sexta-feira, 25 de setembro de 2015

CONTOS CORRENTES

Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou poemas em revistas e jornais entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Argos e Alforja (México). Participou do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua.

CONTO:
As janelas

A primeira vez que eu vi o programa, se bem me recordo, foi no dia em que despertei com o melancólico ruído do dedilhar da chuva no vidro da janela, mesclava-se à candente voz de Charlotte pronunciando o meu nome. Donato, acorda! Bom dia! Senti os lábios dela pousarem leves e breves nos meus. Acorda, Donato Rotiel Borgues, senão você vai perder a hora.
Ah, não! Está chovendo! Os dedos da chuva insistiam na janela.
Sim, as plantas precisam de chuva. Ela me consolou ao mesmo tempo que se despedia de mim. Tchau, eu já vou.
Não vou poder ir de bicicleta hoje. Constatei desanimado.
Quer que eu te leve de carro? Mas você tem de se apressar.
Não, não precisa não, obrigado! Vou de metrô. Ela estava debruçada sobre mim ainda deitado na cama. Não usávamos cortinas na janela devido ao longo inverno embebido de escuridão. No entanto, na primavera clareava mais cedo e a luz excessiva incomodava. Mas apreciávamos ser incomodados pela claridade sobeja e a celeuma dos pássaros cantando.
Não me aperte assim! Você está amassando a minha roupa. Queixou-se Charlotte. Tchau. Bom trabalho! Ela me deixava e ia embora. Charlotte Werther entrava mais cedo do que eu no trabalho. Era disciplinada. Eu chegava atrasado quase diariamente.
Levantei, tomei a ducha e fiz o café que sorvi em grandes goles, em pé, segurando a caneca quente, diante da porta de vidro que dava para o alpendre. Eu contemplava, do segundo andar, os espelhos partidos no chão da rua refletindo pedaços das fachadas das casas antigas, as sacadas com vasos de plantas e flores, e o outdoor nas entranhas de uma obra. Era uma propaganda de cerveja com o grafite-bigode na cara sorridente do jovem e ao fundo a paisagem crepuscular flavescente com sabor de aventura e férias. Mantive a vã esperança de que a chuva passasse até a hora de eu sair, mas engrossou. Precisei pegar o metrô. 
Subi as escadas cheias de gente, na estação Zoologischer Garten, e circundado pela multidãozinha debatendo-se, saindo dos vagões, cruzando direções, fui compelido a pensar sobre as diferenças de ontem e de hoje. As diferenças surgiam irremediáveis, um dia nunca era igual ao outro, embora tivéssemos a impressão de que nada havia mudado, porque o que mudara não nos interessava e ansiávamos outras mudanças, as radicais que nos remetiam à realização dos nossos desejos. Estas mudanças eram as mais difíceis! Enquanto estas mudanças não aconteciam eu ficava com essas minimalistas, como por exemplo, encontrar outros passageiros dentro do vagão ou não ver a moça de salto alto, casaco de couro e pele, bolsa de marca de grife, que vez ou outra aparecia entre os passantes. Comprei um sanduíche de pão com presunto, tomate e alface, e um copo de coffee to go. Fui sentado no banco do metrô tomando o café e comendo o sanduíche.
Era 2014, ano em que as manifestações políticas se sucediam, contra a bolsa de valores, os bancos, e em certos países as manifestações haviam se iniciado. Época das queixas de cidadãos nas ruas e de um Amarildo Dias de Souza sumir nas mãos da polícia carioca, além dos outros que sempre desapareceram e desaparecerão nas mãos da polícia de países lentos com a justiça. Época de compartilhar a realidade no Facebook e de possuir mais de trezentos amigos.
Era nove e um, e eu uma ostra no interior da sala de um escritório. O telefone tocava e eu ouvia a voz da pessoa com suas dúvidas em relação ao requerimento do documento. Eu era de responder as indagações mais simples. Minhas respostas eram evidentes. Há algo de perverso em um mundo desnecessariamente fácil, baseado em indagações que não são uma busca porque o óbvio da resposta não oferece espaço para interpretações diferentes. Dúvida requer compreensão. É um paradoxo, mas para se indagar sobre o que não entendemos, temos que primeiramente entender o que escapa de nossa compreensão. E é uma arte saber perguntar.
Neste dia, pedi um livro emprestado ao Umberto di Rose, o italiano, magro, alto, miope, que veio à minha sala fazer a atualização do Windows XP. Era função do Steven Jobbys, mas eu não suportava a arrogância deste cara, que não passava de um puxa saco e só conseguia ascensão na firma por causa de seus servicinhos particulares de informática à chefia! Pedi ao Umberto, programador e amante da literatura. O passa tempo de Umberto consistia em montar páginas na internet contendo as obras preferidas dele. Montou os sites de Dante, Goethe, Fausto, e Guimarães Rosa, Grandes Sertões Veredas, repletas de pastas, abas e links com janelas carregadas de imagens geográficas ou ilustrações, referências biobibliográficas e cinematográficas, e assim por diante. Umberto me revelou que trabalhava na página de Pirandello e a próxima seria Geórgicas, de Virgílio.
