
Gostou desse enredo? Veja como começa a história no primeiro capítulo do livro COMO PEIXE NO AQUÁRIO, lançado em 2004, pela SM, que publicamos a seguir.
Para mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.
Menalton
Braff. Como peixe no aquário
Capítulo 1
No fundo do baú
Aquele seu medo que já dura quase cinco meses mais parece
uma gravidez redonda e latejante a lhe esticar a pele, um esforço pesado, uma
espécie de rancor latente. Mesmo nos momentos em que a mente deveria estar
distraída com as futilidades da vida, lá está seu medo, como um tumor agachado
no canto escuro, espiando. Pode não tê-lo na frente dos olhos, pode até
esquecê-lo por causa do costume, não pode, entretanto, desfazer-se da pele esticada.
A fadiga já lhe rouba o gosto da vida: ainda bem que vai chegando a hora de
resolver seu destino. O dinheiro está de
volta no caixa e só lhe resta esperar o desfecho. Qualquer resultado, mesmo um desastre, será melhor do que a expectativa tensa em que vem vivendo.
volta no caixa e só lhe resta esperar o desfecho. Qualquer resultado, mesmo um desastre, será melhor do que a expectativa tensa em que vem vivendo.
Seu Filinto acaba de chegar da tarde fria de junho, e Rita,
uma flanela na mão, mantém meio corpo enfiado no balcão de vidro, limpando
prateleiras e mercadorias de um pó imaginário. Protegido por tubos e caixas,
vidros e pilhas de formulários, seu rosto transpira muito vermelho, mas não é
do esforço. Este é o momento pelo qual tem esperado nos últimos meses. Não pode
falhar. É preciso esconder-se, pois não conseguirá aparentar uma calma há muito
tempo perdida.
O patrão entra na loja com sua cara vermelha radiante,
sorridente, com certeza por causa da satisfação que sente naquelas escapadas
clandestinas. Para um instante perto do caixa, e Rita encolhe-se por trás de
seus olhos assustados, gemendo que sim, tudo bem, novidade nenhuma. Não
consegue deixar de observá-lo enquanto seu Filinto, quase cantando, continua
caminhando até os fundos da loja e abre a torneira do lavabo. Some de sua
vista, mas o barulho que faz esfregando-se com a água fria denuncia o lugar
exato onde se encontra. Chegou a hora da decisão e ela gostaria de estar muito
longe, vendo tudo por um tubo de televisão. Não consegue mais comandar seu
próprio corpo.
Quando, meses atrás, a balconista confirmou, por detalhes
casuais, o destino daquelas fugas de quarta-feira, chegou a pensar, num dos
piores momentos de sua vida, em vender sua descoberta, obtendo o perdão de sua
dívida em troca de conivência. Um dia saiu de casa com as palavras ensaiadas.
Seu Filinto não teria escolha. Bastou, contudo, botar os pés dentro da loja e defrontar-se
com a figura do patrão, para que a língua se visse atacada subitamente de uma
atroz paralisia. Por vários dias, então, só pensou na covardia a lhe impedir a
transação. Mais uma razão para perder o sono, a fome e sentir-se humilhada.
Depois de pouco tempo, contudo, conseguiu consolar-se com a idéia de que não
havia cometido uma chantagem. Uma alegria muito reles foi o que então sentiu,
mas carente, como andava, de algum conforto moral, ficou satisfeita.
Sem os lances difíceis e perigosos que tivera de viver nos
meses anteriores, mesmo assim este último tinha sido um mês pesado, cansativo,
em que chegara praticamente ao fim de sua resistência. Todos os sacrifícios que
teve de suportar, os sustos de todos os dias, os olhos abertos do remorso e as
noites de insônia, teriam valido a pena? A resposta está lavando-se na pia dos fundos.
Meio corpo enfiado no balcão, Rita ouve imóvel as gargalhadas da água.
*
1
Depois de dobrar e guardar sua roupa no armário, Rita de
Cássia suspirou sentada na cama como se nunca mais fosse parar de fazer calor.
A tarde de domingo entrava em seu quarto com o sol oblíquo
que passava pela vidraça da janela e com o barulho de futebol na televisão que
chegava da sala. Nos primeiros tempos, quando veio morar com o irmão, ainda
tentou acompanhar alguns jogos, mas não entendia o que se passava na tela nem
tinha vontade de entender. Por isso muitas vezes passava boa parte da tarde de
domingo sozinha no quarto. Então aproveitava, quase sempre, para botar suas
coisas em ordem. Apesar da proximidade em que vivia com a família do irmão,
conseguia conservar dentro de seu quarto aquela vidinha privada.
Mantinha as poucas
peças de roupa, que ela mesma lavava, em ordem no armário; e o material
escolar, disposto numa prateleira que Eduardo, seu irmão, tinha chumbado na
parede, por cima da mesinha que ela usava para fazer as tarefas de casa. Seu
baú, do tamanho de uma caixa de sapatos, ficava mudo numa das gavetas do
roupeiro. A chave, ela carregava tão presa ao cordão do escapulário que nem
para dormir tirava do pescoço.
Sem ocupação para o
corpo, naquele resto de tarde, a menina estirou-se na cama, as pernas para
fora, dependuradas, e entregou-se à saudade, que vinha entrando por seus olhos fixos
no teto do quarto. Fazia pouco mais de uma semana que tinha chegado das férias
e é quando ela mais dói, a saudade. A voz triste da mãe, seu beijo de
despedida, a mão áspera e o forte cheiro de cigarro do pai, a brisa a
lamber-lhe os cabelos na frente de casa, debaixo da sibipiruna, tudo isso
continuava penetrando seus sentidos de maneira tão intensa como se ela
estivesse ainda na casa dos pais, mas Rita de Cássia sabia que antes do Natal
não poderia voltar ao sítio. Com o tempo, as sensações empalidecem, as formas
fogem da memória, a mente se ocupa do presente. Rita de Cássia não sabia disso,
naquela hora, e pensou que jamais voltaria a sentir, para o resto de sua vida,
qualquer momento de alegria.
