava o pacote vazio
de sopa de champignon knorr no fundo da lata de lixo. Charlotte não costumava
comprar comida industrializada, acreditava nos efeitos saudáveis dos alimentos
biológicos e na melhor qualidade dos produtos. Não podia saber que a sopa era
de pacotinho.
O que
você está cozinhando? Ela se aproximou de mim e me beijou leve na boca.
Estou
preparando uma sopa de champignon. E joguei dentro da panela os champignons
frescos cortados, para disfarçar a sopa de pacote.
Não
sabia que você sabia fazer sopa de champignon! Ela estava surpresa.
Há
muitas coisas a meu respeito que você ainda não sabe. Retruquei sorrindo
maliciosamente.
Espero
que sejam só coisas boas, Schatz!
Os
convidados chegaram pontuais e, para o meu alívio, sem as crianças. Sentamo-nos
à mesa, na sala de estar. Brindamos o encontro com o château haut-brion, carbanet
sauvignon, e servi a sopa que foi bastante elogiada. Comemos os espetinhos
de carne de carneiro assada e salada. E no final das fatias de pão com queijo,
frios e patês, Charlotte foi à cozinha pegar a sobremesa. Mathilde a ajudou
levando a louça suja para ser substituída pelos pratinhos. A retirada das
mulheres favoreceu-me a colocar o meu plano em ação. Eu queria cercá-lo como na
Batalha de Gaugamela. Solicitei ao Umberto que me acompanhasse até meu
escritório para eu mostrar-lhe a foto do apartamento que estávamos comprando,
em Florianópolis. Umberto considerou interessante a nossa iniciativa e comentou
que talvez ele também se prontificasse a comprar um imóvel no Brasil. O
computador estava ligado e passei as fotos, ilustrei uma ou outra curiosidade
da região, as praias, as montanhas, relatei sucintamente sobre as papeladas e
leis, e sem terminar o assunto, perguntei-lhe: e já que estamos aqui sozinhos,
você poderia abrir o programa de novo? Esta é a última vez que eu te peço.
Donato,
já te disse, o programa não está pronto.
Eu
sei, mas acontece que na empresa eu estava tenso, com receio do chefe chegar e,
no fundo, não consegui ver nada.
Umberto
ficou em silêncio, mantinha o olhar em um ponto fixo no monitor, exatamente na
onda macia de uma praia onde eu e a Charlotte aparecia na tela, à direita,
vestidos de trajes de banho, descalços, usando óculos escuros, sorrindo
abraçados.
Está
bem, Donato, esta é a última vez.
A
seriedade contida em sua voz me intimidou, mas o espanto foi logo desvanecido
pela minha felicidade em ter conseguido o que eu queria. Afinal o que deseja, deseja aquilo de que é carente.
Levantei-me e ofereci-lhe a cadeira. Ele sentou-se e iniciou o concerto no
teclado. Coloquei os óculos 3D e a biblioteca expandiu-se diante de mim
estupefato.
Sabendo
que eu disponha de apenas dez míseros minutos queria ver o máximo possível. Vi O Conto de Genji, de Murasaki Shikibu; Um tratado sobre as línguas Khoisan e
outro sobre os idiomas
nilo-saarianas; o Pui, escrito no idioma africano Soninke (um
conjunto de canções heróicas dividido em doze partes), e o Dausi, do legendário
Reino de Gana (poema épico de cento e cinquenta versos isentos de metrificação
regular); um escrito mitológico em
niimiipuutimt (língua do povo indígena Nez Percé, natural do bacia do Rio
Columbia); a reprodução da Tabuleta
de Baška (escrita no alfabeto glagolítico);
uma folha do manuscrito Corpus Aristotelicum, e um texto
sobre política; vi Prólogo, de Laércio. E me adveio Sócrates e Platão que eu
esperava estivessem por ali, e estavam. Mas alguma coisa aconteceu. Outra
janela maior abriu sobrepondo-se a essa e começou a expandir-se no espaço onde
eu me encontrava. Algo como uma catedral abrigando a alta cúpula de onde a claridade
germinava, tal qual a Biblioteca Britânica. Fui tomado por uma forte vertigem,
o espaço girou. Surgiu mais uma janela sobrepondo-se a essa e expunha a ampla e
elevada ala com a majestosa cúpula ornamentada de estuques, afrescos e vitrais,
nas laterais duas escadarias de mármore convidavam a subir para a outra ala
repleta de pilares gregos, também de mármore, com o capitel coríntio exibindo a profusão de rebentos e folhas de acanto, o solo era
coberto por mosaíco florístico e geométrico, como a entrada da Biblioteca do
Congresso.
A
tontura ainda influenciava a minha visão. Será que devido ao vinho? Umberto
caprichou no programa! Pensei. Ao entrar por uma porta ou portal eu me
encontrava em outra biblioteca. Subi escadas, desci escadas e escadarias largas
e estreitas que poderiam ser as de Escher. Mas as de Escher se entrecruzam, não
possuem saídas, diferentes dessas que afluem a outras alas, salas, patios e
paços. Entrei por uma porta que foi dar na Biblioteca de Moscou, outra em uma
pequena sala da biblioteca com o telhado azul, em Anadyr, cujo vendaval volátil
soprava a neve no reverso da janela embranquecida e causou-me arrepios de frio.
