sábado, 9 de janeiro de 2016

DEGUSTAÇÃO 18 – COMO PEIXE NO AQUÁRIO

"Rita comete uma falta grave para conseguir igualar-se às amigas e sente-se então como peixe no aquário, prisioneira das consequências do seu ato.

Gostou desse enredo? Veja como começa a história no primeiro capítulo do livro COMO PEIXE NO AQUÁRIO, lançado em 2004, pela SM, que publicamos a seguir.

Para mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.


Menalton Braff. Como peixe no aquário

Capítulo 1

No fundo do baú

Aquele seu medo que já dura quase cinco meses mais parece uma gravidez redonda e latejante a lhe esticar a pele, um esforço pesado, uma espécie de rancor latente. Mesmo nos momentos em que a mente deveria estar distraída com as futilidades da vida, lá está seu medo, como um tumor agachado no canto escuro, espiando. Pode não tê-lo na frente dos olhos, pode até esquecê-lo por causa do costume, não pode, entretanto, desfazer-se da pele esticada. A fadiga já lhe rouba o gosto da vida: ainda bem que vai chegando a hora de resolver seu destino. O dinheiro está de
volta no caixa e só lhe resta esperar o desfecho. Qualquer resultado, mesmo um desastre, será melhor do que a expectativa tensa em que vem vivendo.  

Seu Filinto acaba de chegar da tarde fria de junho, e Rita, uma flanela na mão, mantém meio corpo enfiado no balcão de vidro, limpando prateleiras e mercadorias de um pó imaginário. Protegido por tubos e caixas, vidros e pilhas de formulários, seu rosto transpira muito vermelho, mas não é do esforço. Este é o momento pelo qual tem esperado nos últimos meses. Não pode falhar. É preciso esconder-se, pois não conseguirá aparentar uma calma há muito tempo perdida. 
 
O patrão entra na loja com sua cara vermelha radiante, sorridente, com certeza por causa da satisfação que sente naquelas escapadas clandestinas. Para um instante perto do caixa, e Rita encolhe-se por trás de seus olhos assustados, gemendo que sim, tudo bem, novidade nenhuma. Não consegue deixar de observá-lo enquanto seu Filinto, quase cantando, continua caminhando até os fundos da loja e abre a torneira do lavabo. Some de sua vista, mas o barulho que faz esfregando-se com a água fria denuncia o lugar exato onde se encontra. Chegou a hora da decisão e ela gostaria de estar muito longe, vendo tudo por um tubo de televisão. Não consegue mais comandar seu próprio corpo. 

Quando, meses atrás, a balconista confirmou, por detalhes casuais, o destino daquelas fugas de quarta-feira, chegou a pensar, num dos piores momentos de sua vida, em vender sua descoberta, obtendo o perdão de sua dívida em troca de conivência. Um dia saiu de casa com as palavras ensaiadas. Seu Filinto não teria escolha. Bastou, contudo, botar os pés dentro da loja e defrontar-se com a figura do patrão, para que a língua se visse atacada subitamente de uma atroz paralisia. Por vários dias, então, só pensou na covardia a lhe impedir a transação. Mais uma razão para perder o sono, a fome e sentir-se humilhada. Depois de pouco tempo, contudo, conseguiu consolar-se com a idéia de que não havia cometido uma chantagem. Uma alegria muito reles foi o que então sentiu, mas carente, como andava, de algum conforto moral, ficou satisfeita.  

Sem os lances difíceis e perigosos que tivera de viver nos meses anteriores, mesmo assim este último tinha sido um mês pesado, cansativo, em que chegara praticamente ao fim de sua resistência. Todos os sacrifícios que teve de suportar, os sustos de todos os dias, os olhos abertos do remorso e as noites de insônia, teriam valido a pena? A resposta está lavando-se na pia dos fundos. Meio corpo enfiado no balcão, Rita ouve imóvel as gargalhadas da água. 
                                                                         
                                                                      
                                                                          *
                                                                          1

Depois de dobrar e guardar sua roupa no armário, Rita de Cássia suspirou sentada na cama como se nunca mais fosse parar de fazer calor.

A tarde de domingo entrava em seu quarto com o sol oblíquo que passava pela vidraça da janela e com o barulho de futebol na televisão que chegava da sala. Nos primeiros tempos, quando veio morar com o irmão, ainda tentou acompanhar alguns jogos, mas não entendia o que se passava na tela nem tinha vontade de entender. Por isso muitas vezes passava boa parte da tarde de domingo sozinha no quarto. Então aproveitava, quase sempre, para botar suas coisas em ordem. Apesar da proximidade em que vivia com a família do irmão, conseguia conservar dentro de seu quarto aquela vidinha privada. 

Mantinha as poucas peças de roupa, que ela mesma lavava, em ordem no armário; e o material escolar, disposto numa prateleira que Eduardo, seu irmão, tinha chumbado na parede, por cima da mesinha que ela usava para fazer as tarefas de casa. Seu baú, do tamanho de uma caixa de sapatos, ficava mudo numa das gavetas do roupeiro. A chave, ela carregava tão presa ao cordão do escapulário que nem para dormir tirava do pescoço.

 Sem ocupação para o corpo, naquele resto de tarde, a menina estirou-se na cama, as pernas para fora, dependuradas, e entregou-se à saudade, que vinha entrando por seus olhos fixos no teto do quarto. Fazia pouco mais de uma semana que tinha chegado das férias e é quando ela mais dói, a saudade. A voz triste da mãe, seu beijo de despedida, a mão áspera e o forte cheiro de cigarro do pai, a brisa a lamber-lhe os cabelos na frente de casa, debaixo da sibipiruna, tudo isso continuava penetrando seus sentidos de maneira tão intensa como se ela estivesse ainda na casa dos pais, mas Rita de Cássia sabia que antes do Natal não poderia voltar ao sítio. Com o tempo, as sensações empalidecem, as formas fogem da memória, a mente se ocupa do presente. Rita de Cássia não sabia disso, naquela hora, e pensou que jamais voltaria a sentir, para o resto de sua vida, qualquer momento de alegria.

