
O livro foi lido e debatido recentemente pelos detentos de Araraquara. Veja a postagem.
Mais informações na página do livro, aqui no BLOG DO MENALTON.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem
enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Carlos Drummond de Andrade
Menalton
Braff. Que enchente me carrega?
Sentimento do Mundo
Deixei o bar quase chorando, ontem à noite. E isso me traz
amargas lembranças dela, que me dizia se não sabe beber então não bebe e a
gente acabava brigando quando ela dizia isso porque eu sabia que ela tinha
razão e me sentia vulnerável. Que droga! Tanto tempo aqui entocado, perdi a
conta, porque não suporto mais as pessoas e dou de cara justo com o Godofredo.
Com ele. Mas a culpa foi minha, que aceitei o convite, mesmo sabendo. Já sabia.
A camisa grudada nas costas, o ar quente, parecia que eu mergulhava numa poça
de lama, o focinho chafurdando na sujeira. Justo com ele, tão cheio de
doutrinas e livros, tão satisfeito com o próprio discurso.
Na esquina da farmácia o mundo adernou de vez e abraçado num
poste vomitei. Tudo: a cerveja e sua espuma, um líquido azedo. O suor
escorrendo até a cueca. Depois os arrancos, o estômago vazio querendo passar
pela goela, e a baba a escorrer pelos cantos da boca. Respirei fundo, como acho
que
ajuda, e olhei em volta, espiando, espaço ainda para uns restos de vaidade:
não fosse alguém me surpreender em tal miséria. Limpei a boca na fralda da
camisa e me senti mais aliviado. Só então percebi que a noite quente era
sobressaltada, de vez em quando, por uma aragem fresca e arisca, com cheiro de
terra. Em algum lugar deve estar chovendo, achei, e é bom que a chuva chegue
logo, me lavar do lodo e da voz do Godofredo, aquela voz de pano rasgando,
arrancada com muito esforço da glote arruinada pra me arranhar a cara e o
peito, pra me dizer que artista que porra nenhuma, o filho da puta, você não
passa de um artesão e olha lá se ainda não acaba remendeiro. De bem longe é que
vem esse prazer dele de me agredir. Sei muito bem, mas não volto mais lá, isso
é que não.
Se não abro as janelas, urgente, me sepulto cogumelo aqui
dentro. Deixar uma semana inteira tudo aberto. Espero a chuva passar e abro.
Hoje mesmo. Apesar de bêbado, senti o cheiro de mofo, quando entrei. Razão
nenhuma pra manter tudo escondido, como se a Elvira, que gostava de tudo
escancarado. Tento fugir dela, de suas lembranças, mas aqui dentro é difícil
evitar. Principalmente à noite, antes do sono, ou numa manhã de chuva, como
agora, em que prefiro ficar na cama. Acho que muitas coisas ela fazia de
propósito, seus testes. Não podia ser tão ingênua que não percebesse meu
desagrado. Foi no que deu. Mesmo assim, era doce o contato com sua carne morna
e sua voz macia. Além disso, me livrava de muitos aborrecimentos: contas,
compras, roupa, comida. Não me ajeito com isso. Vivo me perdendo com datas e
lugares, os guichês. Dava conta de tudo e ainda trazia a casa em ordem, como se
dona. Na minha casa mando eu impunha. Pois então casasse com ela louca de
raiva. A Elvira.