Umberto, sentado à minha mesa digitava qualquer coisa no teclado, olhava para a tela concentrado nos movimentos luminosos do monitor, não me falou se emprestaria o livro ou não. Mas, sem tirar os olhos da tela, fazendo o backup dos meus arquivos, começou a discursar sobre a necessidade de se ter livros em casa, enfileirados na estante, dando de cara com o dono. O e-book era para leituras rápidas, que não carecem de anotações nas margens ou escritas em pedaços de papeis avulsos esquecidos no meio das páginas, que não carecem de sublinhamentos ou dobras de páginas.
Umberto prosseguia com o monólogo, certificou-se ao mesmo tempo, de haver espaço livre suficiente no disco rígido. Havia no mínimo 3000MB de espaço disponível para instalar a versão de 64 bits do Windows 8.1.
No meio de um livro você pode encontrar uma nota de dinheiro esquecida, uma anotação interessantezinha rabiscada e com letrinhas quase ilegíveis, que pode ser trabalhada e transformada em uma obrinha literária, uma folha de álamo vermelha de outono, o tíquete do cinema, e lembrar-se daquele filme, agora antigo, e da ocasião em que você esteve no cinema com o/a amigo/a que sumiu do mapa ou o/a amigo/a leal ou o/a namorado/a ou o/a amante —, falava mencionando o masculino e feminino —, o tíquete do teatro (lembrar-se da peça e da ocasião em que você esteve no teatro em uma noite, por exemplo, cinza e fria), o número do telefone de um/a amigo/a, que você nunca telefonou não se sabe o motivo. E não é agora que você vai telefonar só porque encontrou o papelzinho no meio do livro, em uma época em que todo mundo anota número de telefone direto no celular. Mas você não quer ficar com o seu celular cheio de números de pessoas que você mal conhece. E continuou: ...além dos trechos sublinhados que você pode reler e refletir a razão que te fez marcá-los, reler as anotações e perceber que são supérfluas e não precisariam estar “estragando” o livro, mas reconhecer a sua própria letra denunciando que o livro te pertence e as anotações incorporam algo como marcar o território. E aí você não empresta o livro para ninguém, com vergonha da pessoa ler as anotações. Mas quem possui a necessidade endógena de ter os livros em casa, enfileirados na estante, evita emprestá-los. Para ele o livro é alienável.
Umberto di Rose era um porre! Presumi e me arrependi de ter feito o pedido. É compreensível a sensação de segurança ao possuir o livro em casa, no seu próprio reino, e ter a possibilidade de pegá-lo a qualquer hora do dia ou da noite, entre as tarefas domésticas, depois de um dia de trabalho, no intervalo de algum filme, na metade da tarde de um domingo tedioso, em uma manhã de sábado, ainda na cama, no fundo de uma madrugada de insônia. Nada mais seguro do que ter a certeza de que o livro está na estante, à disposição de teus anseios, curiosidade, solidão, inteligência, sensibilidade, durante vários anos. Sem mencionar a beleza e o material da capa, a aparência de cada livro com tamanho e espessura individuais. Mas não é por isso que ele não pode me emprestar um livro, porra!
Tá bom, Umberto, já entendi! Não se preocupa não. Não era importante e eu ainda estou terminando de ler outro livro. Obrigado mesmo assim!
Umberto digitou algo no teclado, abriu janelas, fechou janelas. Seus movimentos eram rápidos, parecia tocar um allegro maestoso, para piano em D-flat major, de Khachaturian. Passados vários minutos aproximou-se a um Brasileirinho, de Waldir Azevedo. Ele usava uma munhequeira no punho direito para aliviar a dor causada pela tendinite.
Falaram-me que não era complicado atualizar o Windows XP, mas estou vendo que não é verdade. Ainda bem que eu te chamei!
Demora um pouco, mas não é complicado. Estou fazendo outra coisa. Quero te mostrar isto aqui. Feche a porta!
Tive receio de que fosse me ilustrar algum tedioso passo de informática, que não me interessava. Mesmo assim fechei a porta e voltei a ficar em pé, ao seu lado, verificando os procedimentos sem entender nada.
Ponha os óculos 3D!
Não sei onde guardei. Ah, na gaveta! Abri a gaveta e peguei os óculos Samsung 3D SSG-3700CR/XC. Coloquei-os. De repente uma gigantesca janela se abriu a minha frente e invadiu a sala, expandiu-se como o universo de Lamaître, e a antiga biblioteca adquiriu contornos nítidos, semelhante à da Alexandria antes de pegar fogo. Se bem que não a conheço, creio que ninguém sabe como era. Minto. Não era como a da Alexandria, era como a sala teológica do Mosteiro Strahov. 
Caralho, Umberto, o que é isso?
É um programa especial, em 3D, que estou desenvolvendo. Não revele a ninguém! Estamos no ambiente de trabalho e como você sabe, recebemos ordens de não fazer nada particular no horário do expediente. Mas eu queria mostrá-lo.
