quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

DEGUSTAÇÃO 17 − NO FUNDO DO QUINTAL

Uma aventura no quinal da casa para onde acabaram de se mudar. É o que vivem os irmãos Eugênio e Fernanda nesse romance juvenil que apresentamos hoje na série Degustação.

A seguir, o primeiro capítulo de NO FUNDO DO QUINTAL, lançado em 2010, pela FTD.

Saiba mais, na página do livro, aqui no BLOG DO MENALTON.

Menalton Braff. No fundo do quintal

Um barulho estranho

Então eu paro, teso pensante, parado olhando. Olho pra trás e pra frente. Nossa trilha não progrediu grande coisa, mas agora o mato é mais ralo e menos grosso, acho que vamos abrir mais rápido. Nas árvores, estas troncudas aí, não mexo, elas ficam como estão. O que preciso derrubar são estas varetas de canela fina e arrancar o mato rasteiro pra deixar uma trilha de terra. A Fernanda me diz que estou brilhando, o rosto e o peito suados. O sol não dá folga e aqui o ar não se mexe de tão velho que é o lugar. A Fernanda está sequinha porque não faz força. Às vezes eu brigo com a Fernanda, principalmente quando não entende o que eu quero e me parece que não entende porque não quer. Minha irmã. Muito minha irmã. Não preciso de companheira melhor do que ela. Pois minha irmã vem me ajudando bastante. Os arbustos que derrubo e a relva que arranco com a enxada é ela quem recolhe e leva pra um monte lá perto do muro da direita, depois daqueles cacos de telha. Assim a trilha já vai ficando limpa.

Hoje foi nosso primeiro dia de aula e fiquei conhecendo um pouco os colegas, e quatro professores. A Beatriz freqüenta a mesma escola, mas a gente só se encontrou no recreio. Nós três ficamos
juntos, o tempo todo. A Fernanda fica rindo de mim porque eu não sei o que dizer, assim, de coisa séria. Mas acho que nem preciso. Depois dos deveres foi que viemos para o fundo do quintal. 
Minha irmã me pergunta: O que é que você viu? E eu não respondo logo, ainda calculando, escolhendo, vendo o que se pode fazer. Ou o que se deve fazer. Só então explico à minha irmã que uma trilha em linha reta, como eu tinha pensado no início, é um caminho que qualquer idiota pode descobrir. E nossa cabana não pode ficar exposta a qualquer olho de infiel, por isso estou pensando num plano diferente, com passagens secretas de uma trilha à sua continuação, mas em ziguezagues, como num labirinto. Tenho de explicar a ela o que é labirinto, eu, que não tenho muita paciência pra explicações. Prometo a ela que depois eu empresto o livro da lenda do Teseu e do Minotauro. Acho que a Fernanda vai gostar.

Bem, já escolhi uma passagem entre duas árvores, dois passos à esquerda sem derrubar o mato. Fica um túnel por onde vamos ter de passar de quatro. A Fernanda arranha o joelho e ameaça chorar. Que aventureira é você, eu pergunto, que chora por causa de um arranhãozinho sem-vergonha como este? Minha tática de apelar aos brios dela dá certo e ela continua avançando pelo túnel. Se tivesse cabelo mais comprido, minha irmã, acabava engarranchada no teto de nosso túnel: cipós, baraços com espinhos e galhos.

Ela desemboca do túnel, de quatro, mas com um ar tão triunfante, que o orgulho dela parece que fica escorrendo de sua boca. Esta sim, esta é a minha irmã.

Começo a derrubar o mato e com muita dificuldade a Fernanda vai jogando o que derrubo pra fora da trilha. Agora ela não tem mais como carregar tudo até o muro da direita. Passar de quatro pelo túnel com as mãos cheias de mato, é claro, isso é impossível. Mas ela se vira bem, vai enfiando tudo que corto, arranco, derrubo, nas laterais da trilha. Volto a sentir muito calor, apesar de estarmos protegidos pela sombra rala de uma árvore. E é como eu pensava: no mato mais ralo o progresso é mais rápido.

Acho que está na hora de arrombar o mato por baixo e criar outro túnel, mas agora para a direita. Assim. A Fernanda dá risada das minhas ideias e diz  que eu devia ter nascido índio, pois me dou muito bem no meio do mato.