Não me lembro direito como foi que nos conhecemos, nem
quando. Parece que a gente se cruzava na rua, não tenho muita certeza, mas pode
ser, minha memória anda meio fraca, e me disseram que isso é assim mesmo,
acontece depois de uma certa idade. Deve ser. O que eu sei, que depois ela me
contou, que em seu caminho ficava uma sapataria onde a grã-finagem encomendava
seus calçados, que um velho de barbas brancas e um rapazinho tímido de olhos
claros. Que não me lembrava, como podia me lembrar? Meticulosa, ela procurava
descobrir o instante do primeiro brilho, uma data em que periodicamente se renovasse
o encanto do primeiro encontro. Falava naquilo, emocionada. Pode ser que seja, não
sei. Eu não me lembro. Para despistar, afirmava que não tinha havido um momento
especial, que uma fisionomia vai ficando familiar, seus traços ganhando maior
nitidez, até que se torna presença, lembrança, como um crescimento, só isso. E
era o que bastava para que se amuasse, ressentida, e fosse cuidar da horta. Seu
refúgio? Arrependido, inventava uma necessidade pra me aproximar, me agachava
dando opinião sobre os tomates, esmagava ovos de borboleta nas folhas de
rúcula, resmungava contra as pragas, até começar um assunto difícil, truncado,
que não era bem aquilo que eu queria dizer, que para ela talvez houvesse um
momento diferente, você sabe, as coisas não se dão pra todos do mesmo jeito,
bem que gostaria, também, mas a memória não me ajuda, compreende? Ela dizia que
sim, claro, e me trazia pra cama: uma vertigem. Só por sorte não me deu cãibra esta
noite nem os sapatos consegui tirar. Será que o inverno? Abro tudo! Que entre
o sol, que se regalem de espiar. Acho que umas oito horas. Ou mais. Podia ficar
deitado, agora, na vagabundagem, fingindo que não tenho o que fazer.
Mas amanhã ia ser o diabo. Ela vem de manhã bem cedo. Uma
droga! Eu prometi. E nunca deixei de cumprir, não vai ser agora. Preciso me
sacudir pra fora da cama. Quem sabe um banho quente. E hoje à noite faço a
barba, troco de roupa. Ela nunca me viu neste estado. Não, é claro, eu sei que
não pode acontecer mais nada. Quando era possível, acho que era, existia a
Elvira. Pode ser que medo, ou respeito, uma impressão de que dona Rosário
esperava por mim, tinha alguma esperança. E nas unhas também, faço uma faxina. Não
é por nada, mas é muito ruim que ela me veja como ando. Nem sempre assim. Fui amargando
sem perceber. Mas a garganta seca é da ressaca. Acho que suei muito.
Não entro mais naquele bar. Nunca mais. Pior erro foi
aceitar a cerveja do Godofredo. Não que ande em situação de recusar, isso não,
mas era um preço exagerado e eu já devia saber. Todas as vezes: paga a cerveja
em troca do ouvinte. Foi sempre assim: passava uns tempos sem aparecer no bar
do Mineiro, e lá vinha o Godofredo preocupado, mas então, o que é que anda
acontecendo, até pensei que alguma doença. Aquilo um exagero que chegou a me
nutrir desconfianças. Espiei, dissimulei pegar os dois. Incapaz de confessar
aquilo pra ninguém, mas sozinho na oficina a refilar um pedaço de sola ou
preparando a cola de polvilho, era no que pensava: pegar os dois. Um plano sem
progresso por falta de enredo, e por mais que vivesse repetindo, não se
desenvolvia: pegar os dois. Cheguei a jogar umas indiretas pra Elvira, de viés,
com porta de retorno. Se entendeu, então era muito boa atriz: não deu a menor demonstração.
Pelo contrário, até comentava afetando distração que não entendo, você agüenta
desaforo de um vesgo sem educação dentro da tua casa. Tinha jeito de proibir
que viesse? Sem ser por causa da Elvira, por que outra razão viria?, se bastava
me encontrar pra se sentir irritado: aquela necessidade compulsiva de me
atacar, me destruir, acho que pra se compensar do artista fracassado
trabalhando em linha de produção, oito horas por dia recortando desenho alheio,
cronômetro medindo produtividade até a sirene ordenar o descanso. Nem bem
sentei, me atacou num ponto dolorido, em que evito mexer: Olhaqui, Firmino, não
tenho nada a ver com tua vida, que por sinal deve andar uma merda, mas fora da
produção em série não existe mais futuro. Aquilo assim, de repente, sem nenhuma
anestesia, como se o propósito fosse manter aberta alguma chaga. Um olhar de
caçador cansado, com raiva. Esperei que me enchesse o copo sem coragem de desviar
os olhos da espuma que se formava, uma calma que não era calma, porque era tristeza
e desânimo, e eu, então, como é que fico?, pode um amigo chegar e decretar impunemente
que você não existe mais, fim da linha, desembarca porque os outros estão esperando
pra subir? A espuma foi diminuindo, estreitando, até virar coroa branca no ouro
transparente do copo. O homem encurralado, brecha nenhuma por onde escapar, é
fera, com direito ao comportamento feroz, por isso, antes de tomar o primeiro
gole, olhei bem nos olhos do Godofredo e mandei que ele fosse tomar no cu.