Na minha frente a ampla sala retangular materializou-se magnífica, margeada por altas estantes, e o teto ornamentado com estuques e afrescos barrocos coloridos exibia passagens da Bíblia, havia uma mesa ao centro e seis grandes globos terrestres e celestiais nas laterais, feitos de cobre e sustentados pela armação de madeira talhada lustrosa, como o Globo Blaeu ou Coronelli, o chão de assoalho de madeira dourada brilhava.
Puta que pariu, cara, que esplêndido!
Não fique aí parado sem se mexer. Você pode se movimentar pela biblioteca, pegar os livros e vê-los sentado à mesa nas laterais. Você só tem dez minutos e espero que ninguém entre na sala neste ínterim.
O chefe não chegava antes das dez e meia. Eu estava atônito, minha percepção procurava abranger todas as estantes, mas eram muitas. Seria necessário bem mais do que dez minutos para manusear os livros.
Anda logo, Donato, o programa apaga automaticamente após dez minutos. Eu te disse que ele ainda não está pronto.
Mas como eu podia me apressar se eu estava paralisado? E como eu podia avaliar algo tão maravilhoso em uma fração de dez minutos? Umberto não desviava a atenção do monitor, seus olhos estavam fixados na tela.
Despertei do enleio da perplexidade e dei alguns passos inseguros sobre o assoalho luzidio, entrei na biblioteca. Parei diante da estante: vi a epopeia de Gilgamesh nas doze tabuletas de barro; a Tora; a Bíblia; o Alcorão; os escritos de Confúcio; os manuscritos com a tradução do tibetano para o mongol das escrituras budistas, Kanjur e Tanjur; o Códice de Dresden; Ilíadas e Odisseia de Homero; Os Sermões do Padre Anchieta; A Trágica História do Dr. Fausto, de Marlowe; Hamlet; A Divina Comédia; Os Aneis de Niebelung; As Cartas dos Trovadores; Kojiki, de Ō no Yasumaro; Eugene Onegin; a primeira edição da Encyclopédie.
E em seguida não pude ver mais porque a Beatriz bateu na porta e entrou sem esperar a resposta. A imagem desapareceu num passe de mágica. Não sei se foi porque Umberto havia dado o comando ou se os dez minutos haviam se esgotado. Só não desapareceu o espanto na minha fisionomia o que a fez estranhar.
Credo, Donato, que cara é essa? Estou atrapalhando alguma coisa?
Não, não. Eu só levei um susto.
Com o que? Vocês estão fazendo alguma coisa que não devam? Ou eu sou tão horrorosa assim?
Não. Quer dizer sim. Não que você seja horrorosa! Nós é que estamos fazendo o que não devemos. Sorri para disfarçar. Sabia que se eu dissesse a verdade a atraente Beatriz, trajada com um vestido justo preto, usando os cabelos compridos loiros em um rabo de cavalo e saltos altos, não acreditaria em mim.
Ah, não quero nem saber o que é para não servir de cumplice. Disse ela brincando. Assine o seu holerite, por favor! Você também, Umberto! Eu já vou deixar vocês com os seus segredos. Beatriz nos entregou os papeis. Não farei o comentário sobre o meu salário baixo que eu ganhava há anos e que não condizia com a minha produtividade e eficiência comprovadas. Pronto, já fiz o comentário! Era difícil de evitar o pensamento de mau agouro cada vez que eu assinava o holerite. Guardei a minha cópia na gaveta. Umberto dobrou a sua e colocou-a no bolso.
A vertigem ainda não tinha me abandonado, agora adicionada à sensação de injustiça pelo salário baixo. Beatriz saiu da sala e fechou a porta. Voltei-me para o Umberto.
Umberto este programa é fantástico! Você ficará milionário!
Não se entusiasme tanto assim! Faz anos que não consigo passar disso: dez minutos. Não consigo prorrogar o tempo e nem ampliar as opções de comando. Além disso, faltam muitos livros na biblioteca. Me inspirei em um conto de Borges.
O telefone tocou. Era o Stevens informando que o Umberto deviria comparecer na sala dele. A chefia o procurava. Passei o recado. Antes de sair ele instalou a ferramenta PCmover Express (software responsável pela migração dos dados), deixou o meu computador fazendo o download da versão do programa e dos novos updates, e instruiu-me a reiniciá-lo assim que ele terminasse.
Foi tudo tão rápido e um tal de me chamarem para executar essa ou aquela tarefa que passadas algumas horas não me restou outra alternativa a não ser abrandar a perplexidade.
Não saí para o almoço.
