DIES IRAE
(Ronaldo Cagiano*)
Que coisa é esta que
...naquele
dia eu estava tomado por um sentimento que verdadeiramente era o acúmulo desses
anos todos pilotando os teares. Você não sabe o que é aguentar todo dia o
contramestre na sua cabeça ferroando, ferroando, feito uma britadeira na sua
cabeça,
a produção tá caindo, as encomendas tão chegando, e vocês aí, como se
nada tivesse acontecendo, o sangue subiu mais do que devia, o Nestor era
carne de pescoço, um ponta-de-aterro na nossa cola, unha-e-carne com os
patrões, ninguém suportava mais tanta opressão.
No final das contas, quando
você sai do turno, não passa de um monte de ossos coberto de pó, resto de
algodão pelo corpo, aquela fuligem toda do salão grudada em você, onde as
máquinas martelam como bate-estacas, e isso não muda nunca, é aquela maratona
de engrenagens, lançadeiras que vão e vêm, fios se entremeando, o tecido saindo
lá na frente feito uma língua de fogo e os rolos se amontoando e as carretas da
transportadora engolindo um por um e saindo direto para a estrada, e você ali,
um fantoche num moedor de carne e no outro dia a mesma coisa, você pode estar
dormindo o sono mais profundo, e aquela chaminé expelindo seus apitos e você
levantando da cama, o sono desfeito, a bicicleta encostada no muro, entra dia,
entra mês, chega ano e rompe ano, a
mesma rotina, a mesma repetição. Sei que eu estava no pior de mim, quase trinta
anos e ele me encavalando com reclamações, eu peguei a primeira ferramenta que
estava ao meu alcance e fiz a merda. Não deu tempo pra mais nada, o sangue já
foi logo se espalhando no chão, uma mistura de poeira e líquido vermelho,
aquela gosma de vingança e ódio lambuzando o chão da companhia, que ia fazendo
uma pasta nojenta, tão nojenta como aquele sujeito velhaco e puxa-saco dos
patrões. Não segurei, olhei para o céu e não tive dúvidas, preferi o risco,
pagar o preço, mas ali não dava mais pra continuar. Ali, não. Qualquer lugar do
mundo era melhor. A Manufatex era minha vida, sim, era, mas aquele merda ali me
enchendo o saco o dia todo, ah, isso não, eu não podia mais.
No fim, eu ouvi um dia da Juraci,
a gente sempre acaba no olho da rua, eles
não têm misericórdia de nada, de ninguém. Lembrei do Vandico, lutou tanto
no sindicato pela gente e levou um cartão vermelho. Tá marcado na cidade, não
encontra colocação em outra fábrica, pois a família Furtado controlava tudo.
Então vim parar aqui, doutor, é isso: eu não sou barata, o sangue ferveu, eu
perdi o juízo, não deu pra segurar, né, e aquele mingau vermelho no chão da
estamparia, eu aqui vendo o sol nascer quadrado, não sei o que é pior, num
sabe. O senhor pode colocar aí, que eu assino, vou cumprir o que devo pra
justiça, seja o que Deus e os jurados quiserem... Mas desaforo eu nunca mais
vou levar pra casa.
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(*) Autor, dentre outros, de
“Eles não moram mais aqui”(Contos, Ed. Patuá, SP – Prêmio Jabuti 2016), reside
em Lisboa
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