Ouvimos um barulho de graveto quebrando e paramos com o silêncio abrindo muito nossos olhos. Foi ali, pertinho, é a minha impressão. A Fernanda me olha com o medo travando seu olhar. Mas o que será que foi isso? Finalmente tento encorajar minha irmã e garanto que foi um gato. Que outro bicho poderia andar por aqui, num terreno todo murado, nos fundos de uma casa? Meus pelos começam a desarrepiar, respiro muito melhor agora, por isso acho que podemos continuar arrombando o mato pra terminar o túnel. Já falta bem pouco.

O lugar aqui está ótimo, bem protegido pelo mato mais fechado e não muito longe do muro dos fundos.

− Agora, eu digo pra Fernanda, enquanto eu abro uma clareira aqui, você vai buscar a picareta, certo? Deixei lá perto daquela poltrona esburacada. Sabe onde é, não é?

E ela, minha irmã, soldado valente, se atira pelo túnel e desaparece. O barulho dela se arrastando vai atrás dela e some também.  

Fico sozinho construindo nossa cabana com a imaginação. Claro que antes de começar fiz mil perguntas a meu pai, pedi explicações e sugestões, sem que ele percebesse o plano que dentro da minha cabeça já começava a nascer. Quatro esteios enterrados, cercando quatro metros quadrados: duas vezes dois. Aprendi isso no ano passado. Um aqui, outro ali, e os outros dois lá adiante. O terreno aqui é plano e vai ser fácil criar um piso de terra bem socada.

Aí vem ela com a picareta na mão e um brilho vitorioso no rosto. A Fernanda. Por mim eu até que parava por aqui, braços, pernas, o corpo todo pagando pela falta de costume, mas no posto de comandante não posso demonstrar cansaço.

A parede da frente vai ficar aqui, então dou a primeira picaretada e abro um buraco na terra. Minha irmã dá um pulo com um grito saudando o início de nossa cabana. A alegria dela me dá força que se distribui pelo corpo todo. Continuo alargando e afundando o buraco onde vamos fixar o primeiro esteio. Enquanto isso, a Fernanda vai terminando de limpar o espaço escolhido.

− Sabe, Eugênio, eu vi um gato em cima do muro, lá no fundo. Quando me viu, ele se jogou desesperado e desapareceu.

A picareta bate numa pedra, lá no fundo. A Fernanda não ouve o barulho porque não para de falar sobre o gato, com toda certeza o barulho que a gente tinha ouvido, não é mesmo? Abro um pouco mais o buraco e encontro no fundo mais uma vez esta pedra.

− Fernanda, vem até aqui. Você não acha que o barulho da pedra é meio estranho? Minha irmã se concentra com a cabeça me atrapalhando e peço que ela se afaste um pouco. Ela se agacha para ficar mais perto do barulho. Bato com a ponta mais fina da picareta na pedra: o mesmo barulho.

− Parece que tem uma coisa oca aí em baixo, Eugênio. Um barulho redondo.
Tiro mais um pouco de terra com a mão, espiamos os dois, e, no fundo não distinguimos nada além de uma pedra que parece muito grande.
Nossa mãe grita o nome da Fernanda depois o meu, preocupada com o sumiço da gente. É hora de interromper os trabalhos. 

− Nem um pio, combinado?

− Combinado.

Selamos o acordo com o estouro das mãos abertas encontrando-se no ar.
                                                                         *
Na boleia do caminhão, o motorista e seus dois ajudantes não viam o estado de ansiedade em que vinham os dois irmãos, o Eugênio e a Fernanda, sentados no banco traseiro do carro. Corriam muito automáticos atrás do dono da mudança, sem interesse pela paisagem, lutando contra o sono da barriga cheia. Fazia uma meia hora que tinham saído da estrada de duas pistas, a estradinha esburacada já passara ao largo de uma cidade até que razoável, Coivara, quando viram a placa de Mairi Mirim, entraram por estrada mais estreita ainda e finalmente começaram a aparecer umas casas sem cara de ser a sede de alguma fazenda, mas que também ainda não eram inteiramente urbanizadas. A estrada escalou uma colina e Álvaro aliviou o acelerador.

− É ali, olhem.

