
Trata-se do último romance juvenil de Menalton Braff, editado em 2014 pela Moderna. Para obter mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.
Castelo de
Areia – Menalton Braff
Ricardo
1 - Seu nome completo
Com um tempo destes, o melhor seria ficar na cama, curtindo
o frio de agosto. As sombras da cidade fugindo nervosas, o Sol com preguiça de
nascer. Como aqui é tudo estranho. A iluminação pública se dilui no céu, num
serviço inútil. Não clareia coisa nenhuma. Que será que vou ter de enfrentar
hoje? Não conheço ninguém, e isso me deixa um pouco ansioso. Minha mãe diz que
é medo e não ansiedade. Medo não é. Já encarei situação pior. E este sono, o
que
faço com ele?
O carro sacode e bato com a testa em seu vidro.
− Que foi isso, mãe?
− Teu pai, Ricardo, aceita cada biboca! Não vi o buraco no
meio da rua. Uma cratera. Ainda bem que é uma substituição por pouco tempo.
Dois quarteirões mais, e já vejo neste prédio largo e baixo
meu destino. Ainda mais com esta multidão de uniformes alegres pela calçada,
todos na mesma direção. O carro para bem na frente do portão e recebo um beijo
de despedida na testa. Que a sala, a primeira do corredor. Tudo ela
providenciou sozinha. Minha mãe.
Desço pisando sobre os pés, tanto rosto pela primeira vez,
os desconhecidos, que não sei para onde olhar. Entro de cabeça baixa com a
impressão de que todos pararam com o que faziam só para me examinar. Meu rosto
está um pouco quente, o barulho do meu sangue me chega aos ouvidos.
Ali a secretaria, na frente o corredor, bem como ela descreveu.
Encontrar a porta aberta é um alívio, ainda mais que pouca gente na sala. Mas
daqui a pouco, o sinal, então o bando todo.
Bem, aqui sentado, os braços deitados na tampa da carteira,
me sinto mais seguro. E aí vêm eles.
Perto do fundão, vejo quase tudo e quase
não sou visto. O fundão nunca foi minha preferência, mas em escola nova, no
primeiro dia, preciso de proteção. Com eles, entra o barulho de pés, carteiras,
conversas e risadas. Um pouco de medo, por isso mantenho a cabeça inclinada,
minha agenda aberta e finjo que estou lendo alguma coisa.
A claridade do dia começa a atravessar as cortinas, e uma
das colegas vai até as janelas e começa a abrir as vidraças. Outros colegas se
levantam e vão ajudar a menina. De fato, o cheiro de coisa parada, um cheiro de
mofo, torna o ar aqui dentro quase irrespirável. A minha rinite já começa a dar
sinal de vida. É alérgica.
Na minha esquerda, senta um garoto mais ou menos da minha
altura. Ele me encara como se quisesse perguntar alguma coisa, mas meus olhos
se cravam na agenda. Ele se vira pra trás, conversando com um colega e consigo
observar sua roupa. Por cima da camiseta do uniforme, − Ricardo Tavares de
Almeida.muito delicado, com duas barras horizontais azuis, da cor do céu. Ele
parece muito à vontade em seu lugar: desenvolto.
A zoeira, de repente, começa a diminuir e descubro um
homenzinho carregando um par de lentes muito grossas escanchadas em seu nariz.
Um homenzinho com ares de severidade, por isso o silêncio. Como não há estrado
na sala, tenho dificuldade para vê-lo direito. Mas sua voz, meu deus, sua voz
parece de um Zeus irritado. Ela rola por cima de nossas cabeças e bate contra
as paredes, mas não cai.
O professor declarou seu nome logo que entrou na sala, mas
não consigo me lembrar. Agora ele está fazendo um discurso de boas-vindas. E
fala essas coisas como reta final, empenho de todos, e troveja contra alunos
relapsos. Ajeito melhor o corpo, me torço, e consigo ver melhor nosso mestre.
Parece muito severo, de fato. Mesmo assim, no fim do discurso ele tenta um
sorriso. Tenho a impressão de que a classe toda relaxa, todos querendo recolher
um pouco daquele sorriso que, sentado, abre o diário e começa a chamada.
Por instantes estou salvo, meu nome perto do fim da lista.
Começo a me distrair, recordo minha mãe me animando, depois reclamando desta
cidade onde viemos morar, me lembro de meu pai pedindo paciência a nós dois, a
necessidade de preencher provisoriamente a vaga deixada por um colega
aposentado, viajo pelas paredes do meu novo quarto, então ouço naquela voz
tonitruante o nome de Ricardo e respondemos presente, o outro Ricardo e eu.
Metade da classe se vira para trás e ri. O professor mira os óculos na minha
direção e comenta:
− Então quer dizer que temos colega novo?
Neste exato instante descubro que meu sangue é quente: me
queima o rosto. Ele pede que eu me levante, o que faço me segurando com as duas
mãos na tampa da carteira.
− Ricardo Tavares de Almeida.
Quase não consigo atender a seu pedido: seu nome completo. A
classe está rindo, por isso tenho vontade de voltar para minha escola do
primeiro semestre. O professor pede que eu repita mais alto. Com muito esforço
consigo repetir e provocar o riso dos colegas.
Até o sinal do intervalo não consigo acompanhar o que
acontece na sala. Enfim, depois de mais um professor, com a repetição de risos
em minha volta, ouço a cigarra chiando e num impulso único todos se põem de pé
e começam a sair.
Me demoro um pouco, indeciso, até que meu colega de blusa
amarela com duas barras horizontais azuis se aproxima. Parece que ele tem
vontade de falar comigo, mas agora gostaria de estar sozinho para poder chorar,
meus olhos acho que inchados.
− De onde você é? – ele repete a pergunta, como se estivesse
escrito na minha testa que sou de fora, que não sou daqui.
− Eu vim do Rio.
Ele sacode a cabeça, com sorriso simpático a enfeitar seu
rosto. A turma logo percebeu que você não era daqui. Ergo as sobrancelhas, para
que ele saiba que não entendo por quê.
− Eles todos riram de mim – engasgo com as palavras e sinto
muita vontade de chorar, insultado pelos colegas.
− Mas não, Ricardo, foi seu sotaque. A classe gostou muito
de ouvir seu nome. O esse e o erre, entende?, são diferentes.
Por fim me levanto e vamos juntos para a cantina. Já não me
importam os olhares curiosos: agora tenho alguém a meu lado.
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