Daqui dessa distância posso ver um grupo de crianças
brincando, mas estou longe demais para perceber qual é a brincadeira. Elas
pulam e o movimento de seus braços parece jogar alguma coisa para o alto.
Também não consigo ouvir seus gritos e risadas; posso, contudo, muito bem supô-los.
Com os pés enterrados na areia, não saio do lugar e algumas
ondas me atingem as panturrilhas que se regozijam com o frio da água.
Além das crianças e mais perto dos cômoros um pouco
afastados do mar, uma canoa emborcada, uma canoa escura que deve ter sofrido
sol e chuva de muitas estações. Daqui a impressão que me dá é a de uma carcaça
de baleia, mas de uma baleia já muito morta que mantém a pele seca recobrindo
seu arcabouço. A distância dá ao barco um aspecto de brinquedo infantil.
Meus pés afundam.
Seria necessário arrancar meus pés da areia e me dirigir aonde
estão as crianças para afastar qualquer perigo. Há algo em um movimento
estranho sem que consiga identificar. Não sei se é perigoso. Nunca tive vocação
para os atos heroicos, no entanto sempre soube que, no caso de me deparar com
alguma situação extrema, uma tragédia iminente, eu saberia como agir. Nunca fui
dos primeiros em nada tampouco dos últimos. Não fiz parte da comissão de
organização da formatura, não fui o orador da turma, mesmo assim sempre tive o
respeito dos colegas, pois eles também deveriam estar convencidos de que eu, em
caso de necessidade, saberia como me comportar.
O sol volta a brilhar, abandonado pelos farrapos em que a
pequena nuvem se transformou, e com a nova claridade, olhando com atenção,
parece-me ver entre as crianças um cão saltando, com o qual elas brincam. Suponho
que seja uma bola jogada para o alto que ele pule tentando apanhá-la no ar. Mas
ele é baio, possivelmente, e se dissolve no amarelo da areia. Não posso ter
certeza.
A maré me deixa um tanto apreensivo: as ondas, algumas, já
cobrem a parte mais bojuda da panturrilha. Mesmo assim, continuo no mesmo
lugar. Naquela época, não me desagradaria ser o orador da turma. Tinha um
discurso pronto, muito melhor do que o outro, o proferido. Acontece que na hora
de me candidatar, fiquei indeciso, sem saber se valeria a pena, porque o texto
eu vinha produzindo fazia uns quatro meses, tocando, retocando, mudando aqui
uma palavra, ali invertendo a ordem de uma frase. Até me parecer perfeito. O
esforço de encarar colegas, suas famílias, os amigos e uns tantos curiosos,
esse esforço previsto foi que me deixou imobilizado.
Desde os tempos de colégio, acredito que desde sempre esta
indecisão. No último ano do curso, o professor de geografia me chamou no fim da
aula, me levou para um lugar isolado do corredor e me disse, Meu filho, você
nunca se decide! A resposta teria de ser a opção por um ou outro caminho. Você
ficou parado na encruzilhada. Não pode, isso não pode, a vida exige tomada de
posições. E ainda fez uma brincadeira: você deveria ser exitante em lugar de
hesitante. E me explicou seu neologismo.
Outra nuvem apareceu flutuando para empanar o sol. Esta mais
densa e muito mais extensa. Agora o grupo de crianças quase desaparece. Mesmo
assim tenho a impressão de que não estão no mesmo lugar.
Muitas vezes na vida me lembrei dos conselhos daquele
professor de geografia. E isso não significa que o tenha levado a sério mais do
que o necessário. Enfim, não se tratava de um psicólogo, de um assistente
social, qualquer um desses profissionais que têm a obrigação de saber mais da
vida do que nós, os simples mortais. Mas tentei aceitar sua sugestão, muitas
vezes, fechando os olhos e me jogando de cabeça na primeira ideia que me
ocorresse. Em algumas ocasiões obtive sucesso, ou seja, fui exitante, em
outras, quebrei a cara. Conclusão, a verdade absoluta não existe. E isso me
bota algum medo, e o medo é que me faz vacilar entre duas alternativas.
O mundo volta a cobrir-se de claridade. O grupo não parece
mais compacto como era. Dois meninos devem estar jogando frescobol, pelo modo
como correm; uns três ficaram muito pequenos e imagino que estejam construindo
algum castelo de areia ou alguma coisa do gênero; o suposto cão que saltava
para pegar uma bola no ar desapareceu.
A água me cobriu os joelhos. Não vejo outras crianças. Isso
me paralisa, pois minha obrigação, como adulto, seria protegê-las, contudo não
consigo mais arrancar os pés da areia onde estão enterrados.
Esta dificuldade em me decidir foi também a causa de meu
celibato. Numa época não me decidi entre duas candidatas. As duas tinham
virtudes e defeitos. De uma forma tão equilibrada, entretanto, que não via
vantagem em escolher nenhuma das duas. E elas resolveram suas vidas casando com
sujeitos que eu nem conhecia. Quando arranjei uma namorada, e era só ela que eu
namorava, me consumi no medo de que fosse me trair. Era honesta ou desonesta?
Como saber? Escolhi continuar solteiro.
As crianças agora brincam na canoa emborcada, pois a água
ocupou toda a faixa de areia onde elas jogavam seus jogos, e as ondas maiores
vêm brincar no meu peito.
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