domingo, 27 de dezembro de 2015

DEGUSTAÇÃO 6 − O FANTASMA DA SEGUNDONA

A postagem de hoje é dedicada aos jovens. Publicamos, a seguir, o primeiro capítulo do romance juvenil O FANTASMA DA SEGUNDONA, editado pela FTD, em 2014.

Para obter mais informações sobre a obra, acesse a página do livro  aqui no BLOG DO MENALTON.

Boa leitura!

O fantasma da segundona. Menalton Braff

1. Enfim, o resultado

Peço a minha mãe que não conte nada a ninguém. Ela faz uma careta de deboche, me baba uma porção de beijos nas bochechas, mas promete. Não pode me tirar o prazer da surpresa. A notícia é minha e vou divulgar para quem e quando eu quiser.

Estava lá, com todas as letras do meu nome. Maurício Andrade da Silveira. É impossível um xará de nome inteiro. Abro a porta e me lembro de que deixei a carteira em cima da cama. Volto correndo e a apanho. Estou com pressa, porque a cambada já deve estar no restaurante. Não conferi todos os nomes, por absoluta falta de tempo. Tenho a impressão, contudo, de que todos da minha turminha passaram. Pelo modo como aceitaram meu convite: dúvida nenhuma. O
pessoal está numa vibração só. A esta hora o trânsito está um pouco pesado. Muita gente correndo atrás de comida. Eu quero é comemoração. Já estou cinco minutos atrasado. Parece que o farol fecha de propósito quando me vê.

Ali na frente o posto de combustível. Viro à direita e me livro desse congestionamento. Que droga! Aquele carro azul bateu na traseira da caminhonete. E os caras vão querer brigar. Uma rápida manobra, passo apertado entre dois ônibus e me livro do acidente. Caramba!, eles vão conseguir piorar o trânsito. Falta de atenção.

Apesar do meu atraso, ainda sou o primeiro a chegar. Aí vem o Marcão a pé. Ele mora aqui por perto. Ergue o braço e se anuncia como se fosse preciso. O cara joga basquete na escola.  Deixo o carro estacionado na guia e volto pulando, erguendo e abaixando os braços. Entrei, eu grito, e ele responde, Eu também. Nossos abraços são um pouco violentos, com barulho de mãos nas costas, mas vale a pena. Nós merecemos. Passamos este último ano em cima dos livros, sem domingo nem feriado. Nos ferramos de tanto estudar. É a hora de fazer festa.

Só podia ser ele, o Adalberto, pra chegar buzinando com tanto espalhafato. E não vem sozinho, o Meio-quilo. Mas não deu pra ver quem era. Deixa o carro atrás do meu. Ah, sim, é o Telmo que vem com ele. O Marcão vai ao encontro dos dois, era da mesma classe do Telmo: são muito amigos.
Comemoramos com gritaria e gargalhadas, e nos abraçamos, e pulamos, nós quatro, com nossos rostos pintados de alegria. Já estamos entrando no restaurante e chegam os quatro que ainda faltavam. Nossa turma está completa.

O garçom nos traz o cardápio e em volta da mesa todos ficam à espera de que eu indique o que vamos comer e beber.

− Você que já rodou o mundo, Maurício. Vê aí o que é melhor.

Às vezes tenho a impressão de que eles me têm amizade e respeito não por mim, mas pelo prestígio de ter viajado o mundo, comendo nos melhores restaurantes de muitas cidades do exterior. Começo a ler em francês os nomes dos pratos e meus amigos me imitam caricatamente com os lábios fazendo biquinho. Fecho o cardápio bruscamente, encaro a turma e me declaro ofendido. Eles param de rir e com voz dura encomendo o badejo a bonne femme. A mesa parece que vai sair voando, tal a trepidação com as gargalhadas.

− Isso é de comer? –, eles me perguntam.

− Ó, Maurício, sem frescura que estou é com fome, entendeu?

Discuto com o garçom o que pode acompanhar o badejo, escolho algo mais substancial, que a meninada aí não é de comer com as pontas dos dedos, eu bem que conheço a todos.

