sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Anoitecendo (conto inédito)


Mais de duas horas aqui sentados neste barranco de rio sem qualquer sinal de vida, qualquer mensagem, as boias ali à toa na superfície da água, nos encaramos desistentes. As promessas não se cumpriam, apesar de nossa paciente insistência. O sol, estilhaçado e frio, cai sobre o remanso de onde esperávamos alguma notícia. É um momento meio triste, pois o dia definha irreversível e com alguma lentidão: morrente.

Sabe o quê, a gente, pra não perder a viagem, ainda pode nadar um pouco. E as roupas começam a voar para cima dos arbustos. Mas eu não sei nadar muito bem, alega meu amigo para justificar sua relutância
em se jogar na água. Mesmo assim, já está pelado, a pele branca arrepiando-se com a brisa que desce das copas escuras, então arroja seu corpo de pele branca na direção da água e levanta um turbilhão de pingos que aproveitam os restos do dia para brilhar no espaço antes de se misturar novamente ao sorvedouro. A água é quase sempre uma alegria do corpo: o prazer despudorado.

Soltei os braços puxando o rio para trás, com a velocidade de quem quer chegar: o fingimento dos músculos. A cabeça ora afundava ora emergia acima da correnteza, os pés em movimentos rápidos, um ritmo só. Atravessei o remanso e o sorvedouro, e de lá, do outro lado, aonde o mato vem molhar os pés, grito para meu amigo que não tente a mesma reta. O caminho mais longo pode ser o mais seguro. Volto na mesma velocidade pela parte mais funda do rio, atravesso a correnteza e subo a uma pedra escura em função de plataforma. Do alto, aonde cheguei em poucos segundos, solto um berro de vitória: guerreiro. Então me jogo novamente no rio.  

Os primeiros movimentos do meu amigo, ainda hesitantes, mantêm a margem a duas, três braças de distância. Dali, de perto do barranco, também solta gritos alegres e agudos enquanto bate com as mãos abertas na superfície do rio, orgulhando-se dos pingos que seus gestos criam, parecendo fogos de artifício. Seus cabelos, em pasta, lhe caem sobre a testa, escorrentes, e o brilho dos olhos, sóis de sombras, contrastam com o branco das duas fileiras de dentes fortes, canibais. A vida oferece prazeres que muitas vezes jazem escondidos à beira da simplicidade, disfarçados. Mas é preciso descobri-los para poder sugar a seiva que nos sustenta. Por isso a volúpia dos desafios: as vertigens.
A noite vem descendo pelas encostas dos morros mais próximos.

Nós dois nos encontramos em águas mais rasas, de pé com nossos corpos molhados, e brincamos ainda de respingar pedaços de rio um no outro, com gargalhadas de brilho idêntico ao da água com que nos divertimos.  E assim é que vai nascendo o entusiasmo e a coragem: nós dois nos sentimos vivos em cada gesto e em cada riso gorgolejado com que afastamos todas as preocupações.
Cansado de tanta brincadeira infantil, por fim, me jogo novamente de peito na água e com braçadas ágeis e fortes atravesso o sorvedouro, que tenta sugar tudo para seu estômago, fruindo até o fundo o poder de meus braços. Existe algo de exibicionismo em meus movimentos, causa da satisfação que me dá a demonstração deste meu poder.

A noite parece mais próxima e agora tenho a impressão de que ela sobe das pedras que apenas imagino cobrindo o leito do rio.

Já me apetece voltar à terra  e enxugar com vento meu corpo. E procuro a mancha clara de meu amigo, mas apenas vejo dois braços erguidos descrevendo a grande circunferência do sorvedouro, lutando por manter-se na superfície. Então percebo a noite que se deita sobre o rio e, com três braçadas que me arranco dos ombros, consigo segurar meu amigo pelos cabelos.

Disponho agora de somente um braço com que enfrentar o movimento das águas, mas não posso abrir a mão esquerda, onde está presa a mecha de cabelos. Vamos os dois sendo arrastados dentro do círculo do sorvedouro.

Ao sentir-se ajudado, meu amigo usa os dois braços para se salvar usando minha força. Tolhidos meus movimentos, não resistimos mais à fúria do rio. Consigo finalmente liberar o braço direito e faço a única coisa que se pode fazer nas circunstâncias: dou um murro na cabeça de meu amigo para desacordá-lo. Mas ele já está com os dentes cravados no meu braço esquerdo e me vejo forçado a um segundo murro.

Seus braços me soltam, flácidos, e, na boca fechada, ele carrega um pedaço de meu corpo. Não tenho tempo de pegá-lo novamente e mal vejo que meu amigo afunda, desaparecendo quase instantaneamente.  Já é noite. Noite sem lua. 
Consigo voltar ao barranco, mas alguma coisa de mim sumiu no abismo.


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