Alexandre Groesse entrou na minha sala para indagar sobre a minuta do contrato para a filial no Brasil. As papeladas haviam sido analisadas e enviadas ao departamento competente. Esperava-se uma resposta que demorava. Não era compreensível a demora, mas não havia alternativa a não ser esperar. Não são todos que possuem uma solução ideal, existem problemas que sempre permanecerão problemas e cujas soluções são essas: esperar, abstrair, fugir. Existem respostas que são assim: vagarosas. Possuem o seu prazo e não adianta querer adiantá-las. Surgirão somente quando for o momento delas. E se for tarde demais. Paciência! Não é culpa da resposta, a culpa é de quem não soube esperar, não soube planejar sua vida de forma que os atrasos e os imprevistos fossem adicionados e resolvidos. E se a questão estava lá no departamento competente e já se indagou e recebeu-se a resposta de que ainda não havia resposta, então era melhor não insistir. Alexandre entendeu e saiu da sala com o e-mail impresso na folha em que a pessoa pedia ajuda para obter, o mais breve possível, aliás, em caráter de urgência —, a resposta. Como se uma resposta deste tipo fosse algo banal que não necessitasse de antecedentes, documentos, assinatura e carimbos, como se não fosse uma questão de leis e regulamentos.
Trabalhei a tarde toda, digitei cartas, emiti documentos, carimbei, copiei, arquivei... —, mas a burocracia existia até mesmo em Uruk, ao sul da Mesopotâmia, há três mil anos antes de Cristo. Na megacite, sem eletricidade, computador, telefone, caneta, já se usavam os carimbos, os registros escritos com caracteres cuneiformes nas tabuinhas de barro: lista dos reis, registro de alimentos e escravos, epopeias. Isso prova que as coisas mudam, mas não mudam, trocam a casca, a polpa é a mesma. O homem está para a burocracia como os macacos para os galhos. Thomas Hobbe que o diga ao reconhecer que o homem não passa de um ser selvagem e egoísta ao estar desprovido das leis, dos regulamentos, dos registros, dos acordos, dos contratos redigidos, impressos, assinados, carimbados, copiados, escaneados, salvos no disco rígido, no USB flash drive (e mesmo provido deles o homem continua um ser egoísta, porém dotado agora de um egoísmo civilizado, justificado por leis e burocracias).
Após o expediente encontrei Umberto, embaixo de uma bétula carregada de brotos de folhas verdes, na calçada, em frente à empresa, e o interpelei.
Umberto, queria ver este programa de novo.
Não sei se vai dar, cara! Eu não deveria ter te mostrado. Ainda não está terminado e é um segredo. Alguém pode roubar a minha ideia e conseguir prorrogar o tempo e ficar milionário no meu lugar.
Não se preocupe que não vou revelar a ninguém. Só queria dar mais uma olhada com calma. Talvez na minha casa, algum dia que você tenha tempo.
Não sei! Não tenho muito tempo à disposição. Os gêmeos dão muito trabalho e a Mathilde anda doente estes dias. 
Não. Não precisa ser hoje, nem amanhã. Algum dia desses!
Não era verdade, deveria ser o mais breve possível. Eu estava ansioso para rever a biblioteca. Não faz mal que durasse apenas dez minutos. Eu poderia reabrir a janela cem vezes, se fosse necessário. Mas não demonstrei a minha impaciência. Ele poderia interpretá-la mal e negar-me de vez a oportunidade.
Tudo bem, Donato, eu te falo quando der.
Peguei o metrô e fui para casa. Ventava forte e gelado. Dentro do vagão consegui um lugar para sentar e vim lendo, no eBook Readers Devices, um destes livros bons que  conduz a gente em suas estações de histórias e cenários, e a gente corre o risco de não perceber que chegou a estação na qual a gente tem de descer, indo parar três ou cinco estações adiante, dar-se conta quando as portas estão se fechando e, finalmente, descer e pegar o metrô, vindo do lado oposto, e regressar até chegar ao destino certo.


Em casa, a Charlotte estava mais interessada em preparar o penne com molho branco e salmão do que no meu comentário sobre uma biblioteca virtual inacabada e inacessível.
Mas você não está de dieta? Perguntei ao sentir o cheiro apetitoso do molho.
Já fiz dieta a semana inteira. Hoje quero comer algo cheio de carboidrato, gordura e delicioso.
Eu vou nessa! Charlotte possui problema de peso e eu de calvície aos trinta e sete anos. Nada grave, dizemos um ao outro.
Jantávamos a mesa da sala, tomávamos vinho branco e comíamos a massa quando sugeri fazermos um jantar para um colega meu de trabalho. Nos quatro anos que moramos juntos eu nunca havia convidado ninguém da empresa. Alguns amigos nos visitavam esporadicamente, mas geralmente estávamos ocupados e reservávamos os dias livres para viajar.
Não sei, Donato! Esta semana tem reunião com os diretores do museu da Suíça. Estamos organizando uma nova exposição e preciso preparar a apresentação PowerPoint para a minha chefe. Tenho de incluir três slides e gráficos que ainda não estão prontos. Até trouxe serviço para casa. Quem é este colega, eu o conheço?
Sim. É aquele que estava com a esposa e os gêmeos na festa de Natal, no restaurante árabe. Lembra?
Ah, sim! Conversei pouco com eles. Mas os gêmeos são umas gracinhas! Para dois garotos de cinco anos eles se comportaram bem.
E que tal fazermos o jantar na quinta? Eu preparo tudo. Você não precisa se preocupar com nada. E eles não ficarão até tarde por causa das crianças.