− E o vinho... –, o garçom ao lado anotando, mas não posso continuar.

− Para com isso, Maurício! Se você quiser que tome vinho. A galera aqui vai é de Isolado no gosto, me curvo e peço cerveja, mesmo sabendo que uma bebida mais condizente com o prato é um bom vinho. Mas nossa turma não é muito de finezas, esse negócio de combina ou não combina. E o garçom se afasta com nosso pedido. Ninguém pede nada diferente, coisa que facilita seu trabalho.
Descubro no relógio do Telmo que já são três horas e, além da notícia a meu pai, que ainda não sabe de nada, nossa comemoração começa a ficar pesada. O pessoal não conhece limites. A um sinal meu, o garçom se aproxima com o rosto sinalizando seu desagrado por causa de nossa algazarra. Ele não pode imaginar até que ponto temos necessidade de explodir nossas emoções. Mas ainda tenho de dar a notícia a meu pai. Ele não está sabendo de nada.

Pagamos e começamos a sair, na frente de todos, e com mais pressa que meus amigos, saio para a tarde de um sol agressivo, que me ofende os olhos turvos. Meus amigos que chegaram a pé exageraram na cerveja, mas eles não precisam dirigir. 

A esta hora o trânsito flui normal, e o shopping não fica muito longe. Só espero que a mamãe não tenha telefonado para o marido dando a notícia que só eu tenho o direito de dar. E também não posso esquecer os trotes na faculdade. As sessões de terror começam hoje. Preciso pegar um boné daqueles que meu pai tem na loja. Se me rasparem a cabeça. Os veteranos exercem o sadismo com um prazer sem explicação. Hoje é um dia muito alegre, mas uma alegria manchada: sinto que hoje é o dia da nossa dispersão. Cada um pra um lado. Nossa turma passou junto desde o primeiro colegial. Daqui um mês a gente não se encontra mais. Talvez ainda nos fins de semana, mas não é como foi até agora.  Pior ainda é a Clara. Tinha que escolher Londrina? Nem sei onde fica, só sei que é no Paraná. Que o curso de medicina lá é muito bom, ela respondeu. E choramos um pouco. Mas tem que ser assim? Sensação de que a gente nunca mais vai se ver. E se você trancasse matrícula, Clara. Ficando louco, Maurício! Nem matrícula eu fiz ainda. Era a solução do meu desespero. Em casa, no meu quarto, fechei os olhos ardentes, montei num cavalo branco e sequestrei a Clara. Na ilha onde vamos morar, eu disse a ela, enquanto o cavalo branco galopava por vales e montanhas, ninguém precisa estudar, por isso nunca mais vamos ficar separados. 

Não é sorte, é a hora e o dia. Manobro e estaciono à sombra de uma canelinha. O shopping fica mais movimentado daqui umas duas horas. O povo das lojas, dos escritórios e das escolas começa então a chegar. No meio do corredor, na frente do cinema. Já vejo daqui o letreiro KAMANGA - artigos esportivos. Quase tropeço na mulher com o carrinho de neném: eu, olhando o letreiro do meu pai; ela, devassando as vitrines.

Paro na porta e dou um grito. Sei que é exibicionismo, mas não me contenho. Que saibam todos.

− Entrei!

Lá no fundo, atrás de uma escrivaninha, meu pai ergue a cabeça, e me parece que um pouco assustado. Não é todo dia que lhe aparece um filho gritando na entrada da loja. Alguns dos empregados, os que não estão atendendo ninguém, se aproximam com ar de festa. Meu pai guarda um papel na gaveta, levanta-se e vem com sorriso exposto no rosto. Ele já entendeu o que acontece.
Começo a receber os cumprimentos, com abraços, tapas nas costas, apertos de mão, palavras apropriadas para a ocasião. Meu pai chega e me ergue no ar. Apesar de seus quarenta anos, conserva-se um homem forte. Os clientes não entendem nada, mas alegria é uma coisa de fácil contágio, e a loja fica parecendo um clube em dia de comemoração.


− Churrasco no domingo, pessoal. Lá em casa.

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