Mandei mesmo. A primeira vez, mas mandei. O bar todo ouvindo, suspenso no gesto
seguinte de quem jamais tinha tido algum. As mãos imóveis sobre a mesa, com
enormes unhas verdes, talvez balançando no ar a poucos centímetros do piso
encardido, e eu aniquilado pelo estrugir de sua gargalhada como se minha reação
o tivesse deixado muito feliz, quem sabe pelo susto do inesperado ou justamente
pelo êxito da previsão, e eu sem conseguir desgrudar os olhos dos pés ossudos e
vigilantes de meu avô, inutilmente estendidos sobre a mesa. Depois de se acalmar,
e ainda rindo, o Godofredo me piscou o olho menos vesgo e disse em tom de brincadeira
que você é uma fera acuada.
Das coisas que mais detesto é que alguém me defina. Quanta
gente se perde na vida por culpa de uma definição! Chega um sujeito qualquer,
sem responsabilidade nenhuma, e inventa os limites, descreve o universo numa
frase, bota uma camisa-de-força num cavalo selvagem. Pronto, fode tudo! Dali
pra frente a personagem assume seu pálido papel e quebra a cara na tentativa de
um bom desempenho. Nem chega a perguntar se era aquele mesmo o seu texto. Isso
com as crianças, então! O Carlinhos é um menino muito obediente, e pronto, o
filho da puta passa o resto da vida de cabeça baixa, obedecendo, engolindo
sapo, com medo de ser expulso do palco pelo diretor. Meu avô me advertia desde
pequeno: ninguém pode se estreitar tanto que caiba numa definição. A não ser
que desista de suas virtualidades. Impossível entender meu avô. Será que alguma
doença? Seu mundo um mistério, mesmo pra
mim: sua família. Desistiu da vida em momento escolhido, inteiro domínio de
conteúdo e forma, sua marca o homem escolhe, o objeto é escolhido. Tudo nele
difícil e mais que tudo a conversa, seus pensamentos. Bem assim. E eu, meus
vinte anos, por aí, sem competência pra enfrentar a vida, muito menos a morte,
ali, balançando nos pés ossudos de unhas esverdeadas a menos de um metro acima
do assoalho. E ele, rígido como a última definição, nenhum gesto de despedida.
E sabia da minha fragilidade, e se sabia da minha fragilidade, por que não
esperou um pouco mais, não prorrogou o desfecho? Preferiu me excluir de seus
planos quem sabe pra não se fazer cúmplice de meu destino. Uma das mãos parecia
pronta a um afago, como se no último instante. Os dedos abertos. Não sei de
onde apareceu tanta gente. A sala, a cozinha, o quarto, a morte acabava com a
intimidade e transeuntes me puxavam, diziam as coisas, determinavam. Alguns não
me eram estranhos, provável que da vizinhança. Se alguém tocasse a campainha,
me trocava em menos de um minuto. Preciso. Mas quem? O Godofredo, depois que a
Elvira, sumiu daqui, o que renova minhas suspeitas, apesar de sua alegação de
que me tornei misantropo. Agora me chama de fera acuada.
Ou então dormir outra vez. Esquecia o gosto amargo na boca.
A cola, se o sol, seca em pouco tempo. Dona Rosário, há quantos anos? E a
filha. Vi crescer. Vi moça feita, o corpo imitando o da mãe, quase tão
cobiçoso, não fosse ter visto ela crescer, ter eu mesmo imaginado seus
primeiros sapatos, mais era pela mãe aquele desejo só confessado ao travesseiro,
à noite, quando ninguém pudesse suspeitar de minhas fantasias. Poderia ter ido além,
não esbarrasse na timidez, porque ela oferecia o pé em bandeja de prata pra
tomar as medidas, veja como pode a natureza ser perfeita, as curvas, torneados,
uma correntinha de ouro presa no tornozelo, o simples toque, a pele macia,
ajoelhado em adoração, e o perfume fino, dizem que existem perfumes
afrodisíacos, e também me encarava, uns olhos que ai, meu Deus, mal revelavam
pedaços de paraíso. A Elvira na horta, nos fundos, cultivando, entre legumes,
um canteiro de sempre-vivas.