Eu preferia deixar para a outra semana. Sempre que temos reunião com diretores é um nervosismo total no escritório. E realmente há muito trabalho agora.
Mas você não terá que se preocupar com nada, Schatz! Como eu já disse, eu preparo tudo. Você só precisa conversar um pouco e sorrir. O resto é comigo!
Ainda acho melhor deixarmos para a outra semana.
Ok, Charlotte! Vamos fazer assim, se eles tiverem tempo nessa semana, eu faço tudo, senão deixaremos para a outra.
Não era nenhum banquete, não sou Agaton. Meu estratagema consistia em atrair o Umberto ao meu apartamento, envolvê-lo em uma conversa descontraída, falar um pouco sobre o trabalho, mas não muito para não entediar as mulheres; um pouco sobre arte, mas não muito para não entediar a Mathilde, a esposa do Umberto que é enfermeira; um pouco sobre crianças, mas não muito porque não tínhamos nenhuma, e por fim levá-lo ao meu escritório com o pretexto de mostrar-lhe as fotos da estadia em Florianópolis e solicitar-lhe que abrisse o programa. Com a comida eu não me preocupava. Planejava encomendar alguma coisa pronta: patê grego, folhas de uva recheadas, pão turco, queijo e vinho francês, panna cotta de sobremesa encomenda no italiano da esquina de casa.


No dia em que Umberto aceitou o convite para jantar em casa fui trabalhar pedalando pela ciclovia da Potsdamer Strasse, apesar da garoa flutuante pairar no ar como uma névoa e manchar a paisagem de cinza, umedecendo a minha cara. Peguei uma brecha nos congestionamentos. O fluxo contém os interstícios de menor fluência, o que chamo de hemistíquios da metrificação do trânsito, como se trânsito tivesse o mínimo a ver com poema alexandrino. Desta vez, não me deparei com a caminhonete entregando mercadoria estacionada na ciclovia, nem com o ponto de ônibus cheio e gente espalhada na ciclovia, nem com o passageiro abrindo a porta do carro estacionado sem verificar se há bicicleta percorrendo a ciclovia. Hoje foi o dia que os hemistíquios se deram de forma sucessiva e levaram-me a chegar cedo ao escritório. Liguei o computador e fui pegar um café para tomar com o lanche comprado no caminho. O computador não funcionava direito. Esperei até o Umberto chegar.
Umberto, estou com problemas de travamento no Firefox. Você poderia dar uma passadinha na minha sala?
Agora não dá, meu irmão! Irei lá pelas onze. Enquanto isso faça a limpeza de cookies e cache e reinicie o Firefox! Se não der certo verifique os plugins e reinstale o Firefox! Talvez assim você o desbloquei.
Acho melhor você fazer isso. Pode ser que eu faça alguma coisa errada e aí estraga tudo.
Não é complicado não!
Eu sabia que não era complicado. O problema com o Firefox veio a calhar para ser usado como pretexto e eu atraí-lo à minha sala, criando a oportunidade de entrar de novo na biblioteca.
Vou tentar, Umberto, mas de qualquer maneira venha às onze verificar se está tudo correto.
Você também pode fazer o resete, restaure todas as preferências para padrão do Firefox.
Não, isso não sei fazer não!
É só clicar no botão Firefox, ir para o dub-menu ajuda e selecionar dados para suporte.Na barra de menu, clique em Ajuda e selecione Dados para suporte. Depois acessar o menu ajuda, digitar about:support na barra de endereços para abrir a página Troubleshooting information.
Não, cara! Não vai dar certo. Eu te espero às onze.
Ok. Deixa prá lá. Eu passo aí depois.
Ele não veio às onze, meia hora depois estava na minha sala. Disse ter arrumado um tempo, mas estava com pressa. Executaria o serviço rapidamente. E logo sentou-se em frente ao computador e começou a fazer o resete. Hesitei um instante em pedir para colocar o programa fantástico, com receio dele perceber a minha agonia. Eu desconhecia o motivo pelo qual eu havia sido o previlegiado em vê-lo.
Você nem sequer chegou a fazer a limpeza dos cookies, Donato!
Eu ia fazer isso agora. Não esperava que você viesse tão rápido.
Enquanto os cookies estavam sendo apagados e ele esperava o computador terminar o comando perguntei-lhe por que havia me mostrado o programa das bibliotecas.
Foi só pra me deixar curioso e ansioso, Umberto? Você sabia que eu ia gostar e não te deixaria mais em paz.
Não pensei nas consequências. Confesso que fui impulsivo. Mas eu queria saber a opinião de alguém e as circunstâncias te escolheram.
Ah, quem bom! Que sorte a minha, hein?! E será que não dá pra me mostrar mais uma vez? Só mais uma vez? Não vou perguntar mais.
Não era verdade. Assim que eu terminei de falar antevi que eu nunca mais o tiraria da cabeça.
O programa não está pronto e está com defeito. Não adianta entrar em uma biblioteca cujos livros estão pela metade, desorganizados, e faltam várias obras. Você só pode ler as primeiras páginas. Não serve um programa assim!
