O primeiro capítulo de COPO VAZIO, está publicado a seguir. O romance juvenil foi publicado em 2010, pela FTD.
Para saber mais, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.
Copo vazio – Menalton Braff
Capítulo 1
Ramo perigoso
Deste jeito não consigo dormir. Preciso jogar uma água no
rosto e nos braços, e isso com muito silêncio, porque a coroa, quando sã, tem
sono leve. Se ela me pergunta o que faço aqui no banheiro, me lavando, a uma
hora destas, o que é que eu posso responder? Acho que já passa da meia-noite.
Me embarrei todo procurando um mocó ajeitado, mas acabei achando.
Não, a descarga é muito barulhenta: vai ficar assim.
Qualquer mancha de barro na toalha, amanhã a coroa vai querer saber o que
aconteceu. Até agora tudo nos conformes. Cara, estou orgulhoso de você: tarefa
cumprida. A dona Alzira diz que este meu sorriso é cínico. Cínico coisa
nenhuma. Meu sorriso é igual ao dela. Agora é tomar um copo de leite quente
antes de dormir de novo. Caramba, quem, jamais neste mundo, vai imaginar uma
toca escondida por baixo do muro? Genial, a minha ideia.
Com a porta da cozinha fechada, a coroa não vai acordar.
Tinha de ser leite quente, mas não tenho saco pra esperar que esquente. E com o
nocaute deste sono cretino que me derruba as pestanas, posso até tomar banho em
leite gelado que não desperto.
O Eduardo é louco. Pirado total, o Eduardo. Mas é meu amigo,
é do peito, não podia negar um favor a ele. Quando ouvi meu nome num cochicho
encostado a minha janela, senti um amargo na boca que me subiu do estômago. Ele
nunca escondeu de mim que trabalha num ramo bem perigoso. E eu reconheci a voz
dele. Abri a veneziana e não deu outra: era ele me chamando. Eu estava bem no
meio de um sonho, só não me lembro se o sonho era bom ou não. A luz do quarto
bateu de cima pra baixo em cheio na cara do Eduardo, que estava com uns olhos
muito crescidos, em tamanho talvez de medo, e me chamou ainda:
─ Júlio, pula aqui. Preciso de um favor.
E eu sou de não pular? Pulei.
─ Qual é o enrosco, meu irmão?
Ele me contou uma história enrolada e acabei entendendo só
que o pacote, este aqui, ó, não podia ficar na casa dele. Que um colega seu
tinha sido preso havia umas duas horas e que só agora ele tinha ficado sabendo.
Recém tinha acabado de chover e o Eduardo ainda estava
molhado, com uns fiapos de cabelo descendo pela testa. O ventinho que encanava
entre a parede e o muro era de arrepiar a pele, e isso não era muito ruim. Mas
ele, o Eduardo, estava com os lábios roxos.
─ E onde é que eu entro na história, bródi?
─ Você precisa me guardar este pacote por uns dias. Mas
muito bem guardado, Júlio. Isto aqui não é torta de chocolate nem carrinho de plástico,
entendeu? Ninguém, mas ninguém mesmo, pode saber que você tem isto aqui
escondido.
Ele percebeu a curiosidade do meu olhar e me ofereceu o
pacote.
─ Conto contigo?
─ Mas é claro, meu irmão.
─ Então toma, que eu preciso me mandar.
E se desmanchou misturado com as outras sombras.
Fiquei um tempo ali parado, dentro da luz que descia pela
janela do quarto, achando que ele poderia voltar para dizer mais alguma coisa.
Apalpei o pacote, que por cima tinha um objeto duro, metálico, e por baixo era
macio. Então me lembrei do que o Eduardo me havia dito a respeito de perigos
envolvendo o pacote e comecei a tremer. Qualquer pessoa que passasse pela rua
podia me ver com um pacote na mão. Minha primeira impressão foi a de que uma
pessoa, lá da calçada, prestando atenção no que acontecia na iluminação ao lado
da casa, saberia, com toda certeza, que eu me preparava para esconder um pacote
clandestino, porque a cena só podia ter cheiro de crime.
Que faço com isso?, foi o
pensamento que me deixou em pânico. Dei dois passos para a esquerda, fugindo da
claridade e esperei um pouco, até que passasse a maior força daquele medo. Só
então consegui botar ordem na cabeça. Dentro de casa, não, impossível esconder
dentro de casa qualquer coisa da coroa. Por causa dos seus assuntos, ela
tornou-se especialista em vasculhar todos os recantos da casa, até os desvãos
mais escondidos. E isso porque comecei a esconder bebidas e dinheiro, tentando
evitar que ela encha a cara. Se a casa tivesse um porão, como a casa em que três
anos atrás morávamos, então estaria tudo resolvido. Mas não, a nossa não tem.
O tempo ia passando, a rua já estava praticamente morta, só
de longe em longe eu ouvia o barulho de um motor de carro que rodava em ruas
das proximidades. E ideia, que era bom, não surgia nenhuma.
Apesar do chão molhado, enfiei os tênis no barro e dei uma
volta pelos fundos da casa. As sombras, o silêncio, o céu ainda carregado de
nuvens, o vento cortando meu rosto, o pacote que eu precisava esconder, tudo
contribuía para que eu mergulhasse numa bolha imensa de medo. Fucei por trás da
casa, caminhei até o muro e, pouco antes de me entregar ao pavor pura e
simplesmente, me lembrei de um tijolo solto no muro, que eu ainda não tinha
consertado, e tive uma ideia. Só eu sabia da existência daquela falha no muro:
um tijolo solto bem ao rés do chão.
Não tive dúvida. Fui até o canto do quintal, onde sabia da
falha, afastei o tijolo e comecei a cavar com uma pazinha de jardim. Forcei por
baixo um tijolo bem fixo, até arrebentar o pedaço que me permitiu enfiar o
pacote. A mão desceu, avançou, depois subiu e encontrou o oco, meu mocó, onde o
pacote jamais vai ser encontrado.
Recoloquei o tijolo no lugar, desmanchei os vestígios de
minha ação e, antes de pular de volta pela janela, tirei os tênis, que amanhã
bem cedo preciso lavar. Não sei quanto demorou a operação, só sei que saí dela
torto de cansaço e com barro até nas narinas. E por hoje chega, que o sono está
me derrubando. Foi uma tremenda solução. O Eduardo, aquele filho da mãe, me
deve mais essa.
Não sei o que tem dentro daquele pacote e não tive coragem
de perguntar, mas tenho a impressão de que é alguma coisa relacionada com o
ramo de atividade do Eduardo, um ramo de muita periculosidade, como ele
confessa.
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