Era uma tristeza desamparada, a sua, que havia de engolir
sozinha, arranhando a goela. Ninguém com quem repartir o peso? Então Rita de
Cássia ergueu-se rápida e automática, de tanta urgência em seu rosto parado, e
brusca abriu uma das gavetas do roupeiro, de onde arrancou seu baú. Era nele que mantinha escondido o diário. E
outros segredos. Ainda não sabia bem o que escrever, mas estava certa de que
era sua única salvação. A que lhe restava. Enfiou a chave no orifício da
fechadura e a fez girar para a esquerda. Com duas voltas, a tampa estava
aberta. Então o que Rita sentiu foi que de dentro do baú vinha um brilho e uma
aragem fresca como se ela, assim livre, pudesse finalmente respirar. Era a sensação
aprazível de não estar mais confinada – sua fuga daquele mundinho limitado pelas paredes
do quarto.
Seus dedos espertos foram ao fundo do baú e trouxeram um
maço de cédulas, que ela contou mais uma vez: trezentos reais. Com este
dinheiro compraria tudo que lhe faltava. Mais uma semana ou duas, seu pai
mandaria o suficiente para que ela repusesse o valor que tomara emprestado do
caixa da papelaria. Seu Filinto não daria pela falta de nada. Escondeu
novamente o dinheiro por baixo de papéis e suvenires que trouxera de casa. Pegou,
finalmente, um caderno preto de capa dura e fechou o baú.
Sentada à mesa de estudo, abriu o diário e procurou a
primeira página em branco, onde escreveu com letra indecisa:
...
23 de
fevereiro.
Sei que hoje é domingo porque estou em casa a esta hora e
porque o Eduardo com a família toda estão na sala torcendo. Eu também, quando
vim morar com ele, ficava lá sentada olhando, mas não vi graça nenhuma naquilo
e desisti de entender o que eles fazem correndo atrás da bola. No início a
Mariana ainda insistia comigo, eu acho que com pena de me ver sozinha no quarto,
mas depois de um tempo não me convidaram mais. Ainda bem.
Eu sei que não posso ficar muito tempo sozinha porque começo
a sentir saudade de casa e acabo quase sempre chorando. Minha mãe sempre diz
que chorar não presta, que deixa a pele enrugada. Mas ela bem que chorou, na
semana passada, quando o ônibus apareceu e meu pai fez sinal pra ele parar.
Credo, mãe, foi que eu disse, parece que a senhora nunca mais vai me ver. Então
ela me beijou. Não sei se é por eu ser a caçula e a mais nova dos irmãos, mas
minha mãe é muito carinhosa comigo. Olhe só: e é só me lembrar disso que já
borro todo meu diário com estas lágrimas bobas.
O ruim de ser domingo é que amanhã vai ser segunda. Ainda
não conheço ninguém da minha classe e parece que fica todo mundo o tempo todo
olhando pra mim. Eu me sinto como um peixe no aquário. Pode ser que seja assim
mesmo, mas também pode ser que seja só impressão minha. As meninas usam umas
roupas bonitas, não sei se eu ia ter coragem de usar umas roupas assim tão
arrojadas, com o umbigo de fora, como elas usam. Mas eu acho bonito. Eu tenho a
sensação de que elas perceberam que eu não sou daqui.
O pior nem é a escola, o pior de tudo é ficar na papelaria
até as oito da noite, quando o seu Filinto fecha a loja. Chego em casa muito
cansada. Se perco o Ligeirinho, tenho de ficar esperando muito tempo. No sítio,
a esta hora, às vezes a gente já vai dormir. E o seu Filinto, não sei, não, mas
me parece que não é muito sério. Numa terça-feira de dezembro, quando entrou
uma mulher e começou a conversar com ele, seu Filinto me mandou ao banco pra
trocar uma nota de cinqüenta. E o banco é bem longe. Eu voltei pra perguntar se
tinha de ser no banco, e os dois estavam segurando a mão um do outro. Eles
ficaram atrapalhados, tentando fingir, e seu Filinto me respondeu bem estúpido.
Depois, no dia seguinte, ele saiu dizendo que tinha muitas coisas pra fazer na
rua e voltou muito esquisito de tanta alegria. E eu, o que sinto, é só medo. A
mulher dele é uma cobra, de tão braba, e pode acabar sobrando pra mim, que não tenho
nada a ver com os casos deles. Ele continua saindo todas as tardes de quarta-feira.
Serviço externo. Meu pai precisa me mandar logo o dinheiro que me prometeu.
Tenho que devolver os trezentos reais
que tirei do caixa da loja antes que seu Filinto descubra qualquer coisa.
Agora preciso acender a luz porque quase não consigo
enxergar mais nada.
Pronto, assim ficou bem melhor.
Eu nem tinha reparado que a noite vinha chegando. Esta é a
hora mais triste do dia, porque eu me lembro da gente em volta da mesa, lá em
casa: minha mãe numa cabeceira, meu pai na outra, eu e minhas sobrinhas de um
lado e o Tadeu com a Anita do outro. Era uma hora muito alegre.
Pelo jeito o jogo terminou e o Edu ficou contente com o
resultado. Preciso encerrar logo porque daqui a pouco a Mariana vem chamar pra
janta.
Tchau, meu diário, volta pro fundo do baú e fica bem
quietinho aí, ouviu?
*
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