sexta-feira, 14 de abril de 2017

CONTOS CORRENTES

UM CORPO NO RIO
               (Chico Lopes)

Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior. Como eu nunca tirava a roupa perto dos outros e me escondia para urinar, ficara atrás de uns arbustos. Mas a voz odiosa não me esqueceu: “Ei, vem cá, porra! Mostra o pipi pra gente!”

Estava paralisado, vieram os três primeiros forçar-me a abaixar as calças; depois, ele saiu da água, gigantesco, rindo, e pediu para que se afastassem: “Só eu resolvo isso”.

Não tinha como reagir: forte demais, ele me despiu para todos. “Precisava esse pudor de mocinha? Até que ele é bem servido, não é, pessoal?”. Impossível definir o tamanho do ridículo, da raiva. Que poderia fazer? Ele replicaria que era companheirismo, “brincadeira, porra”, que não tinha a menor intenção de me humilhar, com a displicência cruel a que seu físico superior o autorizava. Vesti-me, trêmulo, querendo chorar e apertando os dedos, sumindo rápido, antes que ele me obrigasse a nadar,
para consumar a vergonha e o horror: não sabia, não queria aprender, tinha pavor ao ribeirão. Não teria ido, se não me puxassem, praticamente. Bem minha mãe me advertira, ela também temerosa aos rios, sempre uma história de afogamento para contar.

 Localizar o ponto inicial, o fundamento das sombras. Preciso de tranquilidade, depois virá a clareza. Preciso entender. Tem de haver um jeito de eu saber por que Nuno era meu nojo, meu não, assombração fechada.

Havia o sorriso. Era farto, de uma satisfação inteira, todos os dentes, solar. Tinha o maior orgulho por destampar cervejas com a boca, mostrá-los imaculados (não tivera nunca uma cárie), e aquela era uma das razões de seu sucesso com as mulheres. O branco, a regularidade, o brilho daquelas armas me obcecavam, era incapaz de olhar para outro ponto do rosto, se bem todo o resto se harmonizasse: belos olhos, belos cabelos. Mais alto que eu também. “Me achando bonito, compadre?”, perguntava, dispensando resposta. Batia com o indicador, de leve, na arcada superior. Eu não podia sorrir aberto, cedo perdera meus melhores dentes, entupindo-me de doces e fugindo ao dentista, desde os quinze anos tapava a boca para velar a ponte móvel de garras, mas, afinal, nem era de muito rir. Por quê? Andar ao lado ou atrás de Nuno, observando a sua desenvoltura, tentando ajustar-me à sua sombra, era o bastante para concluir: o mundo dá passagem livre e reverente para alguns – já eu, eu estava entre os trôpegos, os desajeitados, minúsculos, de ímpetos confusos, gestos e passos de quem não está exatamente onde está, de alguém mal acolhido pelas coisas.

Nada do que ele fazia parecia encerrar dúvida ou remorso. A mulher era casada? – pois, era até melhor que fosse assim, entendem? Solteiras costumam ser mais pegajosas, umas sentimentais cretinas; os maridos, não conhecera um que chegasse a saber ou, sabendo, se indignasse de forma ameaçadora: casamento só serve para desvirilizar, o sujeito fica mole, submisso - daí toca a elas, que são quem manda em casa, procurar homem verdadeiro fora dela.

Não havia como contestá-lo – quem ali tinha tantas experiências, quem aquele corpo, o sorriso? Era segui-lo, atender a seus sinais, adivinhar-lhe os desejos, admirar a engenhosidade com que seduzia qualquer uma que lhe fosse apontada.

No entanto, intimidava-se com os livros de minha estante, e eu aí entendia: tinha um respeito cego por esse mundo que nunca chegara a entender, mal fizera dois anos de ginasial; com vergonha da letra, pedia-me para escrever os “correios elegantes” nas quermesses, as cartas, e até me achara capaz de pintar letras para uma placa da pensão de uma prima.

