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sexta-feira, 24 de abril de 2020

CONTOS CORRENTES

A LÂMPADA

(Chico Lopes)


Se perguntada por Cido Curiango (que fazia questão de chamar pelo verdadeiro nome: Aparecido Claudino), Dona Raulina, mãe adotiva, mais dois filhos naturais, balançava a cabeça e dizia: “Sei lá, no meio do mundo, sumido...” – e a seguir contava que fora assim, de repente, nada de ir mais à escola, o ano abandonado, pé na rua, umas poucas reaparições, a presença escasseando mês após mês, e, por fim, invisível.

Não suspeitava que, de vez em quando, os olhos do moleque Paravam ali, à janela do barraco, e olhavam para dentro, ansiosos, avaliadores. Numa noite ele até chegara a pular a janela, a entrar e apanhar, silencioso, um pouco de comida na cozinha. Subira na mangueira, nada mais fechado e protetor, desde sempre o seu esconderijo, e ali ficara comendo, lambendo os dedos com o arroz e abobrinha que só ela fazia tão bem. Depois, era descer, voltar para a busca de vala, bueiro, sucata de carro, construção começada,
para dormir. Aplicava toda a sua perícia em não fazer ruído para sair. Não podia arriscar-se a ser ouvido e chamado de volta – precisava de outra vida, sempre a fuga, sempre as atrações do informe, as promessas de um escuro repleto de veios dourados.

Aos treze anos se fizera fundo adepto das ruas, da cidade vasta, ilimitada, que gostava de percorrer sozinho – sua associação aos grupos era sempre penosa e as parcerias necessárias duravam pouco, pois não se deixava seduzir por rotinas, esquivando-se sempre para mais para frente, para os horizontes de néon, mercúrio e grandes prédios escuros além dos quais reinava um horizonte ainda mais escuro. Morrer? Caíra de uma altura de três metros ao não encontrar uma escada no fim de uma laje molhada, na fuga de uns tiros, e não quebrara nada; roubara “pedras” para vender a preço seu e não fora eliminado, resistira a balas que lhe zuniam no pé da orelha, ziguezagueando, resistira a cortes de canivete, curados com merthiolate e band-aids pegos em passagens velozes por farmácias; fazia parceiros ocasionais para entrar nas casas, nalgum posto, nalgum restaurante e, na hora de dormir, sempre um ninho imprevisto, não revelado a ninguém. Ria ao parar diante de algum bar onde, em televisão, rolassem as aventuras do Pica-Pau: sim, com ele ninguém podia, do nada surgia a banana de dinamite, o charuto explosivo, o canhão, vôo incontrolável, bico ativo, travessura, punição, revide. Coçava os bagos, contente, e aplaudia.

Mas, achava que andava sendo olhado, dissecado à distância, que ultimamente dera para cruzar com mais viaturas em marcha lenta, que as esquinas lhe davam, de abrupto, tipos para os quais precisava baixar a cabeça. Por isso encompridara a sua fuga, se embrenhara em distâncias novas e inóspitas, bairros cujos nomes só Deus sabia, ruas após ruas de bares, supermercados, salões de forró, de bilhar, terrenos baldios com fundações surgindo. A suspeita de que o acertariam, de que um cano de revólver ou um porrete o acordaria numa dessas manhãs o fazia dormir pouco, dormir mal, pensando muito, engolindo cachaça roubada para se aturdir. Estivera numa fila de putos que, pelo desempenho, receberiam duzentos reais, no salão de um cabeleireiro que, possuído por três, com o quarto brigara, e este – grandão de pouco rir – não gostara e o estrangulara com o fio do secador, jurando caixão para quem contasse. No dia seguinte, nos jornais, ele vira a fotografia do assassinado, tipo conhecido, lera as manchetes, cabisbaixo. Assim, de esconderijo a esconderijo, fora parar num terreno com um barracão sobre camadas de brita para o qual só voltava à noite. E havia ali uma espécie de cabine da qual podia ver tudo ao redor. Vigiava, dormia. Parecia seguro, ao menos por uns tempos.