Depois, um dia, acordei com
o barulho das máquinas. Homens de capacetes azuis foram o prenúncio, uma semana
antes, seu apocalipse. Antes, quando apareceram num fim de tarde e não atinei
com o que faziam ali, atrás do muro, o lugar sem função, o ermo, fim de cidade.
Falavam alto, esticavam barbantes e cravavam estacas, nos dias que se seguiram,
mas seus gestos continuavam destituídos de significado e pareciam inúteis, a
não ser quando algum deles espiava por cima do muro perscrutando o mato onde
fora uma horta, ver se descobria o segredo por baixo das raízes, sinal de terra
recém-revolta. Apesar das precauções, foram dias de medo e vigília, até
chegarem as máquinas, quando a lógica reatou as pontas.
Parou de rir e disse muito sério que a história, sabe,
Firmino, a história se desenvolve por leis objetivas, lá ele outra vez com as
leis objetivas, e esmaga quem tenta se opor a ela, sabe, e tal e coisa, como
profeta desacreditado, ameaçador, e no meu peito um fogo que não se apaga com
cerveja, porque era angústia, e os remanescentes do modo feudal de produção estão
fadados, e a acumulação capitalista, porque a burguesia foi um dia
revolucionária, ao extirpar da sociedade os privilégios feudais, apesar de que uma nova classe, o
proletariado. As garras cravadas na mesa, resistia, mas não escutava mais:
ouvia. E eu, então, como entro ou saio dessa história, o que faço de mim? Que
me desculpe a franqueza, mas sua vida inteira um equívoco, tentando desconhecer
o progresso. Pois que se fodam você e o progresso juntos, porque meu negócio é
outro. Eu crio, entende?, e posso dizer com orgulho que nunca fiz dois pares
com o mesmo desenho. Só a criação me dá prazer. Vontade mesmo era de fugir
dali, do olho vesgo do Godofredo, de suas leituras e profecias. Mas o copo
estava cheio e o corpo pesado. E a arte, Godofredo, não tem mais futuro também?
Ficou mais vesgo e pediu outra cerveja pra ganhar tempo. Ele assim: cheio dos recursos
numa discussão. Você fala de arte como se. E emborcou o copo, satisfeito,
vitorioso, empunhando a bandeira do futuro. O Godofredo não seria o Godofredo
se uma única vez concordasse comigo. Impossível. Nunca me acusou diretamente
pelo que aconteceu com a Elvira, mas desde antes seu olhar de viés já me
perseguia, descobrindo o que estava por acontecer. Acabei ficando.
Compromisso apenas amanhã, mas preciso saber as horas e o
relógio na cozinha, insistindo que são dez e vinte. Dona Rosário: Minhas
condolências, Firmino. Me pareceu que nem quis isfarçar a alegria na voz
entristecida por obrigação. Afinal, nem sei no que teria dado, superada a
timidez. Nunca tentei. Me levanto e tomo um banho. Preciso. Mais por medo de
uma tragédia que por fidelidade: o respeito. Adiantou de nada. Há quanto tempo
acordado? Esta claridade azulada é incerta e pouco incomoda, os barulhos da rua
é que não me deixam dormir outra vez. Já passaram todos: alegres, tristes,
indiferentes, cumprindo cada qual sua rotina, que não entende, cumprindo apenas
porque a noite acabou e a engrenagem precisa de todos os postos ocupados pra
funcionar. Amanhã, dona Rosário. E faço a barba, que ultimamente só em ocasiões
especiais. Meu avô aparava com a tesoura. As paredes rachando, os vidros
quebrados, mofo e pó cobrindo os livros. Assim nos últimos anos. Não olhava
mais a sua volta. Perdia suas ligações com o mundo, aos poucos se desprendia.