Pedreiro hoje, mecânico amanhã, nunca uma profissão duradoura, nada, e uma irmã mais velha doente. “Não é para enlouquecer, compadre? Por quê?” Alguma coisa que lhe era naturalmente devida o traía, faltava-lhe como uma privação determinada por forças antipáticas ao seu vigor: não era magnífico na cama, não tinha o direito de desejar que tudo lhe viesse magicamente de encontro? Mas havia esse jugo contra o qual a vida superior de seu corpo se batia sem comover, sem seduzir. “Eu vou dar certo, vou subir na vida, não vou, pessoal?”. “Questão de tempo”, dizia alguém, olhando para os outros, esperando cumplicidade na ironia – afinal, não era ótimo, para todos, que o grande Nuno também sofresse? Ofereciam-lhe mais bebida. Como no resto, tinha que beber muito acima de qualquer concorrente, não haveria quem o desafiasse.

Fim de noite, a quem cabia levá-lo para casa? Mantinha-se ereto o quanto podia enquanto eu o olhava, não ia deixar que minha solidariedade o apequenasse, mas confessava medos – da irmã a esperá-lo, do escuro, da solidão, da falta de dinheiro; quanto menos eu falasse – queria apenas ouvidos – melhor, e “veja bem, compadre, não estou pedindo ajuda nem nada.” Ao portão, despedia-se com um abraço, às vezes com um beijo estalado, gozador, em minha testa. “O que é isso?”. “Pagamento. Você é o meu maior amigo, sempre por perto.” Eu me comovia. A seguir, vê-lo ainda um monumento lutando com os efeitos da bebida e não vencido pela fraqueza e pelo ridículo reduzia a minha compaixão – por que nunca desabava?

Na noite seguinte, lá estava, vivo, sorrindo. Ah, ver aqueles dentes em mil caquinhos! Em casa, na gaveta da cômoda, embrulhado em flanela cinza, o revólver com que meu pai se matara. Minha mãe não queria saber de olhá-lo, eu sustentava que precisávamos de uma arma, que, como homem, cabia-me defendê-la de algum modo. “Isso não é cristão”, ela gemia. A morte de meu pai era algo que precisava esquecer, um equívoco medonho, seu doce Anacleto jamais faria aquilo. Ao abrir distraída a gaveta, o volume na flanela cinza dava-lhe um susto de quem topasse com cobra; precisava de muita água com açúcar para recuperar-se. Aos poucos, qualquer alusão à existência da arma em casa fora suprimida. Eu ficava só no quarto, fechava a porta e tinha o revólver todo para mim. O alvo era um sorriso – apagando-o, eu teria paz. O tiro com que meu pai saíra deste mundo fora disparado boca adentro. Temia um pouco tocar naquilo, de repente. Ia ser contagiado pela intenção de que parecia inchado, palpitante.

Olhava pela janela, a noite era clara, com uma lua enorme, de um alaranjado de incêndio, e não havia remédio. Não dormiria, eu sabia, e inútil rumar para a cidade, para o bar, rever os outros, ouvir perguntas; seria o aborrecimento de sempre: “Você deve saber onde ele está, eram carne e unha...” “É mesmo. Nuno dizia que, com um amigo feito você, não precisava de mais nada.” Preferia ficar relendo cartas, algumas que eu subtraíra de uma preciosa caixa de sapatos de minha mãe, coisas que seu Anacleto lhe escrevera antes do casamento, de uma pieguice monstruosa. Preferia segurar o revólver. Rever fotografias.

Ali estava a turma – o que uma vez fora a turma – ao lado do velho GMC do pai de um membro rico, Nuno ao volante, palitinho na boca. Naquele dia, tínhamos saído para o mato e ele, à frente como sempre, abatera muitas codornas com uma espingarda em que uma cabeça de jacaré fora esculpida na coronha. Balançava as avezinhas numa fieira, espirrando sangue em todos. Depois, uma fogueira fora improvisada. E comeram todos, menos eu, que só observava.

- Come! – ele me ordenou.