Desci uma escada de nove degraus que foi dar em uma sala, na Biblioteca de Ulaanbaatar.
Saí por uma porta lateral e atingi a pequena biblioteca de
Niquinohomo,
com o ventilador ligado no teto. Desci três degraus e fui parar em um
ensolarado e quente pátio de cimento, atravessei-o e adentrei na biblioteca de
Macondo (pela varanda
pude ver a árvore florindo borboletas amarelas que voavam em um enxame cada vez
que o sopro da brisa clara a atingia). Saí por uma trilha que cingia um lago de
vitória-régias, atravessando a estreita ponte de nós de corda grossa e entrando
em uma construção de cimento e madeira atingi a ala que parecia ser a do teto
inclinado da Biblioteca da Floresta, no Acre.
Não sabia que
direção seguir no interior deste programa que mais assemelhava ser de Dédalo do
que de Umberto di Rose: cidadão italiano, casado, pai de gêmeos, emigrante,
analista de sistemas, funcionário subalterno em uma multinacional, amante da
arte e literatura e simplesmente meu colega de trabalho. Abri mais uma porta
que me levou à sala pequena e modesta da biblioteca de Ushuaia, no instante de
um ocaso azul escuro, vermelho e ametista rutilar no horizonte. Atravessei uma
pequena ponte de madeira ladeada por plantas e fui chegar à Biblioteca Stanton.
Ao sair, caminhei pelo paço episcopal e abri a grande porta de madeira
esculpida e fui me encontrar no piso tridimensional quadricular da Biblioteca
da Abadia Beneditina de Admont. A arquitetura barroca ainda me causa imensa
admiração! O teto é adornado por grandes afrescos que exibem imagens bíblicas
do juízo final, as estantes brancas são contornadas e enfeitadas por pinturas
douradas, e das altas janelas a dramática claridade engendra-se entre as estantes.
E da mesma forma a Biblioteca da Abadia de São Galo me impressiona! Os afrescos
e os estuques no teto, as estantes emolduradas pelos esbeltos pilares gregos de
mármore escuro, o solo formado por mosaíco de madeira de carvalho são
fascinantes! É como a Biblioteca do Mosteiro de Wiblingen, visitada por mim e
Charlotte, na época em que vivíamos juntos, no feriado do dia primeiro de maio
de 2008. Foi um mês quente, seco e cheio de sol. E a beleza arquitetônica da Biblioteca
do Mosteiro de Wiblingen permaneceu gravada na minha memória.
E prossegui,
acessei outras e outras bibliotecas como em um calendoscópio.
Eu me movia em três planos de gravitação interligados por escadas, portas,
pátios, arcos, elevadores horizontais. Entrei na Biblioteca Mário de Andrade,
onde eu costumava ir, no intervalo do almoço, quando era jovem e trabalhava de office boy para uma firma, no centro de
São Paulo. Saí dali e cheguei de repente a um pátio cujo solo era de piso cor lápis-lazúli,
atravessei-o como se eu andasse sobre a superfície de um mar profundamente azul
e ausente de ondas, subi dois degraus, olhei para o alto e vislumbrei as
esplêndidas muqarnas de ladrilhos
azuis, suspensas no alto como estalactite, minha visão desceu para as paredes
de azulejos esmaltados cobertos de arabescos e bismillah, em forma de flores,
com o dizer: Em nome de Deus, o Clemente,
o Misericordioso, e alcancei o que me pareceu ser a biblioteca da Mesquita
de Jameh.
Agora
eu me encontrava em uma sala adjacente, na biblioteca da Mesquita de Jameh,
cheia de tapetes persas no chão e senti-me feliz em poder sentar em um divã do
leste e oeste, para descansar e averiguar a minha situação.
Meu
celular marcava cinco horas da madrugada. Eu já estava sete horas no interior
do programa? Será que Umberto conseguiu reparar o defeito? E agora como eu faço
para sair? Meu celular não possuía conexão. Mas eu estava em meu apartamento no
bairro Wilmersdorf, não estava? Havia algo errado com a data, não
era mais a mesma, pelo registro do meu
celular haviam se passado sete semanas. Ou sete anos? Eu não entendia por que
eu ainda me encontrava no interior das bibliotecas e comecei a raciocinar uma
razão lógica: a) o meu celular estava com defeito; b) Umberto tentava desligar
o programa e não conseguia; c) ele havia reparado o defeito e o fechamento do
programa consistia em que o próprio usuário buscasse sozinho uma saída no meio
da miríade de bibliotecas; d) Umberto reparou o programa e esqueceu de dar-me
as instruções de saída; e) eu deveria ficar tranquilo e não procurar a saída e
esperar que o Umberto fechasse o programa; f) eu deveria apenas deleitar-me com
as leituras que estavam à minha disposição e esquecer que eu manuseava um
programa; g) eu deveria ter enloquecido, sofrendo do mal de Alonso Quijano, com
a diferença que eu não saía lutando contra moinhos de vento, apenas me
imaginava encafuado nas bibliotecas do mundo, abraçado à impossível missão de
ler todas as obras essenciais da Humanidade, e estas janelas e bibliotecas não
passariam de fruto da minha imaginação. Eu mesmo deveria estar na cama
sonhando, no meu apartamento, em Berlim, e a qualquer momento despertaria à
realidade verossímil.
