Amigos para sempre
Desliguei o telefone, e os olhos da Cecília descolaram-se da
revista para virem até mim a jeito de interrogação. O Marco Aurélio, eu disse,
que hoje por volta das oito da noite vem aqui em casa.
Minha mulher estrepitou uma gargalhada iluminada por olhos
luminescentes. Mas ele já disse o que vai pedir?, ela quis saber. Não, eu não
sabia. Então ela continuou, Saber, não sabemos, mas que vai pedir é certo. E
rimos os dois, pois era história antiga com que nos divertíamos frequentemente.
A história começa no dia que nos conhecemos. Ele sentou numa
carteira atrás da minha e nunca mais me largou. Em aula de desenho, me pedia
material emprestado, apesar da fama de sua família, terratenente de muito
prestígio e muitas léguas de campo. Compasso, transferidor e até uma simples
régua de trinta centímetros, dessas de plástico transparente, muitas vezes tive
de emprestar. Ah, sim, além das instruções. Sem que eu lhe dissesse o ângulo
exato, a extensão da semirreta, o tipo de arco, o tamanho do raio, e além
disso, por onde começar ou terminar, sem minha ajuda material e intelectual, o
Marco Aurélio empacava, coçava a cabeça desesperado.
Vencemos dois anos, trocamos de sala uma vez, mais uma, e,
na carteira atrás da minha, lá estava o infalível pedinchão. Meus pais e meus
irmãos, talvez apenas por respeito à terratenência da família do Marco Aurélio,
amarelavam sorrisos quando eu relatava as mesmas situações em que era vítima
daqueles pedidos.
Completamos o ensino secundário e fui para a faculdade. O
Marco Aurélio, que não tinha muito amor pelo estudo, foi ajudar o pai na
administração de sua rede de lojas, aqui e em cidades vizinhas. Pensei que
nunca mais nos encontraríamos, e isso não me aborreceu demasiadamente, pois já
estava acostumando com aquele peso nas minhas costas.
Não sei quantos anos estivemos livres um do outro. Até que
um dia o Marco Aurélio, por telefone, pediu permissão para me fazer uma visita.
Ora, ora, o Marco Aurélio! Enfim, continuava vivo e, além disso, lembrava-se de
mim. Estava com vontade de me ver. Claro que transcorrido tanto tempo desde
nosso último encontro não me ocorreu que um dia ele representou um peso nas
minhas costas.
Ele veio na hora combinada e me trouxe uma garrafa de vinho.
Chileno. Bem, pelo menos era estrangeiro, que não sendo superior os nossos
vinhos, produzidos em nosso país, pelo menos dava mais status, algo de que eu precisava muito mais do que ele.
Uma chatice esse tipo de reencontro, pois, não se tendo
assunto do presente a trocar, tão diferentes os interesses e ocupações, fica-se
o tempo todo revolvendo incidentes do passado, alguns interessantes, mas a
maioria sem a menor graça.
E foi o que mais ou menos aconteceu: episódios escolares há
muito expurgados da minha memória e sem o menor interesse. O Marco, entretanto,
relembrava aquelas histórias com o rosto cheio de um brilho ingênuo e pensando,
creio eu, que com aquilo me agradava. Fui gentil com ele, como ensinado,
servi-lhe uma dose de uísque, apresentei-o à minha esposa, ofereci-lhe a melhor
poltrona da sala em que passamos bem hora e meia.
Por fim, chegava a hora de se despedir e o Marco Aurélio se
remexeu de modo suspeito. Precisava tirar alguma coisa do bolso, onde enfiava
sua mão direita que, por causa da posição, tinha dificuldade em entrar. Então
levantou-se e seu rosto se descontraiu.
− Ah, Rodrigo, eu tinha um favorzinho para te pedir. Sabe,
preciso de um requerimento, e essas coisas, com redação de advogado são mais
convincentes.
Estendeu-me a folha de papel que finalmente conseguira extrair
do bolso.
− Os dados estão todos anotados nesta folha. Amanhã mando
minha secretária vir buscar.
Assim, desta maneira em que não me deu oportunidade de
recusar. Surpreso, mas nem tanto, peguei a folha e comecei a ler, enquanto ele
me estendeu a mão em despedida. Surpreso, ainda, fechei a porta, então todo
nosso passado, por um ângulo que em nossa conversa ele não tinha abordado,
veio-me à lembrança. O Marco Aurélio, depois de tanto tempo continuava o mesmo.
Um favorzinho.
Pronto. Eu estava novamente com a carteira dele atrás da
minha.
Uma petiçãozinha, uma informação sobre andamento de
processo, a retirada de um documento do cartório do fórum, os favorezinhos. Não
tive mais como esquecer o Marco Aurélio. Ele não me dava chance, nem nunca
falou em pagamento. Favor não se paga.
Até que aconteceu. Fiquei sabendo pelos jornais que seu pai
tinha falecido, e a questão da herança estava bem complicada. Bem, pensei eu,
um processo desses vale a pena, geralmente rende vinte por cento de seu valor
ao causídico. E fiquei aguardando, mas o incrível é que por algum tempo o Marco
Aurélio não me apareceu mais para pedir um favorzinho.
Foi no corredor do fórum que encontrei meu colega a quem
cumprimentei como sempre e ele me segurou para contar-me a novidade. Tinha sido
contratado pelo comerciante e fazendeiro para tocar o processo de herança
contra a chusma de parente que apareceram querendo morder alguma fatia. O
advogado mostrava um semblante realmente celestial. Depois de me contar a
história de sua contratação, repetiu o nome do cliente e me perguntou se o
conhecia.
O processo não foi muito prolongado e teve sua audiência
conclusiva há questão de uns dois meses.
Às oito horas e dez minutos ouvi o grito da campainha. A Cecília,
que estava na cozinha providenciando o jantar, chegou correndo. E rindo.
Eu mesmo fui abrir a porta. O Marco Aurélio cumprimentou-me
sorridente e me entregou uma garrafa de vinho, desses por onde, provavelmente,
não tenha passado uva alguma, nova ou antiga, de nacionalidade nenhuma. Ele entrou
e fez menção de seguir em frente, mas eu tinha tomado o cuidado de deixar a
porta da sala fechada.
Ficamos os dois, de pé, parados no vestíbulo. Ele disse que
era uma visita rápida, eu concordei.
− É simples, disse finalmente, um funcionário me ameaçou de
um processo e eu precisaria saber se já deu entrada em alguma queixa contra
mim.
Acendi o lustre do vestíbulo para observar melhor sua
fisionomia.
− São dois mil reais , respondi.
Ele abriu exageradamente os olhos, me encarou duro,
assustado.
− Como assim?
− Trabalho pela tabela.
Não sei se consegui esconder a vontade de rir e gritar de
alegria ao ver sua expressão de susto, seu rosto retorcido.
− Sim, mas se eu soubesse que era para pagar, eu tinha...
E calou-se para não dizer a monstruosidade que diria. Sem
nada mais a acrescentar, deu-me a mão em despedida. E ainda olhou para a
garrafa de vinho pensando provavelmente no prejuízo que tivera.
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