- Não quero nada. – respondi. Ia argumentar que trouxera de casa um lanche de pão com carne moída, especialidade de minha mãe, mas ele saltou, forçou-me o queixo para baixo e balançou uma coxa magrinha sobre os meus lábios. – Vai comer sim senhor!

Comi. Depois, embrenhei-me no mato, afastando-me da fogueira, das vozes. Quando retornei para dormir, ele aproximou-se para pedir desculpas. “Não importa não”, sussurrei. Olhamo-nos bem durante um bom tempo e, para demonstrar boas intenções, espantou-me do braço uma formiga que subia. “Sem bronca, então?”. “Sem bronca, sem bronca”, assenti, ainda sussurrando, tentando sorrir, e virei a cabeça para morder as costas da mão sob o cobertor – Deus, que ele não visse minha cara! Ouvi-o afastando-se, pisando com a sua força voluptuosa sobre galhos secos.

Observava-o bebendo acima o tolerável, excedendo-se em conversas sobre coisas que seria sensato manter desconhecidas, desarrumado (ele, tão cuidadoso com as roupas que a irmã lavava e passava, devota, implacável), barba por fazer, comilão (uma barriga já se anunciava), estupidamente provocador. Acompanhava as transformações com voracidade, em silêncio, ia buscar-lhe uma cerveja a mais, passava giz em seu taco, conduzia-o à sua casa, despedindo-me no portão ou entrando, lá dentro a irmã que mal nos olhava, de furiosa, mas que acabava por vir ajudar-me a empurrá-lo para debaixo do chuveiro e depois atirá-lo na cama. Deixava-os lá, ela a cercá-lo, velá-lo, sentindo-lhe o peito, a testa, balançando a cabeça, irritada porque não era justo que houvesse um outro doente na casa e acusando-me com os olhos pretos, apertados, de refém e guardiã.

Não fora difícil, portanto, levá-lo por outro caminho naquela noite. O do rio.

- Que é que a gente vai fazer lá?

- Gosto do reflexo da lua na água.

- Poeta. Você é um poeta. Eu sempre soube disso. Vamos, me dá um abraço...

Um temor sem explicação me havia feito desistir do plano do revólver, eu urdia outros, tão ansiosos quanto imprecisos, e já nada sabia senão que havia algo a fazer, o ato à espera da oportunidade. Seguíamos, ele tropeçava, apoiava-se em meu ombro, queria falar, falar, explicar coisas dificílimas que lhe estavam na ponta da língua, porra, e então ameaçava escorregar, seu peso era excessivo, seu hálito entrava-me pela boca, roubava-me o ar, precisava parar para urinar, para mirar o jato espesso, brilhante, ruidoso, contra o muro, balançando com espalhafato e guardando com enorme orgulho.

- Lua, lua. Então, vamos ver a lua!

Chegou à ponte antes de mim, encostou-se à murada. Parecia muito inclinado, o corpo em repuxões, e entendi que estava vomitando. Alguma coisa em sua nuca, suas espáduas, nádegas, pernas, pareceu-me então insuportável, indigna de estar sob meus olhos, e eu o empurrei. O baque nas águas tranqüilas. Vi-o agitar-se, a cabeça voltar, depois submergir. Bêbado demais para nadar. Nada ouvi. A lua inteira ali, o silêncio total dos arredores, as luzes da cidade muito longe. Nada. Manter firme o revólver, mirar nos dentes, tudo isso agora me parecia de uma ineficácia infantil. Tão simples empurrar um bêbado para afogar-se. Olhei outra vez. Lua e água.


 Pegar no sono, impossível. Ia repetidas vezes ao bar para buscar bebidas, eu, que nunca fora de tocar em álcool, capaz de manter-me sóbrio mesmo em meio a um grupo daqueles; por que bebiam tanto e por que Nuno até nessa estupidez tinha que ser o primeiro? Olhava-me com uma acusação que não sabia tornar clara, minha sobriedade era uma transgressão e talvez fosse

mais, talvez indicasse uma superioridade a que eu não tinha direito sendo tão bom, prestativo e cúmplice em todo o resto.