Para
uma tecnologia que absorve, desta forma, o usuário no interior das imagens
estereocópicas seriam necessários, além de outros recursos, pelo menos, 105 terabytes de memória e 2 petabytes de espaço em disco rígido e
a mais aperfeiçoada técnica 3D. Meu computador era bom, mas não possuía tal capacidade,
era um Apple
MacBook Air, 13 polegadas: 256 GB, Processador Intel Core i5, dual-core a 1,4 GHz, Turbo Boost até 2,7 GHz,
Intel HD Graphics 5000, 4 GB de memória, 256 GB de armazenamento
flash com base em PCIe1. Não compreendo como Umberto conseguiu
desenvolver o programa sem o hardware
específico!
As
obras dispostas nas estantes das miríficas bibliotecas estão completas, é só lê-las,
mesmo em um idioma estrangeiro. A tradução ocorre simultânea em cima do texto, em kwadi, em tupi ou jês, em xakribá,
em one, em cassúbio, em sichuanês, em sânscrito, em punjabi ou urdu, em wiyot,
em soyot, em te’un, em barzani judeu neo-aramaico, em sogoo, em birgid e
assim por diante em todas as línguas existentes e extintas.
Leio
os livros como se a vida dependesse disso e eu não precisasse de outra coisa.
Não sinto fome ou sede. Eu leio.
Vez
ou outra, uma suave saudade passa como
uma brisa no meu rosto, como a da minha mãe, professora de corte e
costura aposentada, arrumando-se
em frente ao espelho na porta do guarda-roupa, vestida com blazer MNG Barcelona big pied cinza claro, com padronagem de pied poule e dois bolsos,
modelagem reta com mangas longas e gola alfaiate, e vestido tubinho vermelho, minha
mãe me dizia que a vida é de alinhamentos, muitas vezes o avesso da coisa
direita, cheia de costura galoneira, zigue zague, pontos overloques, pespontos,
alinhavos, ponto corridor, chuleado, e que sua geometria são as curvas; saudade
de um episódio feliz de quando eu era menino e
brincava na praia, com os meus primos, cavoucando a areia acreditando chegar do
outro lado do planeta; saudade de meu pai, tios e avós arrastando a rede no mar
prateado de Peruíbe, trazendo-a cheia de sirís e peixes; do brilho nácar das
escamas do peixe pulando dentro da pia; de ver a esfera do sol alaranjado
erguendo-se de trás das ondas; dos jogos de futebol no pátio do colégio onde os
dentes de leões cresciam nos interstícios do cimento rachado; saudade dos olhos
negros opala de Iracema da Luz Diottyma, minha primeira namorada; saudade de
uma concha borboleta presa na areia; dos caroços de jabuticabas cuspidos e
transformados em estrelas negras no chão; das faichas vermelhas, amarelas,
rochas, rosas, dos campos de tulipas, nas autoestradas, a caminho da Holanda;
da minha mão segurando o volante do automóvel e a outra acariciando a mão de
Charlotte, sentada ao meu lado; saudades do dia em que despertamos de manhã no
quarto de uma pequena pensão, no pé da montanha, nas Dolomitas, com as flores
no parapeito das janelas; de banhar o olhar no riacho verde escorrendo das
pedras e findando-se em um lago esmeralda; saudade da voz sensual da Charlotte
pronunciando meu nome ao ouvido no instante do orgasmo.
Fortuitamente
as recordações afluem à minha memória e eu suspiro nostálgico.
No
mais, leio. Eu leio A Origem das
Espécies, de Darwin; Al-Kitāb
al-muḫtaṣar fī ḥisāb al-ğabr wa-l-muqābala (livro do cálculo algébrico
e confrontação), de Abū ‘Abd Allāh
Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmī; os versos do Avesta, de Zaratustra; Pachatandra, de
Vishnu Sarma; Calila e Dimna (Os Cincos Princípios, a versão das fábulas hindus
de Vishnu Sarma traduzidas para o árabe por Ibn al-Mukafa); Decamerão, Os
Ensaios de Montaigne; Cosmos, de
Humboldt; Popol Vuh; Innumerabiles Fabulae, de Herodot; eu leio… E
se eu não morri, ainda estou aqui, no interior de um software que apresenta todas as bibliotecas do mundo, lendo, até
hoje.
Berlim,
2014
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