O que o atraía era uma janela bem em frente, num pequeno prédio baixo e pichado em todas as direções. Era uma escola, o que fora uma escola, a julgar pela ruína de um playground com um brinquedo giratório de patos de madeira quebrados. Do letreiro no muro só haviam sobrado algumas letras que nada formavam, sujas de excrementos. Todo começo de noite, uma mulher aparecia – baixinha, de óculos, pasta sob o braço, chegando da rua devagar, e abria um portão quebrado, com um rangido nada discreto, olhando para todos os lados; depois, entrava e acendia uma lâmpada. A sala não era muito espaçosa e, pela janela de pequenos retângulos de vidro só uns poucos intactos, ele a via com a nitidez permitida pelos sessenta watts. Ela erguia-se um pouco para acendê-la, girando com suavidade o pino do soquete, fazendo a luz, animando-se a arrumar carteiras. A seguir, risos e vozes, e um grupo de pessoas, jovens, adultos, mesmo três idosos, passava devagar pelo portão aberto. Via todos juntos, talvez oito pessoas, com a parcialidade que seus olhos não iam vencer, movendo-se lá dentro, na sala, e a mulher diante de um quadro-negro, explicando pontos iniciais do alfabeto. A voz, que no início lhe parecera muito aguda, acalmava-o, ele estendia as pernas, punha as mãos sobre a barriga, descansava, ouvia. A música daquelas sílabas, a lição repetida, coisas que já sabia, mas era delicioso de novo saber, lhe dava vontade de anotar. No dia seguinte, ao passar por uma papelaria com promoção de cadernos, não teve dificuldade em apanhar um deles e duas canetas e enfiar sob a camisa, com um assovio. Esperou pela noite. A lembrança do fio do secador dando voltas naquele pescoço e fazendo emergir uma língua daquela boca que gritava, da advertência do grandão, das notícias do jornal – que tiveram continuidade com a captura de dois dos três da fila – o deixavam lépido e alarmado, ninguém na rua ia surpreendê-lo, um vão de fuga em cada palmo do visível.

Noites, noites a fio anotando, gostando de sua letra, de sabê-la ainda bonita, arredondada, e assim, devagar, a expectativa da chegada da mulher, de sua entrada cautelosa, a lâmpada acesa, a entrada dos alunos, deixava-o orgulhoso, como se vivesse uma situação de luxo, de prazer, sem ser visto. Era tudo quanto precisava. Achava o bairro particularmente escuro, mas a janela iluminada como que o sorvia, não podia olhar senão para lá. Sentia o gesto da lâmpada segura por aquela mão delicada, o pino do soquete girado, como algo voluptuoso e feliz. Era o que lhe permitia desfrutar, à distância, de um mundo tranqüilo, embalado por uma voz que tecia com vogais e consoantes objetos, alusões, rostos, nenhum lhe parecendo hostil. E, numa noite em que dormira depois de ter ocupado muitas páginas do caderno, despertou com a tranqüilidade toda varada por zunidos, sirenes, gritos, sons de coisas se espatifando. Olhou para a janela e pensou, não sem gratidão a algo obscuro, que ao menos a mulher e seus alunos não estavam na escola, na hora morta, em meio ao tumulto.

Na manhã seguinte, foi simples entrar – o ermo era completo – e ver o que restara do que já eram restos de janelas e portas - cacos sobre um tanque, um banheiro em cujo chão era impensável pisar. Entrou na sala, viu a lâmpada quebrada, estilhaços pendurados no soquete. Lembrou-se de imediato de um supermercado, por onde passava diariamente, e do ponto não distante do caixa onde se testava lâmpadas compradas. Rumou para lá e, quando a mulher retornou à noite, prostrada, balançando a cabeça, ao entrar, acendeu-a, com ele sorrindo do outro lado, caderno em punho, olhos atentos.