Estava ouvindo a sua voz ao chegar à esquina, e ficava paralisado, esperando a realidade retornar. Tinha ouvido muito nítido o xingamento “mosca morta”, seu favorito, não era possível, e eu parava para que aquilo desaparecesse. No bar, só dois do grupo, o entrechoque monótono das bolas no feltro verde, risos, palavrões, exclamações de desapontamento, de triunfo. Eu não queria explicar nada a ninguém, me adiantava a falar baixinho, sem que me perguntassem: “A gente estava indo para casa, daí se separou, ele foi para os lados do rio, nem se despediu, não sei nada; vocês sabem que eu não sei nada, porra! Por que é que eu tenho que saber?” Esta arenga era repetida com alguma variação, eu pedia um “rabo de galo”, dois, ninguém que me olhasse, me ouvisse? O remédio era levar a bebida para casa, sob o olhar curioso do dono do bar. Minha mãe, vendo o inaceitável crescer, arranjara de visitar uma parenta distante, sem marcar data de retorno.

Vieram as chuvas de fevereiro, nunca assim tão furiosas, e a casa, da qual eu só saía agora para ir ao bar, apresentava goteiras novas. As garrafas vazias rolavam, tilintando, pelos aposentos desarrumados. Fumava. Tinha de lutar contra isso – a sala encharcada, as telhas por trocar – mas não queria mover-me, e ao conseguir energia para empurrar um rodinho, sofria zonzuras, gritava “fora, fora” para uns sapos que apareciam, copiosos, embora a impressão fosse mais de ter querido gritar que de ter gritado de fato.

Ou dormia, num tempo nem dia nem noite, sonhando com florestas antediluvianas excessivamente úmidas, pântanos e lodaçais dos quais emergiam cabeças de anfíbios indefiníveis, abomináveis de um modo ao mesmo tempo preciso e obscuro. Milhares de olhinhos vermelhos nas trevas, aracnídeos gigantescos e lentos.

Na televisão, um documentário sobre o Amazonas. Desligava. Mas chovia há tantos dias, e com tal constância, que o rio bufava, era possível ouvi-lo dali, crescido, a desmesura. A subida das águas traria o corpo de volta? Num sonho, ele voltava, os olhos comidos pelos peixes, qualquer coisa entre azul e negro que emitia sons borbulhantes. Sem fala, tamanho o horror, eu entendia uma ordem, e era obedecê-la: recolher um por um os dentes afundados, dispersos, perdidos no leito. “Escuta, Nuno, eu nem mesmo toquei no revólver, eu não fiz isso, eu não sou culpado”, explicava, mas qual! – que coisa possível era a minha voz, um grunhir de bolhas, palavra nem remotamente palavra? Acordava gritando, e era preciso voltar para lá, para o bar do Euzébio.

- Era eu ou ele... – eu me justificava só para mim mesmo, batendo os dentes. Será que ninguém entendia que era impossível nós dois neste mesmo mundo, que eu não tinha como sobreviver enquanto ele sorrisse, continuasse alto, belo, esmagador, capaz de me olhar, me abraçar sem constrangimento, invasor, me decretar “mosca morta” com tal certeza que eu nunca poderia reagir?

- Um bom sujeito... - dizia Euzébio.

- Sim. – eu respondia debilmente.

- Reparei quando você entrou... Sabe que teu andar ficou meio gingado, igualzinho ao dele? O que é uma longa convivência!

- Acha mesmo? – perguntei baixinho, enfiando as mãos trêmulas cabelos adentro.

- Igualzinho. – ele repetiu, colocando mais bebida em meu copo e gozando os efeitos devastadores de sua observação sobre mim. Euzébio não tinha acreditado no que se tornara a especulação unânime – a de que Nuno havia sumido da cidade ameaçado de morte por alguns dos maridos compreensivelmente furiosos – mas não podia senão tatear e como sempre me achara alheio, metido, tinha o prazer de me sentir embaraçado, contrito, desnorteado por suposições erráticas; era portador inconsciente de uma verdade à qual me cabia resistir, mas, até quando? De repente, mudava de assunto: “Ei, não quer me vender aquele revólver que tem lá na tua casa, um que era do teu pai? O Ferreira foi que me falou...”