Era uma tristeza desamparada, a sua, que havia de engolir sozinha, arranhando a goela. Ninguém com quem repartir o peso? Então Rita de Cássia ergueu-se rápida e automática, de tanta urgência em seu rosto parado, e brusca abriu uma das gavetas do roupeiro, de onde arrancou seu baú.  Era nele que mantinha escondido o diário. E outros segredos. Ainda não sabia bem o que escrever, mas estava certa de que era sua única salvação. A que lhe restava. Enfiou a chave no orifício da fechadura e a fez girar para a esquerda. Com duas voltas, a tampa estava aberta. Então o que Rita sentiu foi que de dentro do baú vinha um brilho e uma aragem fresca como se ela, assim livre, pudesse finalmente respirar. Era a sensação aprazível de não estar mais confinada – sua fuga daquele mundinho limitado pelas paredes do quarto.

Seus dedos espertos foram ao fundo do baú e trouxeram um maço de cédulas, que ela contou mais uma vez: trezentos reais. Com este dinheiro compraria tudo que lhe faltava. Mais uma semana ou duas, seu pai mandaria o suficiente para que ela repusesse o valor que tomara emprestado do caixa da papelaria. Seu Filinto não daria pela falta de nada. Escondeu novamente o dinheiro por baixo de papéis e suvenires que trouxera de casa. Pegou, finalmente, um caderno preto de capa dura e fechou o baú.
Sentada à mesa de estudo, abriu o diário e procurou a primeira página em branco, onde escreveu com letra indecisa:
                                                                           ...
23 de fevereiro.

Sei que hoje é domingo porque estou em casa a esta hora e porque o Eduardo com a família toda estão na sala torcendo. Eu também, quando vim morar com ele, ficava lá sentada olhando, mas não vi graça nenhuma naquilo e desisti de entender o que eles fazem correndo atrás da bola. No início a Mariana ainda insistia comigo, eu acho que com pena de me ver sozinha no quarto, mas depois de um tempo não me convidaram mais. Ainda bem.

Eu sei que não posso ficar muito tempo sozinha porque começo a sentir saudade de casa e acabo quase sempre chorando. Minha mãe sempre diz que chorar não presta, que deixa a pele enrugada. Mas ela bem que chorou, na semana passada, quando o ônibus apareceu e meu pai fez sinal pra ele parar. Credo, mãe, foi que eu disse, parece que a senhora nunca mais vai me ver. Então ela me beijou. Não sei se é por eu ser a caçula e a mais nova dos irmãos, mas minha mãe é muito carinhosa comigo. Olhe só: e é só me lembrar disso que já borro todo meu diário com estas lágrimas bobas.

O ruim de ser domingo é que amanhã vai ser segunda. Ainda não conheço ninguém da minha classe e parece que fica todo mundo o tempo todo olhando pra mim. Eu me sinto como um peixe no aquário. Pode ser que seja assim mesmo, mas também pode ser que seja só impressão minha. As meninas usam umas roupas bonitas, não sei se eu ia ter coragem de usar umas roupas assim tão arrojadas, com o umbigo de fora, como elas usam. Mas eu acho bonito. Eu tenho a sensação de que elas perceberam que eu não sou daqui.

O pior nem é a escola, o pior de tudo é ficar na papelaria até as oito da noite, quando o seu Filinto fecha a loja. Chego em casa muito cansada. Se perco o Ligeirinho, tenho de ficar esperando muito tempo. No sítio, a esta hora, às vezes a gente já vai dormir. E o seu Filinto, não sei, não, mas me parece que não é muito sério. Numa terça-feira de dezembro, quando entrou uma mulher e começou a conversar com ele, seu Filinto me mandou ao banco pra trocar uma nota de cinqüenta. E o banco é bem longe. Eu voltei pra perguntar se tinha de ser no banco, e os dois estavam segurando a mão um do outro. Eles ficaram atrapalhados, tentando fingir, e seu Filinto me respondeu bem estúpido. Depois, no dia seguinte, ele saiu dizendo que tinha muitas coisas pra fazer na rua e voltou muito esquisito de tanta alegria. E eu, o que sinto, é só medo. A mulher dele é uma cobra, de tão braba, e pode acabar sobrando pra mim, que não tenho nada a ver com os casos deles. Ele continua saindo todas as tardes de quarta-feira. Serviço externo. Meu pai precisa me mandar logo o dinheiro que me prometeu. Tenho que devolver os trezentos reais  que tirei do caixa da loja antes que seu Filinto descubra qualquer coisa.

Agora preciso acender a luz porque quase não consigo enxergar mais nada.

Pronto, assim ficou bem melhor.

Eu nem tinha reparado que a noite vinha chegando. Esta é a hora mais triste do dia, porque eu me lembro da gente em volta da mesa, lá em casa: minha mãe numa cabeceira, meu pai na outra, eu e minhas sobrinhas de um lado e o Tadeu com a Anita do outro. Era uma hora muito alegre.

Pelo jeito o jogo terminou e o Edu ficou contente com o resultado. Preciso encerrar logo porque daqui a pouco a Mariana vem chamar pra janta.

Tchau, meu diário, volta pro fundo do baú e fica bem quietinho aí, ouviu?


                                                                         *

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