Sim, pra mim serve sim. Eu só quero olhar. Não tenho tempo de ler estes livros. Quero apenas dar mais uma olhadinha, nada mais. Qual é, cara? Quebra essa pra mim!
Umberto mirou-me indeciso e não atendeu ao meu pedido. Mas aceitou ir jantar em casa.


Lembro-me de não ter conseguido dormir bem na noite de quarta para a quinta. Acordei ansioso, suado e cansado. Trabalhei inquieto e tranquilizei-me somente após passar no mercado e chegar em casa.
Naquela noite, a voz de Charlotte alcançou a cozinha ao abrir a porta e exclamar hallo. Escutei-a tirar os sapatos no corridor, depositar a bolsa sobre o móvel, ao lado do cabideiro, e pendurar o casaco de meia estação no cabide, justamente no momento que eu jogava o pacote vazio de sopa de champignon knorr no fundo da lata de lixo. Charlotte não costumava comprar comida industrializada, acreditava nos efeitos saudáveis dos alimentos biológicos e na melhor qualidade dos produtos. Não podia saber que a sopa era de pacotinho.
O que você está cozinhando? Ela se aproximou de mim e me beijou leve na boca.
Estou preparando uma sopa de champignon. E joguei dentro da panela os champignons frescos cortados, para disfarçar a sopa de pacote.
Não sabia que você sabia fazer sopa de champignon! Ela estava surpresa.
Há muitas coisas a meu respeito que você ainda não sabe. Retruquei sorrindo maliciosamente.
Espero que sejam só coisas boas, Schatz!
Os convidados chegaram pontuais e, para o meu alívio, sem as crianças. Sentamo-nos à mesa, na sala de estar. Brindamos o encontro com o château haut-brion, carbanet sauvignon, e servi a sopa que foi bastante elogiada. Comemos os espetinhos de carne de carneiro assada e salada. E no final das fatias de pão com queijo, frios e patês, Charlotte foi à cozinha pegar a sobremesa. Mathilde a ajudou levando a louça suja para ser substituída pelos pratinhos. A retirada das mulheres favoreceu-me a colocar o meu plano em ação. Eu queria cercá-lo como na Batalha de Gaugamela. Solicitei ao Umberto que me acompanhasse até meu escritório para eu mostrar-lhe a foto do apartamento que estávamos comprando, em Florianópolis. Umberto considerou interessante a nossa iniciativa e comentou que talvez ele também se prontificasse a comprar um imóvel no Brasil. O computador estava ligado e passei as fotos, ilustrei uma ou outra curiosidade da região, as praias, as montanhas, relatei sucintamente sobre as papeladas e leis, e sem terminar o assunto, perguntei-lhe: e já que estamos aqui sozinhos, você poderia abrir o programa de novo? Esta é a última vez que eu te peço.
Donato, já te disse, o programa não está pronto.
Eu sei, mas acontece que na empresa eu estava tenso, com receio do chefe chegar e, no fundo, não consegui ver nada.
Umberto ficou em silêncio, mantinha o olhar em um ponto fixo no monitor, exatamente na onda macia de uma praia onde eu e a Charlotte aparecia na tela, à direita, vestidos de trajes de banho, descalços, usando óculos escuros, sorrindo abraçados.
Está bem, Donato, esta é a última vez.
A seriedade contida em sua voz me intimidou, mas o espanto foi logo desvanecido pela minha felicidade em ter conseguido o que eu queria. Afinal o que deseja, deseja aquilo de que é carente. Levantei-me e ofereci-lhe a cadeira. Ele sentou-se e iniciou o concerto no teclado. Coloquei os óculos 3D e a biblioteca expandiu-se diante de mim estupefato.
Sabendo que eu disponha de apenas dez míseros minutos queria ver o máximo possível. Vi O Conto de Genji, de Murasaki Shikibu; Um tratado sobre as línguas Khoisan e outro sobre os idiomas nilo-saarianas; o Pui, escrito no idioma africano Soninke (um conjunto de canções heróicas dividido em doze partes), e o Dausi, do legendário Reino de Gana (poema épico de cento e cinquenta versos isentos de metrificação regular); um escrito mitológico em niimiipuutimt (língua do povo indígena Nez Percé, natural do bacia do Rio Columbia); a reprodução da Tabuleta de Baška (escrita no alfabeto glagolítico); uma folha do manuscrito Corpus Aristotelicum, e um texto sobre política; vi Prólogo, de Laércio. E me adveio Sócrates e Platão que eu esperava estivessem por ali, e estavam. Mas alguma coisa aconteceu. Outra janela maior abriu sobrepondo-se a essa e começou a expandir-se no espaço onde eu me encontrava. Algo como uma catedral abrigando a alta cúpula de onde a claridade germinava, tal qual a Biblioteca Britânica. Fui tomado por uma forte vertigem, o espaço girou. Surgiu mais uma janela sobrepondo-se a essa e expunha a ampla e elevada ala com a majestosa cúpula ornamentada de estuques, afrescos e vitrais, nas laterais duas escadarias de mármore convidavam a subir para a outra ala repleta de pilares gregos, também de mármore, com o capitel coríntio exibindo a profusão de rebentos e folhas de acanto, o solo era coberto por mosaíco florístico e geométrico, como a entrada da Biblioteca do Congresso.
A tontura ainda influenciava a minha visão. Será que devido ao vinho? Umberto caprichou no programa! Pensei. Ao entrar por uma porta ou portal eu me encontrava em outra biblioteca. Subi escadas, desci escadas e escadarias largas e estreitas que poderiam ser as de Escher. Mas as de Escher se entrecruzam, não possuem saídas, diferentes dessas que afluem a outras alas, salas, patios e paços. Entrei por uma porta que foi dar na Biblioteca de Moscou, outra em uma pequena sala da biblioteca com o telhado azul, em Anadyr, cujo vendaval volátil soprava a neve no reverso da janela embranquecida e causou-me arrepios de frio. Desci uma escada de nove degraus que foi dar em uma sala, na Biblioteca de Ulaanbaatar. Saí por uma porta lateral e atingi a pequena biblioteca de Niquinohomo, com o ventilador ligado no teto. Desci três degraus e fui parar em um ensolarado e quente pátio de cimento, atravessei-o e adentrei na biblioteca de Macondo (pela varanda pude ver a árvore florindo borboletas amarelas que voavam em um enxame cada vez que o sopro da brisa clara a atingia). Saí por uma trilha que cingia um lago de vitória-régias, atravessando a estreita ponte de nós de corda grossa e entrando em uma construção de cimento e madeira atingi a ala que parecia ser a do teto inclinado da Biblioteca da Floresta, no Acre.
Não sabia que direção seguir no interior deste programa que mais assemelhava ser de Dédalo do que de Umberto di Rose: cidadão italiano, casado, pai de gêmeos, emigrante, analista de sistemas, funcionário subalterno em uma multinacional, amante da arte e literatura e simplesmente meu colega de trabalho. Abri mais uma porta que me levou à sala pequena e modesta da biblioteca de Ushuaia, no instante de um ocaso azul escuro, vermelho e ametista rutilar no horizonte. Atravessei uma pequena ponte de madeira ladeada por plantas e fui chegar à Biblioteca Stanton. Ao sair, caminhei pelo paço episcopal e abri a grande porta de madeira esculpida e fui me encontrar no piso tridimensional quadricular da Biblioteca da Abadia Beneditina de Admont. A arquitetura barroca ainda me causa imensa admiração! O teto é adornado por grandes afrescos que exibem imagens bíblicas do juízo final, as estantes brancas são contornadas e enfeitadas por pinturas douradas, e das altas janelas a dramática claridade engendra-se entre as estantes. E da mesma forma a Biblioteca da Abadia de São Galo me impressiona! Os afrescos e os estuques no teto, as estantes emolduradas pelos esbeltos pilares gregos de mármore escuro, o solo formado por mosaíco de madeira de carvalho são fascinantes! É como a Biblioteca do Mosteiro de Wiblingen, visitada por mim e Charlotte, na época em que vivíamos juntos, no feriado do dia primeiro de maio de 2008. Foi um mês quente, seco e cheio de sol. E a beleza arquitetônica da Biblioteca do Mosteiro de Wiblingen permaneceu gravada na minha memória.
E prossegui, acessei outras e outras bibliotecas como em um calendoscópio. Eu me movia em três planos de gravitação interligados por escadas, portas, pátios, arcos, elevadores horizontais. Entrei na Biblioteca Mário de Andrade, onde eu costumava ir, no intervalo do almoço, quando era jovem e trabalhava de office boy para uma firma, no centro de São Paulo. Saí dali e cheguei de repente a um pátio cujo solo era de piso cor lápis-lazúli, atravessei-o como se eu andasse sobre a superfície de um mar profundamente azul e ausente de ondas, subi dois degraus, olhei para o alto e vislumbrei as esplêndidas muqarnas de ladrilhos azuis, suspensas no alto como estalactite, minha visão desceu para as paredes de azulejos esmaltados cobertos de arabescos e bismillah, em forma de flores, com o dizer: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, e alcancei o que me pareceu ser a biblioteca da Mesquita de Jameh.
Agora eu me encontrava em uma sala adjacente, na biblioteca da Mesquita de Jameh, cheia de tapetes persas no chão e senti-me feliz em poder sentar em um divã do leste e oeste, para descansar e averiguar a minha situação.
Meu celular marcava cinco horas da madrugada. Eu já estava sete horas no interior do programa? Será que Umberto conseguiu reparar o defeito? E agora como eu faço para sair? Meu celular não possuía conexão. Mas eu estava em meu apartamento no bairro Wilmersdorf, não estava? Havia algo errado com a data, não era mais a mesma, pelo registro do meu celular haviam se passado sete semanas. Ou sete anos? Eu não entendia por que eu ainda me encontrava no interior das bibliotecas e comecei a raciocinar uma razão lógica: a) o meu celular estava com defeito; b) Umberto tentava desligar o programa e não conseguia; c) ele havia reparado o defeito e o fechamento do programa consistia em que o próprio usuário buscasse sozinho uma saída no meio da miríade de bibliotecas; d) Umberto reparou o programa e esqueceu de dar-me as instruções de saída; e) eu deveria ficar tranquilo e não procurar a saída e esperar que o Umberto fechasse o programa; f) eu deveria apenas deleitar-me com as leituras que estavam à minha disposição e esquecer que eu manuseava um programa; g) eu deveria ter enloquecido, sofrendo do mal de Alonso Quijano, com a diferença que eu não saía lutando contra moinhos de vento, apenas me imaginava encafuado nas bibliotecas do mundo, abraçado à impossível missão de ler todas as obras essenciais da Humanidade, e estas janelas e bibliotecas não passariam de fruto da minha imaginação. Eu mesmo deveria estar na cama sonhando, no meu apartamento, em Berlim, e a qualquer momento despertaria à realidade verossímil.
Para uma tecnologia que absorve, desta forma, o usuário no interior das imagens estereocópicas seriam necessários, além de outros recursos, pelo menos, 105 terabytes de memória e 2 petabytes de espaço em disco rígido e a mais aperfeiçoada técnica 3D. Meu computador era bom, mas não possuía tal capacidade, era um Apple MacBook Air, 13 polegadas: 256 GB, Processador Intel Core i5, dual-core a 1,4 GHz, Turbo Boost até 2,7 GHz, Intel HD Graphics 5000, 4 GB de memória, 256 GB de armazenamento flash com base em PCIe1. Não compreendo como Umberto conseguiu desenvolver o programa sem o hardware específico!
As obras dispostas nas estantes das miríficas bibliotecas estão completas, é só lê-las, mesmo em um idioma estrangeiro. A tradução ocorre simultânea em cima do texto, em kwadi, em tupi ou jês, em xakribá, em one, em cassúbio, em sichuanês, em sânscrito, em punjabi ou urdu, em wiyot, em soyot, em te’un, em barzani judeu neo-aramaico, em sogoo, em birgid e assim por diante em todas as línguas existentes e extintas.
Leio os livros como se a vida dependesse disso e eu não precisasse de outra coisa. Não sinto fome ou sede. Eu leio.
Vez ou outra, uma suave saudade passa como uma brisa no meu rosto, como a da minha mãe, professora de corte e costura aposentada, arrumando-se em frente ao espelho na porta do guarda-roupa, vestida com blazer MNG Barcelona big pied cinza claro, com padronagem de pied poule e dois bolsos, modelagem reta com mangas longas e gola alfaiate, e vestido tubinho vermelho, minha mãe me dizia que a vida é de alinhamentos, muitas vezes o avesso da coisa direita, cheia de costura galoneira, zigue zague, pontos overloques, pespontos, alinhavos, ponto corridor, chuleado, e que sua geometria são as curvas; saudade de um episódio feliz de quando eu era menino e brincava na praia, com os meus primos, cavoucando a areia acreditando chegar do outro lado do planeta; saudade de meu pai, tios e avós arrastando a rede no mar prateado de Peruíbe, trazendo-a cheia de sirís e peixes; do brilho nácar das escamas do peixe pulando dentro da pia; de ver a esfera do sol alaranjado erguendo-se de trás das ondas; dos jogos de futebol no pátio do colégio onde os dentes de leões cresciam nos interstícios do cimento rachado; saudade dos olhos negros opala de Iracema da Luz Diottyma, minha primeira namorada; saudade de uma concha borboleta presa na areia; dos caroços de jabuticabas cuspidos e transformados em estrelas negras no chão; das faichas vermelhas, amarelas, rochas, rosas, dos campos de tulipas, nas autoestradas, a caminho da Holanda; da minha mão segurando o volante do automóvel e a outra acariciando a mão de Charlotte, sentada ao meu lado; saudades do dia em que despertamos de manhã no quarto de uma pequena pensão, no pé da montanha, nas Dolomitas, com as flores no parapeito das janelas; de banhar o olhar no riacho verde escorrendo das pedras e findando-se em um lago esmeralda; saudade da voz sensual da Charlotte pronunciando meu nome ao ouvido no instante do orgasmo.
Fortuitamente as recordações afluem à minha memória e eu suspiro nostálgico.
No mais, leio. Eu leio A Origem das Espécies, de Darwin; Al-Kitāb al-muḫtaṣar fī ḥisāb al-ğabr wa-l-muqābala (livro do cálculo algébrico e confrontação), de Abū ‘Abd Allāh Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmī; os versos do Avesta, de Zaratustra; Pachatandra, de Vishnu Sarma; Calila e Dimna (Os Cincos Princípios, a versão das fábulas hindus de Vishnu Sarma traduzidas para o árabe por Ibn al-Mukafa); Decamerão, Os Ensaios de Montaigne;  Cosmos, de Humboldt; Popol Vuh; Innumerabiles Fabulae, de Herodot; eu leio… E se eu não morri, ainda estou aqui, no interior de um software que apresenta todas as bibliotecas do mundo, lendo, até hoje.


Berlim, 2014








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