Deteve-se nesse bairro, não pretende continuar na fuga para o horizonte de luzes, acha que encontrou algo vagamente semelhante a uma casa. Todos os dias, não há mais nada a esperar senão pela hora em que, depois que se acomodou no observatório, a mulher chega, abre o portão rangente, olha para os lados, ciente dos perigos e espreitas e, caminhando entre escombros, abre a sala e acende a lâmpada. Ele incumbiu-se de trocá-la a cada vez que for quebrada, para que a luz e a calma o inundem, para que aquela voz lhe cante o que terá que anotar. Nunca o verão talvez, ela e o grupo que a ouve, mas ele estará lá, a postos, sua nuca na mira de algo, mas seus olhos presos à janela, à claridade que, mesmo entre ruínas, se difunde.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

CONTOS CORRENTES

UM CORPO NO RIO*
               (Chico Lopes)

Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior. Como eu nunca tirava a roupa perto dos outros e me escondia para urinar, ficara atrás de uns arbustos. Mas a voz odiosa não me esqueceu: “Ei, vem cá, porra! Mostra o pipi pra gente!”

Estava paralisado, vieram os três primeiros forçar-me a abaixar as calças; depois, ele saiu da água, gigantesco, rindo, e pediu para que se afastassem: “Só eu resolvo isso”.

Não tinha como reagir: forte demais, ele me despiu para todos. “Precisava esse pudor de mocinha? Até que ele é bem servido, não é, pessoal?”. Impossível definir o tamanho do ridículo, da raiva. Que poderia fazer? Ele replicaria que era companheirismo, “brincadeira, porra”, que não tinha a menor intenção de me humilhar, com a displicência cruel a que seu físico superior o autorizava. Vesti-me, trêmulo, querendo chorar e apertando os dedos, sumindo rápido, antes que ele me obrigasse a nadar, para consumar a vergonha e o horror: não sabia, não queria aprender, tinha pavor ao ribeirão. Não teria ido, se não me puxassem, praticamente. Bem minha mãe me advertira, ela também temerosa aos rios, sempre uma história de afogamento para contar.

 Localizar o ponto inicial, o fundamento das sombras. Preciso de tranquilidade, depois virá a clareza. Preciso entender. Tem de haver um jeito de eu saber por que Nuno era meu nojo, meu não, assombração fechada.

Havia o sorriso. Era farto, de uma satisfação inteira, todos os dentes, solar. Tinha o maior orgulho por destampar cervejas com a boca, mostrá-los imaculados (não tivera nunca uma cárie), e aquela era uma das razões de seu sucesso com as mulheres. O branco, a regularidade, o brilho daquelas armas me obcecavam, era incapaz de olhar para outro ponto do rosto, se bem todo o resto se harmonizasse: belos olhos, belos cabelos. Mais alto que eu também. “Me achando bonito, compadre?”, perguntava,

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

CONTOS CORRENTES

UM CORPO NO RIO
              (Chico Lopes)

  Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior. Como eu nunca tirava a roupa perto dos outros e me escondia para urinar, ficara atrás de uns arbustos. Mas a voz odiosa não me esqueceu: “Ei, vem cá, porra! Mostra o pipi pra gente!”
    Estava paralisado, vieram os três primeiros forçar-me a abaixar as calças; depois, ele saiu da água, gigantesco, rindo, e pediu para que se afastassem: “Só eu resolvo isso”.
     Não tinha como reagir: forte demais, ele me despiu para todos. “Precisava esse pudor de mocinha? Até que ele é bem servido, não é, pessoal?”. Impossível definir o tamanho do ridículo, da raiva. Que poderia fazer? Ele replicaria que era companheirismo, “brincadeira, porra”, que não tinha a menor intenção de me humilhar, com a displicência cruel a que seu físico superior o autorizava. Vesti-me, trêmulo, querendo chorar e apertando os dedos, sumindo rápido, antes que ele me obrigasse a nadar, para consumar a vergonha e o horror: não sabia, não queria aprender, tinha pavor ao ribeirão.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

CONTOS CORRENTES

UM CORPO NO RIO
               (Chico Lopes)

Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior. Como eu nunca tirava a roupa perto dos outros e me escondia para urinar, ficara atrás de uns arbustos. Mas a voz odiosa não me esqueceu: “Ei, vem cá, porra! Mostra o pipi pra gente!”

