sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Não sou canibal    

Quando eu chamei, ela não veio, como costumava na hora da ração. Esperei até o sol desaparecer, escondido nas trevas da noite. Os demais foram chegando, passo lento, mugindo uns para os outros, sua vizinhança, mas minha vaquinha, aquela de estimação, aquela não veio. Ainda pensei em sair à procura dela pelo campo, mesmo na escuridão, ideia que minha mulher, esta aí, me tirou da cabeça com palavras de ferir meus sentimentos. Foi difícil embarcar na canoa do sono: ela balançava muito. Decerto cochilei alguma coisa, mas tão pouco que de manhã eu saí da cama dizendo ter passado a noite em claro.
O café me queimou a língua apressada, e saí para o campo mastigando ainda um pedaço de pão. Na mangueira, a Mimosa, com suas malhas pretas e marrons não estava.  A trote atropelado atravessamos o campo até o capão sem nada ver. As moitas sem estatura para esconder um animal, mesmo que fosse minha vaquinha, não atrapalhavam nossa busca. Beiramos a cerca, no seu correr, e fomos sair do outro lado, o resto de pasto mais verde, de terra úmida. Então já podíamos pensar que nos encontrávamos nas lonjuras, lugar pouco frequentado por estes meus semoventes, que por aqui ficaram. Eu gritava o nome da Mimosa e ficava de ouvido esperto esperando resposta. Mugido nenhum.
E eu, que não sou de acreditar em pressentimento, comecei a palpitar algum dano, pois não faz muitos anos que andou aqui pelo distrito um caminhão que deixou rombos em muita cerca. Reses e cavalos andaram sumindo.
Contornamos o capão e enveredamos pelo carreiro que vai dar no alto da colina, um lugar de capim ralo, que não podia contar com a preferência destes seres pasteiros, mas de onde nossa visão abrangia os recônditos do espaço. A passo pausado, no aclive, o peso do corpo, chegamos ao alto, de onde. De pé no estribo, mirei com meus olhos toda extensão. E vi.
No início, o que divisei, foi apenas a mancha diferente no fosso. E uma vaga de suor me inundou quando me pareceu ter notado algum movimento. A mancha que eu via misturava preto e marrom. Da distância.
A descida, apesar da pressa, foi ainda mais lenta, o cavalo quase sentado no chão. O sol já estava no ponto de quente, mas não me incomodava o sol. Eu só olhava querendo duvidar.
Chegamos, finalmente, ao início da várzea, e o rebenque fez o cavalo galopar. Não era muito grande a distância a percorrer aquela malha de campo ­seu capim verde mas lagoas e valetas um tanto delas havia lagoas e valetas das quais era preciso que a gente se desviasse por isso mantive os calcanhares cutucando as ilhargas do animal cutucando rápido até ele demonstrar muito boa vontade para com minha urgência.
Antes que o atropelo do galope terminasse, solavanco brusco, eu já estava no chão correndo. Era mesmo a Mimosa, de pernas para cima,umas pernas, sem poder se aprumar. Pulei dentro do valo e corri até sua cabeça, onde uns olhos grandes, lacrimejantes, me pediam socorro. Há quanto tempo ali presa, entalada nos barrancos? Três corvos com suas roupas de luto circulavam no azul, à espera, espertos, contando as horas. 
E aquela posição?, uma coisa errada seu corpo dobrado como estava: paleta e anca perto demais, em proximidade. Suei novamente, o suor do medo. Foi quando voltei para o cavalo e galopamos endoidecidos, a Mimosa nos meus olhos, grudada. O vento vindo veloz penetrava nas minhas ideias, e aquela mais renitia era Quem me ajuda?, porque em casa, o que eu tinha, e tenho, é uma mulher e as duas crianças, sem traquejo de lidar com animal. Passei pelo terreiro no mesmo galope que vinha e me atirei pra casa do vizinho, que decerto àquela hora ainda não tinha saído de casa.
O Juvenal, que encontrei na porta da cozinha lá dele, entendeu minha história assim como minha pressa e não levou mais do que meio minuto para estar montado no seu baio a meu lado, correndo de volta.
Na beira do fosso, pulamos de cima dos cavalos, e o Juvenal gritava Ehê! Ehê! como se quisesse dizer tudo que passava por seu pensamento. Chegamos juntos ao lado da Mimosa, que pareceu espantada, por isso ela esperneou um pouco e me pareceu que por fim se acalmava. Meu vizinho levou a mão por baixo, apalpando em investigação. Depois me olhou triste. E sacudiu a cabeça.
O espinhaço, ele disse, jeito nenhum que se dê.
Pulei pra cima do barranco e me virei de costas, mas os ouvidos perceberam o mugido rouco, vindo do peito, baixo e grave, e o ar puxado pelas ventas fez ruído que até os cavalos se excitaram, com nervos. Eles sabem de tudo.
Os olhos vidrados da Mimosa, posso esquecer? Com os dois cavalos e as cordas conseguimos puxar minha vaquinha para cima do barranco. Ela quis pular, dizia o Juvenal, uma coisa que eu já tinha percebido. O pasto mais viçoso do outro lado. Mas não alcançou o barranco do lado de lá. Ainda tivemos de ajudar empurrando por trás.
Ele, meu vizinho, desabalou com seu baio, para as vasilhas e ferramentas, enquanto fiquei ali sozinho, tirando o couro sem segurar o choro. Ela ainda quente perdendo sua cobertura preta e marrom. Como um cobertor.
Quando ele voltou com mais gente e vasilhame, a Mimosa já estava fora de seu couro.
E eu que tinha botado toda minha esperança nesta vaquinha, boa parideira, bezerros que ia criando, nos tempos, me arrumando com a família, os rendimentos crescentes. E ela parecia entender meu pensamento, amiga do jeito que se pôs. Agora, o que é que eu tinha? Bastante carne, e outros apetrechos necessários a um vivente: os de dentro.
O Sol já estava a ponto de sumir quando veio a carroça e carregou com tudo para cima, aqui em casa. Tudo salgado, retalhado, repartido nas caixas, bacias e gamelas. Era muita carne, além dos miúdos e outras partes.
Quem inventou o churrasco, como se vê, foi minha mulher, esta daí, achando difícil guardar sozinha tantos quilos: os espaços.

Alguns devem estar estranhando as lágrimas, que eu não posso esconder. Eles comem com bom apetite, mas pra mim isso é impossível. Seria como me botar a mastigar alguém da família: não sou canibal. 

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