Com sua aparência pessoal, contudo, sempre o mesmo cuidado. As pessoas comentavam
com maldade, achando que um velho, como ele, devia sentir vergonha de suas preferências.
Até o último momento. Minutos antes, tinha tomado um banho, penteado o cabelo
branco e farto, vestido um pijama limpo. A Elvira também. Mais afoito, no
início, quem sabe um rumo novo na vida. Agora, começa a enrugar, como eu. E com
as rugas arrefecem os ímpetos e as arestas da vida vão amaciando. Além do mais,
este desleixo: cada vez mais parecido com a casa. Os pés, principalmente,
perderam o frescor de outros tempos. Não os oferece mais, como antes, dois
poemas à natureza. Apesar dos cremes e massagens. A filha veio poucas vezes,
retraída, tanto faz. Só o corpo imitava o da mãe. Mal casada, deve andar
calçando sandália de plástico barato, a infeliz.
O pior de tudo, depois, é o gosto amargo na boca. Preciso
evitar o bar do Mineiro. Aliás, com a freguesia que me sobrou, preciso evitar
qualquer bar. Isso mesmo. E as discussões. Que fora da indústria, e toda aquela
conversalhada, não existe mais futuro. Imbecil. Fala do futuro como se fosse o
dono das chaves, ele, que nem dono do que faz, seu dia enterrado onde mandam,
horas contadas num cartão pra continuar comendo. Nem do que faz. E o sol, por
que não aparece? Desconfio de que até paga aluguel.
A profissão, um terreno e em cima dele uma casa
desmoronando: meu legado. Nem perto ela nunca chegou. Que lá, de noite, é o que
dizem. O povo maldava: sai no fim da tarde, o teu avô e a bengala dele. Amigo
nenhum na rua povinho de poucas letras, incapaz de entender a barba branca
singrando a aragem loira do fim da tarde. Então, por não saberem, inventavam
explicações: que à meia-noite, os uivos e os móveis se arrastando. Mesmo as
amigas: não aceitasse morar na casa. Algumas envenenavam pior, que o próprio neto,
Deus me livre, com ele. Solteira e frustrada, aproveitava a ocasião pra mentir:
prefiro morrer virgem como nasci. Depois de muitos anos, aquelas histórias,
quando as diferenças maiores foram-se tornando nódoas irremovíveis, como
profecias em cumprimento. Vendo só? Eu é que não via. Que só de olhar passando,
pela frente, os arrepios. Por isso este pé de morro, onde o dinheiro alcançou.
A cidade ficando além, no rumor, na iluminação. Pois nem aqui escapei, porque
agora esta história da Prefeitura: um asfalto seis metros barranco a baixo, que
de nada me serve, pela metade da horta, fundo do meu quintal. Fora as outras despesas,
como a do muro novo. E os meses de incômodo e irritação com as máquinas destripando
a terra e o cheiro de piche quente e os olhares curiosos investigando as intimidades
da casa, o lado de trás, sua nudez. Nem aqui.
Não dá mais, sabe, Firmino, e os amigos iam fugindo,
debandando, morrendo de medo. Alguns foram pousar em outras profissões,
indiferentes ao que faziam, contanto que no fim do mês. Com as fábricas, os
restantes se assalariaram, desintegrados numa linha de produção. E o primeiro
de todos, o Godofredo, por causa da objetividade das leis históricas, e a
fundação do sindicato. Os fregueses também. Um dia cruzei por acaso com o Dr. Moreira,
na rua 7 de Setembro. Só faltou enfiar os pés nos bolsos, pra esconder aqueles sapatos
grotescos com sola de borracha inteiriça. Um homem rico e inteligente, mas sem requinte.
Nunca mais vi o Dr. Moreira. É uma merda, mesmo!
Até podia ter escolhido outra. É claro. Sonhava com mar,
navio. As histórias de meu avô. No meio da tempestade, o brado, mãos firmes no
timão, o tombadilho invadido pela onda furiosa, os elementos amotinados.