Os dois filhos amontoaram seus quatro olhos na mesma janela, uma janela estreita que para eles parecia pequena demais para o tamanho da vontade que sentiam de ver a cidade pela primeira vez. 
As casas que olhavam a estrada desde as duas margens iam aumentando com feição mais faceira, muito presumidas, repletas desta alegria urbana de não serem sozinhas. Sumiram os galpões, as carroças, o gado no pasto, os fornos de tijolos. Depois de uma horta separada apenas por uma cerca de arame farpado da estrada, surgiu uma oficina mecânica de pé direito duplo, com pedaços de caminhões na frente e restos de automóveis no interior escuro. O primeiro armazém, com letreiro mal enjambrado anunciando seu nome.

De repente, sem nenhum aviso, a estrada transformou-se numa rua larga, com restos ainda da vida rural. Paralelepípedos mal assentados faziam o carro sacolejar. Atrás, como se não tivesse vida própria, vinha o caminhão com a mudança.
Eugênio e Fernanda não desgrudavam o nariz dos vidros do carro. Foi ela quem fez o primeiro comentário.

− Que cidade suja, pai.

− Calma, filhota, isto aqui é ainda um bairro afastado. O centro nem é tão ruim assim.  Você vai ver.

Dois quarteirões além, o pai avisou que estavam chegando ao centro da cidade. Entraram por uma avenida com postes de eucalipto separando as duas pistas, armazéns de altas e largas portas expondo fardos e sacos, implementos agrícolas, lojas de roupa, bares e mercearias. Mais dois quarteirões à frente, o carro abandonou a avenida e tomou uma rua estreita e comprida. As crianças, percebendo que se afastavam do centro, olharam-se decepcionadas.

− Aquilo lá era o centro, pai?

− Ah, não, paizinho, mas esta cidade é muito feia!
Fernanda, quando precisava, sabia usar muito bem sua voz de chorar.

− Puxa, pai, o senhor não podia ter escolhido uma cidade melhor?
Álvaro e Ester ergueram as quatro sobrancelhas ao mesmo tempo. Durante alguns segundos só se ouvia o ronco do motor do carro. Por fim, quem resolveu explicar foi a mãe, mais habilidosa no trato com os filhos. Começou dizendo que o marido havia cansado da vida de bancário sem vocação. Por isso tinha estudado todos aqueles últimos anos à noite, preparando-se para mudar de atividade.

− Seu pai passou no concurso, mas não teve tempo de se preparar direito, entendem?

A classificação dele não foi muito boa e na hora da escolha o que sobrou foi esta cidade. Não é muito bonita, mas se vocês pensarem que este é o início de uma carreira e que mais tarde ele pode ser removido, acho que não vai ser difícil suportar.

Os dois, no banco de trás, ouviam com ar muito sério o que a mãe dizia, agora, entretanto, sem o entusiasmo da manhã nascente, quando se sentiram começando uma aventura.

As casas começaram a escassear na proporção em que apareciam pomares no fundo dos quintais e árvores de sombra protegendo as varandas da frente. O calçamento foi acabando aos poucos até chegarem a uma rua de terra. Os irmãos espantavam-se com a paisagem onde o carro e o caminhão penetravam porque era um lugar quase ermo, de casas velhas, por isso mantinham-se mudos e de olhos abertos sem piscar.

Quando o carro e o caminhão pararam na frente de um portão velho, enferrujado, os dois, simultaneamente adivinharam o destino.

− Aqui, pai!

A voz de Eugênio saiu manchada de indignação, uma voz cheia de incredulidade.
Antes de descer do carro, Ester virou-se para trás e advertiu:

− É aqui mesmo. E sem bronca, senhor Eugênio. Foi a única casa nesta cidade que seu pai conseguiu. 
O que mais importa, ouçam bem, crianças, o que mais importa não é o espaço onde se vive. Ouviram bem? O que importa é o que a gente faz do espaço.

E depois de uma pausa em que os filhos não se mexiam, fingindo-se de estátuas, Ester abriu a porta do carro.

− E vamos descer logo, porque o povo do caminhão precisa descarregar a mudança.

Fernanda e Eugênio entraram pelo portão aberto, olhando desconfiados para todos os cantos daquele lugar mais parecido com cenário de um filme de terror. Na frente da casa, além das copas de um oiti e de um cinamomo, bem vivas, até meio alegres, o resto era só abandono.

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