Para casa, tropeçando em figuras que se desfaziam quando eu tentava tocá-las, bolhas de malignidade, risos, passos, assovios, olhos que me julgavam e estavam absolutamente certos em suspeitar, mas não tinham o direito de me olharem daquele jeito, não tinham, eu apenas me defendera, porra, não compreendiam? – ele ou eu. A irmã passava, em luto fechado, e descobria o rosto meio oculto por um véu para exibir um olho, um único olho, desorbitado, acusador, eu o culpado de todo o seu corpo doente, eu que levara Nuno a beber, eu a quem ele, estúpido – não por falta de advertência sua – considerava seu melhor amigo. Ela cuspia, aumentando uma poça em que eu pisava e da qual não conseguia tirar o pé. A casa demorava a chegar, que ruas, que lama, quantos relâmpagos! – nunca pararia essa chuva? O rio estava tão perto que eu mal ousava dar um passo. Era preciso manter o juízo, porra: ficava a dois quilômetros da cidade, eu estava seguro, a casa num ponto elevado, nem mesmo com uma inundação... “Estou sozinho, sozinho. Se eu caísse na água, ele me salvaria, não me deixaria afogar... A coisa que eu fiz, meu Deus!” Chorando a perda de Nuno? Merda, não, era ele ou eu, ele ou eu. Um bom motivo para eu não sentir remorsos era lembrar-me do corpo dele ao sol, a perfeita e impune desenvoltura de um deus a saltar do barranco para nadar, muito tempo antes de tornar-se flácido, muito tempo antes dos porres ilimitados. Mesmo flácido, mesmo doente, aqueles dentes nunca deixavam de ser brancos, uma ofensa luminosa, um por um irretocáveis, armando o sorriso que punha abaixo sólidas virtudes.

O quarto. O mofo. Infiltrações. A casa não agüentaria muito tempo, ruiria. No espelho da farmacinha, o rosto que eu vi não era, decididamente, o meu – alguma coisa que submergia, que se fazia e refazia, mutável, líquida, alheia. Falta de energia. Apenas a brasa do cigarro no escuro, o coaxar de muitos sapos, estavam perto, não estariam debaixo da cama?

Penso que a chuva durou meses, não sei exatamente se chegou a parar. Ainda sob garoa o bar do Euzébio se mantinha aceso à noite, sob garoa eu ia buscar as garrafas. O corpo apodrecia em algum ponto que jamais seria localizado – que eu ficasse tranquilo, que eu bebesse, que eu me deleitasse com isso de ter desfeito o mais denso dos meus obstáculos, de ser dono de um segredo incessantemente empurrado para fundos mais e mais secretos pelas correntes.

Mas, como ter paz, como não beber, como levantar um dedo para iniciar o trabalho de limpar, organizar a casa? Minha mãe retornou numa tarde de vago sol e conteve um grito ao me encontrar na cama depois de percorrer o longo caminho obstruído por garrafas. Ela era bela e tinha conseguido esquecer o suicídio do marido, por que não suportaria o filho nesse estado? No entanto, desapareceu. Ou posso ter tido uma ilusão, ela nunca ter voltado, tropeçado em veredas de vidro, contido o grito.

Não importa. Estou aqui e penso vagamente no revólver inchado, aninhado na flanela. Penso num leito de rio desconhecido, por onde deslizam cardumes azuis, vejo tudo com uma nitidez de quem estivesse lá, talvez como uma pedra que jazesse no fundo, amarrada aos pés de um afogado. De um afogado sorridente.

Conto de Chico Lopes



Publicado em seu livro "Nó de sombras(contos/IMS-SP, 2000)

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