Estava paralisado, vieram os três primeiros forçar-me a abaixar as calças; depois, ele saiu da água, gigantesco, rindo, e pediu para que se afastassem: “Só eu resolvo isso”.

Não tinha como reagir: forte demais, ele me despiu para todos. “Precisava esse pudor de mocinha? Até que ele é bem servido, não é, pessoal?”. Impossível definir o tamanho do ridículo, da raiva. Que poderia fazer? Ele replicaria que era companheirismo, “brincadeira, porra”, que não tinha a menor intenção de me humilhar, com a displicência cruel a que seu físico superior o autorizava. Vesti-me, trêmulo, querendo chorar e apertando os dedos, sumindo rápido, antes que ele me obrigasse a nadar,

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

CONTOS CORRENTES

O LEGADO
(Chico Lopes*)

Estevão passava às vezes diante de casa e minha irmã já o vira no ônibus, o que garantira uma observação: ele punha tudo num olhar em que parecia haver certa curiosidade ardente tolhida pela inibição e, sem nunca mudar de roupa, dissolvia-se no nada minucioso da multidão, um livro sob o braço. Não nos preocuparíamos com ele se minha mãe não ficasse intrigada com aquele olhar. Em suas saídas pelas vizinhanças de manhã para ajudar doentes, descobrira que ele vinha do conjunto de casas malfeitas que uma imobiliária alugava numa rua curta; eram quase miseráveis e, no entanto, tinham dependências e fundos sublocados e tudo levava a crer que Estevão morava numa delas. Nunca estava à vista, mas uma vez surpreendeu-o olhando para ela de uma dada passagem obstruída por material de construção. Depois, fez o gesto a um só tempo embaraçado e elegante de cumprimentá-la tirando e repondo um velho boné, como que se desculpando pelo fato de tê-la olhado primeiro. Ela comoveu-se. Era o tipo de escrúpulo que revelava uma boa educação inusitada naquele canto.

Ela incumbiu-me de saber mais. Fui ao bar sem nome de uma esquina meio em escombros – no fim do dia, levas aleatórias de homens eram fontes seguras, desde que o interesse não parecesse evidente demais. “Ah, é o Estevo dos livros...”, ouvi de um deles. “Sempre diz que, se a gente quiser ler, pode pegar uns livros lá com ele. Conheço quem pega, não devolve e tenta vender, isto sim. Mas é uma

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

CONTOS CORRENTES

Nascido em Novo Horizonte, São Paulo, Chico Lopes viveu nesta cidade de cerca de 30 mil habitantes até os 40 anos, quando se mudou para Poços de Caldas, Minas Gerais. Desde outubro de 2012, está residindo em Brotas, SP. Chico Lopes é casado com Maria Vitória da Costa Lopes e tem uma filha, Elisa, de 21 anos.

Em Novo Horizonte, havia ajudado a fundar e dirigir os jornais A Cidade, A Voz da Região e O Jornal e ganhado notoriedade como pintor e desenhista, além de escrever seus primeiros trabalhos de ficção, poesia, ensaio e crítica de cinema. Mas foi em Poços de Caldas, trabalhando como programador e apresentador do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles - Casa da Cultura, que publicou seu primeiro livro, Nó de sombras, de contos, lançado pela editora do IMS em 2000.

Entre suas obras, contam-se:

  • Nó de sombras (2000, contos, IMS)
  • Dobras da noite (2004, contos, IMS)
  • Brasil 2000: Retratos Poéticos - coletânea/poesia
  • Hóspedes do vento (2010, contos, Nankin Editorial)
  • O estranho no corredor (2011, novela, editora 34)
  • Caderno provinciano (2013, poesia, ed. Patuá)

A seguir, o conto com que comparece nos CONTOS CORRENTES:

Fonte: Wikipedia


 UM CORPO NO RIO



Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior. Como eu nunca tirava a roupa perto dos outros e me escondia para urinar, ficara atrás de uns arbustos. Mas a voz odiosa não me esqueceu: “Ei, vem cá, porra! Mostra o pipi pra gente!”