Depois, calmaria, imensidão, os portos do mundo, uma amante oriental, incursões
por terras exóticas. Podia, sim. E enquanto sonhava, ia refilando o couro,
amaciando a sola, cortando, pespontando. Os segredos mais íntimos, todos os
segredos, ele me revelava com paciência. Por fim, até modelista. A melhor
parte. A imaginação sem os limites da matéria. Me criei grumete: a faxina, as miudezas, recados e
entregas; e acabei comandante. Uma cabina sem bússola? Acho que não podia.
Quase impossível fugir de uma profissão instilada, vagarosamente, gota a gota
no sangue. Fui aceitando, conivente, incapaz de escolher. Os portos do
mundo. Nem ônibus interurbano, essa é
que é a verdade. Vaga lembrança de uma vez, minha mãe dizendo xixi, faz, e era
um banheiro apertado, sacolejante. Não sei como terminou. Não me lembro. Nem
como ela era. Fotografia uma só, de casamento, um lenço branco na algibeira, o
bigode fino bem aparado, e o olhar de pânico, dela, que destino me espera?
Parecidos com ninguém, os dois, inteiramente estranhos. Não há como o tempo pra
desbotar as feições de uma pessoa. Ninguém resiste. Da Elvira, ultimamente, por
maior o esforço, às vezes me foge a fisionomia. E olha que ela. Muitas fotos,
mas todas e tudo o mais com ela, sete palmos por baixo do canteiro de
sempre-vivas. Ali, pra sempre, bem perto de mim, à minha disposição. Quer
fugir, ir embora? Vai mas é ficar plantada no meu quintal, bem perto, ao
alcance de minhas noites insones. Marinheiro é jogado ao mar. Dizem que os
tubarões. Eu, se um dia, me sentia muito bem no uniforme de gala. Almirante ou
capitão. Nem pra uma camisa nova, isso sim, maior vergonha quando aparece dona
Rosário. Minha rota mal traçada. Quem escolheu o porto ao qual nunca vou
chegar? É só parar a chuva, pulo fora da cama. Um bom banho, lavar o suor e os
pensamentos, principalmente o suor: o travesseiro molhado. O corpo todo
encharcado e um tremor que eu não podia controlar. As pessoas na sala, na
cozinha, transeuntes, de donas da situação e um cheiro horrível de flores
murchas e espermacete. Sobre a mesa os pés ossudos e de unhas esverdeadas da
Elvira, e eu, meus vinte anos, por aí, sem competência pra enfrentar a vida,
muito menos a morte, ali balançando, toma, filho, toma o café, vai se sentir
melhor. Mas por que espécie de instinto sempre me esquivei às carícias de meu
avô? Tomava o café e fingia obediência por astúcia, à espreita do momento
oportuno, quando todos tivessem. ido embora.
A enfermeira disse não vai doer nada, sorriso adulto,
profissional, nem tive tempo de perguntar o que eu tinha e ela disse uma semana
aqui tresvariado mas agora vai ficar bonzinho outra vez porque o médico tem
esperança e porque choque emocional pode nocautear por vários dias choque mesmo
como uma porrada na cabeça e se o paciente é dos que absorvem bem pancada é só
uma questão de dias e se nunca mais volta a ser o mesmo pelo menos pode receber
alta e ir descosturar sua mente onde ocupe menos espaço e eu já tinha fechado
os olhos um peso na cabeça o resto do corpo entregue como se não existisse.
Não sei o tempo que dormi, ou se apenas sonhava acordado, à
espera de que alguma coisa finalmente acontecesse. Muitas vezes durmo de olhos
bem abertos, em qualquer lugar. O corpo relaxa, a respiração cadencia e uma
camada fina de suor me lava a testa, as axilas, o peito. O mundo, então, se
descolore, e nenhuma forma é nítida ou estável, porque todas as formas se
transformam, se confundem. Outras vezes, dormindo, me surpreendo em vigília,
tenso, um gesto engatilhado. Há muitos anos perdi a noção do limite exato entre
sono e vigília, se é que algum dia tive essa noção. Acho que dormi, sim, e pelo
jeito nada mais pode acontecer.
*
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