sexta-feira, 27 de novembro de 2015

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Amigos para sempre
                                                                                                 



Desliguei o telefone, e os olhos da Cecília descolaram-se da revista para virem até mim a jeito de interrogação. O Marco Aurélio, eu disse, que hoje por volta das oito da noite vem aqui em casa.
Minha mulher estrepitou uma gargalhada iluminada por olhos luminescentes. Mas ele já disse o que vai pedir?, ela quis saber. Não, eu não sabia. Então ela continuou, Saber, não sabemos, mas que vai pedir é certo. E rimos os dois, pois era história antiga com que nos divertíamos frequentemente.

A história começa no dia que nos conhecemos. Ele sentou numa carteira atrás da minha e nunca mais me largou. Em aula de desenho, me pedia material emprestado, apesar da fama de sua família, terratenente de muito prestígio e muitas léguas de campo. Compasso, transferidor e até uma simples régua de trinta centímetros, dessas de plástico transparente, muitas vezes tive de emprestar. Ah, sim, além das instruções. Sem que eu lhe dissesse o ângulo exato, a extensão da semirreta, o tipo de arco, o tamanho do raio, e além disso, por onde começar ou terminar, sem minha ajuda material e intelectual, o Marco Aurélio empacava, coçava a cabeça desesperado.
Vencemos dois anos, trocamos de sala uma vez, mais uma, e, na carteira atrás da minha, lá estava o infalível pedinchão. Meus pais e meus irmãos, talvez apenas por respeito à terratenência da família do Marco Aurélio, amarelavam sorrisos quando eu relatava as mesmas situações em que era vítima daqueles pedidos. 
Completamos o ensino secundário e fui para a faculdade. O Marco Aurélio, que não tinha muito amor pelo estudo, foi ajudar o pai na administração de sua rede de lojas, aqui e em cidades vizinhas. Pensei que nunca mais nos encontraríamos, e isso não me aborreceu demasiadamente, pois já estava acostumando com aquele peso nas minhas costas.
Não sei quantos anos estivemos livres um do outro. Até que um dia o Marco Aurélio, por telefone, pediu permissão para me fazer uma visita. Ora, ora, o Marco Aurélio! Enfim, continuava vivo e, além disso, lembrava-se de mim. Estava com vontade de me ver. Claro que transcorrido tanto tempo desde nosso último encontro não me ocorreu que um dia ele representou um peso nas minhas costas.
Ele veio na hora combinada e me trouxe uma garrafa de vinho. Chileno. Bem, pelo menos era estrangeiro, que não sendo superior os nossos vinhos, produzidos em nosso país, pelo menos dava mais status, algo de que eu precisava muito mais do que ele.
Uma chatice esse tipo de reencontro, pois, não se tendo assunto do presente a trocar, tão diferentes os interesses e ocupações, fica-se o tempo todo revolvendo incidentes do passado, alguns interessantes, mas a maioria sem a menor graça.
E foi o que mais ou menos aconteceu: episódios escolares há muito expurgados da minha memória e sem o menor interesse. O Marco, entretanto, relembrava aquelas histórias com o rosto cheio de um brilho ingênuo e pensando, creio eu, que com aquilo me agradava. Fui gentil com ele, como ensinado, servi-lhe uma dose de uísque, apresentei-o à minha esposa, ofereci-lhe a melhor poltrona da sala em que passamos bem hora e meia.
Por fim, chegava a hora de se despedir e o Marco Aurélio se remexeu de modo suspeito. Precisava tirar alguma coisa do bolso, onde enfiava sua mão direita que, por causa da posição, tinha dificuldade em entrar. Então levantou-se e seu rosto se descontraiu.
− Ah, Rodrigo, eu tinha um favorzinho para te pedir. Sabe, preciso de um requerimento, e essas coisas, com redação de advogado são mais convincentes.
Estendeu-me a folha de papel que finalmente conseguira extrair do bolso.
− Os dados estão todos anotados nesta folha. Amanhã mando minha secretária vir buscar.
Assim, desta maneira em que não me deu oportunidade de recusar. Surpreso, mas nem tanto, peguei a folha e comecei a ler, enquanto ele me estendeu a mão em despedida. Surpreso, ainda, fechei a porta, então todo nosso passado, por um ângulo que em nossa conversa ele não tinha abordado, veio-me à lembrança. O Marco Aurélio, depois de tanto tempo continuava o mesmo. Um favorzinho.
Pronto. Eu estava novamente com a carteira dele atrás da minha.
Uma petiçãozinha, uma informação sobre andamento de processo, a retirada de um documento do cartório do fórum, os favorezinhos. Não tive mais como esquecer o Marco Aurélio. Ele não me dava chance, nem nunca falou em pagamento. Favor não se paga.
Até que aconteceu. Fiquei sabendo pelos jornais que seu pai tinha falecido, e a questão da herança estava bem complicada. Bem, pensei eu, um processo desses vale a pena, geralmente rende vinte por cento de seu valor ao causídico. E fiquei aguardando, mas o incrível é que por algum tempo o Marco Aurélio não me apareceu mais para pedir um favorzinho.
Foi no corredor do fórum que encontrei meu colega a quem cumprimentei como sempre e ele me segurou para contar-me a novidade. Tinha sido contratado pelo comerciante e fazendeiro para tocar o processo de herança contra a chusma de parente que apareceram querendo morder alguma fatia. O advogado mostrava um semblante realmente celestial. Depois de me contar a história de sua contratação, repetiu o nome do cliente e me perguntou se o conhecia.
O processo não foi muito prolongado e teve sua audiência conclusiva há questão de uns dois meses.   
Às oito horas e dez minutos ouvi o grito da campainha. A Cecília, que estava na cozinha providenciando o jantar, chegou correndo. E rindo.
Eu mesmo fui abrir a porta. O Marco Aurélio cumprimentou-me sorridente e me entregou uma garrafa de vinho, desses por onde, provavelmente, não tenha passado uva alguma, nova ou antiga, de nacionalidade nenhuma. Ele entrou e fez menção de seguir em frente, mas eu tinha tomado o cuidado de deixar a porta da sala fechada.
Ficamos os dois, de pé, parados no vestíbulo. Ele disse que era uma visita rápida, eu concordei.
− É simples, disse finalmente, um funcionário me ameaçou de um processo e eu precisaria saber se já deu entrada em alguma queixa contra mim.
Acendi o lustre do vestíbulo para observar melhor sua fisionomia.
− São dois mil reais , respondi.
Ele abriu exageradamente os olhos, me encarou duro, assustado.
− Como assim?
− Trabalho pela tabela.
Não sei se consegui esconder a vontade de rir e gritar de alegria ao ver sua expressão de susto, seu rosto retorcido.
− Sim, mas se eu soubesse que era para pagar, eu tinha...
E calou-se para não dizer a monstruosidade que diria. Sem nada mais a acrescentar, deu-me a mão em despedida. E ainda olhou para a garrafa de vinho pensando provavelmente no prejuízo que tivera.



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