O
corpo de Saulo Dantas acaba de ser sepultado, às 17 horas do dia 09 de dezembro
de 2012. Celebração singela e poucas homenagens sob um discurso lívido. Se ele
não tivesse se desfeito das evidências que descobrira em 1999, talvez alguém
recuperasse sua pesquisa, e hoje seu nome poderia ser cravado numa das
cobiçadas linhas do livro da História Universal. Mas ele preferiu entregar sua
memória às presas do tempo. Não, “preferir” não é o verbo adequado. Na verdade,
Saulo se viu sem escolha diante daquelas amostras e, por um sentimento de
pertencimento à espécie, desfez-se dos resultados.
Seu
ato nada teve a ver com ostentação da própria imagem: a foto de Saulo não
sairia na capa de uma revista semanal com o título “O benfeitor do ano”.
Tampouco teve relação com misticismo ou religião. Ao contrário, Saulo
professava seu ateísmo desde criança: um dia, na altivez dos seus oito anos,
não suportou mais a ideia de ter alguém vigiando seus passos e resolveu
desinventar Deus. Também não fazia sentido para o menino a passagem do barro à
vida. Se Adão fora esculpido com
argila, como se formara a costela de onde Eva fora originada? Os ossos sempre foram muito importantes para Saulo. Por isso, anos mais tarde, desejou ser ortopedista. Mas desistiu da ideia quando se imaginou com quarenta anos, gordo, encerrado numa sala vestida por uma luz hepática. Então, em 1959, graduou-se em paleontologia.
argila, como se formara a costela de onde Eva fora originada? Os ossos sempre foram muito importantes para Saulo. Por isso, anos mais tarde, desejou ser ortopedista. Mas desistiu da ideia quando se imaginou com quarenta anos, gordo, encerrado numa sala vestida por uma luz hepática. Então, em 1959, graduou-se em paleontologia.
Da
formatura ao dia da descoberta há um trecho de quarenta anos preenchido com o
mestrado e o doutorado, aulas em diversas universidades, palestras,
conferências internacionais e atuação em laboratórios renomados. Das atividades
em laboratório, a mais significativa fora a análise do Santo Sudário em 1978.
Juntamente com uma equipe de cientistas, Saulo efetuou uma série de exames que
demonstraram que o desenho que aparecia no pano não poderia ter sido forjado:
as manchas eram mesmo de sangue humano. De um homem que viveu na Palestina no
primeiro século, cujos traços coincidiam com a descrição Evangélica de Jesus.
Apesar
do êxito nos outros âmbitos, nada era mais prazeroso para Saulo do que as
pesquisas de campo. E foi numa expedição em Jerusalém que ele descobriu as
amostras que poderiam fazer de seu nome ponto de partida para os debates de fim
de tarde: aclamado por uns; execrado pela imensa maioria. É bem verdade que o
grupo liderado por Saulo tinha o intuito de encontrar vestígios do reinado de
Davi. E encontrou. Porém, como as pesquisas
laboratoriais subsequentes não revelaram nada de extraordinário, o material foi
catalogado e arquivado.
Meses
depois, numa tarde mais longa que o tempo, Saulo se lembrou das amostras e se
propôs a examiná-las novamente. Por quê? Há coisas maiores que qualquer
explicação. Algo simplesmente o arrastou para a sala adjacente e ele viu-se com
os olhos grudados no microscópio. Após quase uma hora, várias lâminas já tinham
passado pelo aparelho até que uma fez suas pálpebras suspenderem-se além do
exigido pela clareza. Fragmentos de ossos humanos! Heroicamente conseguiu
conter-se: atravessou a sala e guardou as lâminas com o rosto refletindo
indiferença. Mas o pensamento puxava a noite que teimava em não se entregar; a
expectativa pelo período em que poderia examinar os ossos com mais cautela
fazia das suas pernas seres autônomos. Acompanhado pela solidão, Saulo começou
suas análises. Passou doze horas fazendo anotações e comparando os fragmentos
com amostras antigas. O sol se despia pela janela quando, com os dedos
trêmulos, ele retirou os óculos ao mesmo tempo em que afastou o rosto do microscópio.
Do topo da testa desceu uma cortina de suor. A marca da incredulidade contornou
as pupilas envelhecidas. Não pode ser! Não é possível!
–
Bom-dia, Saulo. O que não é possível?
Não
viu o colega entrando. Também não escutou sua pergunta. Escondeu as lâminas no
bolso do jaleco e saiu com os pulmões pedindo mais oxigênio. Ficou três dias
sem aparecer no laboratório. Só saía da cama para reabastecer o copo com
uísque. Das muitas perguntas que se fazia, uma latejava nas fontes: como os
ossos estavam a mais de dez quilômetros do sepulcro dito santo? Saulo pensou na
hipótese de alguém que tentara pintar o ocorrido com cores sagradas, escondendo
sob a terra aquele corpo o mais longe que pôde carregar. Pois era preciso que a
profecia da ressurreição se consumasse!
Nos
intervalos do efeito do álcool, se recordava dos tempos da faculdade,
principalmente da retórica impecável do velho professor Alcântara. “A verdade
científica é tão elástica quanto a verdade religiosa. Dependendo do que se
precisa provar, mira-se a luz para a direita ou para a esquerda; para cima ou
para baixo.” Sim, talvez os resultados estejam errados; talvez eu os tenha
interpretado de maneira distorcida. Tinha que comparar outra vez aqueles
fragmentos de ossos com as amostras do Santo Sudário colhidas em 1978.
Ainda
com os olhos inchados e a boca dormente, Saulo voltou ao trabalho. Carregou o
dia nos ombros, sem trocar muitas palavras com os companheiros. Assim que ficou
só, pegou as lâminas como se fossem fatias do seu futuro. Refez os testes e,
teimosamente, o resultado mostrou-se idêntico em todas as provas. Ficou absorto
o resto da madrugada: olhos fechados, mãos soltas sobre o regaço, queixo colado
no peito. Uma amálgama cinza tomava sua cabeça: os rendimentos da descoberta
misturavam-se às consequências do seu possível anúncio. Em menos de duas horas,
os pesquisadores entrariam pela porta. A respiração começou a encurtar.
Cientificamente,
agarrou-se à possibilidade de que a mortalha e os ossos não pertencessem a
Jesus. Contudo, mesmo se assim fosse, o alicerce do ocidente ainda corria
riscos. Vigiado pelos ponteiros do relógio, Saulo andava de um lado a outro
pela imensa sala. Passos largos, vista turva. De repente, parou no centro do
laboratório. “Se Deus não existir, tudo será permitido”. A frase, cuja origem ele não se lembrava, bateu feito uma flecha
no peito. Poucos minutos depois, Saulo ateou fogo nos fragmentos de ossos.
Ossos que hoje, no dia de sua morte, fariam dele um homem imortal.
Conto
integrante do livro ‘Violeta velha e outras flores’.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças