A filha do príncipe
Roniwalter Jatobá
Chamava-se Leididai. Contaram outro dia, em São Miguel
Paulista, que esse não era o seu nome verdadeiro. O escrivão do registro civil,
ciente da lei, não quis aceitar o que era desejo da família. Com o
consentimento amuado do pai, o oficial marcou no papel Eva ou Maria Aparecida.
Na morada à beira do riacho Jacuí, porém, a menina foi sempre chamada -- e
agora lembrada -- do jeito que todos gostavam: Leididai.
Nascera em 1982. Três meses depois do casamento do século,
aquele que uniu o príncipe de Gales e a jovem Diana Spencer, a menina foi
batizada numa cerimônia coletiva num galpão comunitário do Jardim Pantanal. O
padre abençoou a todos e os pais da menina, Aírton e Ester Silveira Lima, se
sentiram também nas graças de Deus, naquele domingo.
Ester era mulata, beirava os trinta anos, ágil como um
demônio. Diarista de segunda a sábado, limpava com presteza e dignidade as
sujeiras de um asilo para idosos ricos numa travessa da rodovia Raposo Tavares.
Aírton era loiro, tinha ainda entranhado nas veias os resquícios das noitadas
sexuais dos colonizadores holandeses no Ceará do século 17. Pelo porte, era
chamado de Príncipe, apelido que o deixava orgulhoso, mas triste pela sua
contínua e hereditária pobreza. Trabalhava de borracheiro numa travessa da
avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, mãos calejadas de recauchutar
precários pneus de caminhão.
-- É a minha princesa -- exaltava o pai quando passeava aos
domingos com a menina já grandinha, toda arrumada pelas mãos da mãe que lhe
fazia todas as vontades. -- Veja... -- e mostrava aos amigos os seus cabelos
loiros e crespos, herdados dos dois, artisticamente trançados e bem penteados.
Embora fosse uma menina graúda, de aparência saudável,
mostrava-se frágil com as mudanças do tempo. Nos meses de chuva, quando as águas
do Tietê avançavam pela região insalubre, ela passava as noites com a
respiração ofegante como se um ser fantasmagórico apertasse a sua garganta. No
decorrer de sua vivência, a menina teve cachumba e outras doenças, e no
primeiro aniversário quase morre de desidratação. Resistiu, no entanto. Quando
completou cinco anos, já se virava sozinha na pequena moradia, apenas com a
ajuda de uma vizinha prestativa. Enquanto os pais corriam por São Paulo durante
o dia, ela brincava de boneca em frente à velha TV sempre ligada ou, em raras
tardes, se juntava às dezenas de crianças de sua idade à beira de uma lagoa,
onde se divertia com uma alegria inocente.
-- Leididai não anda nada boa -- disse a mãe num frio
anoitecer quando Aírton pisou na soleira da porta.
Era sábado, tinha chegado de pouco. Cansado, dia inteiro no
trabalho, ainda vinha com o corpo frio do chuvisquinho que pingava lá fora.
Nesse instante, Ester correu para o cômodo dos fundos sem ninguém chamar,
preocupada, apressada, limpando as mãos no avental claro e úmido.
O Príncipe só estranhou. Depois, correu para lá quando
sentiu os gritos da menina. Assim mesmo pensou em gritos de medo ou podia mesmo
ser divertimento em frente à televisão. Mas não, muito pior.
A menina, deitada no sofá que servia de cama, enrolada num
cobertor grosso, se estrebuchava como se estivesse mordida de cobra. Gritava de
fazer dó, chorava um choro pesado, choro sofrido de muita dor e fraqueza. O
Príncipe então agarrou Leididai, jogou uma toalha por sobre sua cabeça, jeito
de se livrar da chuva.
-- Fique aí -- ele disse para a mulher.
Correu pela rua se livrando das poças d’água e montes de
lixo. Atravessou a estrada de ferro, cortando caminho entre fios elétricos e
canos de água clandestinos. Seguiu pelos trilhos, ouvidos atentos para o
barulho de uma noturna composição. Cruzou uma pinguela no riacho Jacuí e, em
passos largos e encharcados, pisando forte agora nas manchas de chuva sobre o
asfalto, alcançou a antiga estrada São Paulo-Rio.
Entrou no hospital ao lado do Mercado Municipal, molambo
molhado de gente. Na sala de espera, olharam para ele assustados. Parou.
Depois, o Príncipe esperou zanzando de um lado para outro, filha no colo.
Cadeiras ocupadas, tremura nas pernas. A enfermeira, sentada, cega para eles,
parada. Ele chamou um doutor que passava apressado, roupa branca de cima a
baixo, que pusesse na frente sua filha, Leididai.
-- É doença da brava -- o Príncipe implorou. -- Veja... --
mostrando as manchas que começavam no pescoço e desciam, cada vez mais
vermelhas, até os dedos nas unhas.
Ficou ali segurando a menina com a mão e, com outra,
suplicando que dessem um jeito rápido, levassem logo ela para dentro.
De repente, sentiu o coração de Leididai palpitar no seu
peito, descobriu a toalha do rosto dela, suor marejando. Enxugou o rosto da
menina, que nem abriu os olhos, ficou tresvariando, mexendo a boca. Calada. A
respiração foi ficando mansinha como se tivesse dormindo. Depois, sumindo de
vez. O corpo dela se esfriando, gelando, mais um óbito de sarampo na abandonada
cidade de São Paulo.
Eva ou Maria Aparecida? A princesinha estava morta.
O autor:
Roniwalter Jatobá de Almeida nasceu em 22 de julho de 1949
em Campanário, Minas Gerais. Aos dez anos, foi morar em Campo Formoso, Bahia,
onde concluiu, em 1964, o curso ginasial. Por alguns anos, perambulou pelo
sertão baiano, dirigindo um caminhão Ford, e lendo nas muitas horas vagas. Em
1970, após servir o exército em Salvador, veio para São Paulo. Trabalhou como
operário "desqualificado" na Karmann-Ghia, no ABC, enquanto morava ao
lado da Nitroquímica, em São Miguel Paulista. Entrou para a Editora Abril no
final de 1973, na área gráfica e, cinco anos depois, auxiliado financeiramente
pela empresa, formou-se em jornalismo. Foi redator das publicações
infanto-juvenis desta editora e da Rio Gráfica (hoje Globo), escreveu livros e
colaborou em Versus, Folha de S. Paulo, Movimento, Escrita, Ficção e outros. No
final dos anos setenta viveu sete meses na Europa, num exílio voluntário. De
volta, foi redator de Nosso Século, editor de textos de Movimento e Retrato do
Brasil (fascículos), editor-executivo de Saúde!, Boa Forma e de publicações
especiais da revista Corpo a Corpo; criou e dirigiu ainda a revista Memória e
editou livros históricos na Eletropaulo.
Roniwalter Jatobá publicou Sabor de química (contos, ed.
Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1976); Crônicas da vida operária (ed.
Global, contos, 1978 - prêmio Casa de las Americas, de Cuba, em 1978); Filhos
do medo (romance, 1979, ed. Global), adaptado para teatro;Viagem à montanha azul
(novela juvenil, 1982), inclusive editado nos Estados Unidos em 1983; Pássaro
Selvagem (romance, 1985); Tiziu (romance, 1994, ed. Scritta); Juazeiro: guerra
no sertão (história, 1996, ed. Ática); A crise do regime militar (história,
1997, ed. Ática); O pavão misterioso (crônicas, Geração Editorial, São Paulo,
1999); Paragens(novelas, Boitempo Editorial, 2004); O Jovem Che Guevara
(biografia, Nova Alexandria, 2004).
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