Resenha de Vanessa
Maranha
“Mrs. Dalloway”, considerado a obra-prima de Virginia Woolf,
é um grande texto para ser revisitado em diferentes momentos da vida.
Numa
primeira mirada, o estranhamento diante da forma que apresenta um enredo
enxuto, aparentemente banal e que tem por recursos técnicos e estilísticos o
fluxo de consciência; a anulação na distinção entre discurso direto e indireto;
o monólogo; o solilóquio; narrativa que se alterna entre a descrição onisciente
na trilha de pelo menos vinte personagens ; recuos e avanços abruptos no tempo.
“Mrs.Dalloway”,
que deriva dos contos “Mrs.Dalloway em Bond Street” e “O Primeiro Ministro”,
acontece num único dia de junho na Inglaterra do período entreguerras e costuma
ser apontado, aliás, como uma réplica a “Ulisses” de James Joyce. Na segunda
leitura, menos distraída pela exuberância da forma, pode-se focalizar melhor no
enredo e nas temáticas recorrentes em todos os livros de
Virginia Woolf.
Clarissa
Dalloway é uma dona de casa que prepara uma recepção. Logo pela manhã ela sai
para fazer compras em Londres e o que vê e sente nesse percurso a remete à sua
juventude em Bourton. A partir daí, a personagem, em rememorações, reconstroi a
sua vida, entra e sai, imaginariamente, dos pensamentos de pessoas importantes
em sua biografia.
Casada
com o estável Richard Dalloway em vez do enigmático Peter Walsh, embora se
sentisse também atraída por Sally Seton, Clarissa reflete sobre o peso das
escolhas de uma vida. O retorno de Peter, da Índia, agrava-lhe tais
pensamentos. Septimus Smith, um veterano de guerra mentalmente debilitado,
passa a tarde com a esposa Lucrezia no parque e é acometido por alucinações com
seu amigo Evans - numa clara conotação
homoafetiva, também evocada nas descrições
do relacionamento entre a personagem e Sally Seton, bem como entre
Elizabeth e Doris Kilman. Septimus suicida-se e isso ecoa na festa, à noite,
promovida por Mrs. Dalloway. Ato que passa a ser acalentado por Clarissa como
uma das formas possíveis, em suas associações, da preservação da singularidade
humana. Ainda assim, o convescote revela-se afinal um sucesso e, claro, um
recorte preciso da sociedade de então.
Na
terceira leitura da obra, possivelmente motivada pelo filme “As Horas”, baseado
no livro homônimo de Michael Cunninghan e que é uma homenagem genial a
“Mrs.Dalloway”, é possível tangenciar as grandes discussões desta autora
fantástica que é Virginia Woolf. O feminismo que argumenta contra a repressão
sexual e econômica. A crítica ao tratamento do transtorno mental em Septimus Smith,
a negligência na abordagem clínica de então.
A condição desse personagem como um alterego da própria autora,
igualmente portadora de doença psíquica, que também tem, na realidade, seu
desfecho trágico em suicídio.
Livro
que poderia ser simplificado como “um dia na vida de uma mulher”,
“Mrs.Dalloway” é, na verdade, uma grande história sobre a crise de um
indivíduo, a crise de uma sociedade e de uma classe em seus movimentos internos
e também a crise da própria forma da construção de um romance.
Um
texto sobre o tempo e a interconexão-desconexão da existência humana. Sua
concretude está na densidade de impressões e emoções, entrelaçando presente,
passado e futuro como derivativos entre si. Segundo o crítico Harold Bloom,
Virginia Woolf pensava em “Mrs. Dalloway” como "uma estrutura de ordem tal
que cada cena serviria para construir a idéia do caráter de Clarissa. Uma vez
que a figura de Clarissa Dalloway está fundada, de um modo sutil, sobre o
sentido que Woolf fazia de sua própria consciência, o resultado seria uma
espécie de auto-retrato psíquico, deixando de fora apenas a circunspeção
estética da autora. E é justamente esta circunspeção que ajuda a universalizar
certos aspectos do caráter da personagem, apresentada implicitamente como um estudo
do desenvolvimento de uma mulher (e não de uma grande escritora)".
Embora a tradução de Mário
Quintana seja irretocável, a leitura no original em inglês, possibilita contato
com suas sutilezas expressivas intraduzíveis como “unladylike statements”. Virginia
Woolf, nesse livro, já dentro do Modernismo trepidante, “sua voz sem idade, sem
nexo, a voz de uma antiga fonte jorrando da terra”, é seminal, sem a qual,
talvez não tivesse sido possível a eclosão de uma tonalidade como a de Clarice
Lispector, em âmbito local, cuja obra parece, claramente em “O Livro dos
Prazeres”; “A Paixão Segundo G.H” e “Perto do Coração Selvagem”, desdobrada a
partir dos ápices e dos abismos de “Mrs.Dalloway”, ainda que nossa autora
negasse tal fonte indiscutível.
BIOGRAFIA
Virginia Woolf nasceu em Londres,
em 1882. Muito jovem, estudou Platão, Espinoza, Montaigne e Hume.
Após
a morte de seu pai, em 1904, Virginia e seus irmãos mudam-se para Bloomsbury,
bairro londrino onde formariam o famoso grupo de Bloomsbury, círculo de
intelectuais sofisticados que investiria contra as tradições literárias,
políticas e sociais da era vitoriana.
Virginia
casou-se, em 1912, com Leonard Woolf. Em 1917, fundou, ao lado do marido, a
Hogarth Press, editora que revelou escritores como Katherine Mansfield e T.S.
Eliot. As primeiras obras de Virginia Woolf foram “The Voyage Out” (1915) e
“Night and Day” (1919). Em “Mrs. Dalloway” (1925), Virginia Woolf examina o
tempo presente e passado, limita o tempo da ação e emprega recursos
estilísticos para retratar a experiência individual. O mesmo ocorre com o livro
“Rumo ao Farol” (1927). Em 1928, publicou “Orlando”, uma fantasia histórica que
evoca a Inglaterra, sobretudo literária, da era elizabetana. Em 1931, publicou
“As Ondas”, uma de suas obras mais importantes. Seis anos mais tarde, Virginia
lançou o livro “Os anos”.
A
história de sua vida é indissociável de sua obra. Mesmo dividida entre suas
ocupações de diretora de sua própria editora, suas críticas literárias -Virginia
conseguiu superar, em seus romances, os limites impostos pela ficção realista.
Integrou à narrativa uma simultaneidade de eventos e criou com isso uma nova
concepção do tempo narrativo, que mais tarde veio a se chamar "forma
espacial do romance". Em 1941, após diversas tentativas de suicídio e uma
grave crise de depressão, Virginia Woolf se afogou no rio Ouse. Deixou
considerável número de ensaios, uma extensa correspondência e o romance,
“Between the Acts” (1941).
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