sexta-feira, 16 de junho de 2017

CONTOS CORRENTES


Dois homens mortais*
(Matheus Arcaro)                                                     

O corpo de Saulo Dantas acaba de ser sepultado, às 17 horas do dia 09 de dezembro de 2012. Celebração singela e poucas homenagens sob um discurso lívido. Se ele não tivesse se desfeito das evidências que descobrira em 1999, talvez alguém recuperasse sua pesquisa, e hoje seu nome poderia ser cravado numa das cobiçadas linhas do livro da História Universal. Mas ele preferiu entregar sua memória às presas do tempo. Não, “preferir” não é o verbo adequado. Na verdade, Saulo se viu sem escolha diante daquelas amostras e, por um sentimento de pertencimento à espécie, desfez-se dos resultados.
Seu ato nada teve a ver com ostentação da própria imagem: a foto de Saulo não sairia na capa de uma revista semanal com o título “O benfeitor do ano”. Tampouco teve relação com misticismo ou religião. Ao contrário, Saulo professava seu ateísmo desde criança: um dia, na altivez dos seus oito anos, não suportou mais a ideia de ter alguém vigiando seus passos e resolveu desinventar Deus. Também não fazia sentido para o menino a passagem do barro à vida. Se Adão fora esculpido com
argila, como se formara a costela de onde Eva fora originada? Os ossos sempre foram muito importantes para Saulo. Por isso, anos mais tarde, desejou ser ortopedista. Mas desistiu da ideia quando se imaginou com quarenta anos, gordo, encerrado numa sala vestida por uma luz hepática. Então, em 1959, graduou-se em paleontologia.
Da formatura ao dia da descoberta há um trecho de quarenta anos preenchido com o mestrado e o doutorado, aulas em diversas universidades, palestras, conferências internacionais e atuação em laboratórios renomados. Das atividades em laboratório, a mais significativa fora a análise do Santo Sudário em 1978. Juntamente com uma equipe de cientistas, Saulo efetuou uma série de exames que demonstraram que o desenho que aparecia no pano não poderia ter sido forjado: as manchas eram mesmo de sangue humano. De um homem que viveu na Palestina no primeiro século, cujos traços coincidiam com a descrição Evangélica de Jesus.
Apesar do êxito nos outros âmbitos, nada era mais prazeroso para Saulo do que as pesquisas de campo. E foi numa expedição em Jerusalém que ele descobriu as amostras que poderiam fazer de seu nome ponto de partida para os debates de fim de tarde: aclamado por uns; execrado pela imensa maioria. É bem verdade que o grupo liderado por Saulo tinha o intuito de encontrar vestígios do reinado de Davi. E encontrou. Porém, como as pesquisas laboratoriais subsequentes não revelaram nada de extraordinário, o material foi catalogado e arquivado.
Meses depois, numa tarde mais longa que o tempo, Saulo se lembrou das amostras e se propôs a examiná-las novamente. Por quê? Há coisas maiores que qualquer explicação. Algo simplesmente o arrastou para a sala adjacente e ele viu-se com os olhos grudados no microscópio. Após quase uma hora, várias lâminas já tinham passado pelo aparelho até que uma fez suas pálpebras suspenderem-se além do exigido pela clareza. Fragmentos de ossos humanos! Heroicamente conseguiu conter-se: atravessou a sala e guardou as lâminas com o rosto refletindo indiferença. Mas o pensamento puxava a noite que teimava em não se entregar; a expectativa pelo período em que poderia examinar os ossos com mais cautela fazia das suas pernas seres autônomos. Acompanhado pela solidão, Saulo começou suas análises. Passou doze horas fazendo anotações e comparando os fragmentos com amostras antigas. O sol se despia pela janela quando, com os dedos trêmulos, ele retirou os óculos ao mesmo tempo em que afastou o rosto do microscópio. Do topo da testa desceu uma cortina de suor. A marca da incredulidade contornou as pupilas envelhecidas. Não pode ser! Não é possível!
– Bom-dia, Saulo. O que não é possível?
Não viu o colega entrando. Também não escutou sua pergunta. Escondeu as lâminas no bolso do jaleco e saiu com os pulmões pedindo mais oxigênio. Ficou três dias sem aparecer no laboratório. Só saía da cama para reabastecer o copo com uísque. Das muitas perguntas que se fazia, uma latejava nas fontes: como os ossos estavam a mais de dez quilômetros do sepulcro dito santo? Saulo pensou na hipótese de alguém que tentara pintar o ocorrido com cores sagradas, escondendo sob a terra aquele corpo o mais longe que pôde carregar. Pois era preciso que a profecia da ressurreição se consumasse!
Nos intervalos do efeito do álcool, se recordava dos tempos da faculdade, principalmente da retórica impecável do velho professor Alcântara. “A verdade científica é tão elástica quanto a verdade religiosa. Dependendo do que se precisa provar, mira-se a luz para a direita ou para a esquerda; para cima ou para baixo.” Sim, talvez os resultados estejam errados; talvez eu os tenha interpretado de maneira distorcida. Tinha que comparar outra vez aqueles fragmentos de ossos com as amostras do Santo Sudário colhidas em 1978.
Ainda com os olhos inchados e a boca dormente, Saulo voltou ao trabalho. Carregou o dia nos ombros, sem trocar muitas palavras com os companheiros. Assim que ficou só, pegou as lâminas como se fossem fatias do seu futuro. Refez os testes e, teimosamente, o resultado mostrou-se idêntico em todas as provas. Ficou absorto o resto da madrugada: olhos fechados, mãos soltas sobre o regaço, queixo colado no peito. Uma amálgama cinza tomava sua cabeça: os rendimentos da descoberta misturavam-se às consequências do seu possível anúncio. Em menos de duas horas, os pesquisadores entrariam pela porta. A respiração começou a encurtar.
Cientificamente, agarrou-se à possibilidade de que a mortalha e os ossos não pertencessem a Jesus. Contudo, mesmo se assim fosse, o alicerce do ocidente ainda corria riscos. Vigiado pelos ponteiros do relógio, Saulo andava de um lado a outro pela imensa sala. Passos largos, vista turva. De repente, parou no centro do laboratório. “Se Deus não existir, tudo será permitido”. A frase, cuja origem ele não se lembrava, bateu feito uma flecha no peito. Poucos minutos depois, Saulo ateou fogo nos fragmentos de ossos. Ossos que hoje, no dia de sua morte, fariam dele um homem imortal.

Conto integrante do livro ‘Violeta velha e outras flores’.


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