Excepcionalmente, a postagem de hoje não traz uma orelha, mas uma apresentação, pois o texto em questão não é uma obra literária e sim um relatório de Pós-doutorado*.
Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama
Desenterrar pedras preciosas que o tempo teima em enterrar,
a mim parece uma atividade emocionante. Pelo menos foi com emoção que terminei
a leitura de Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama, o relatório de Pós-doutorado que Franco Baptista Sandanello
apresentou à Unesp de Araraquara, com pesquisas no exterior, principalmente no
Centro de Pesquisas sobre os Países Lusófonos, da Sorbonne Nouvelle – Paris
III. E, apesar de seu espírito científico de pesquisador criterioso, que foi ao
fundo de seu assunto, percebe-se muitas vezes que o Franco trabalhou movido por
dois estados de espírito diferentes: a curiosidade do cientista, que busca a
comprovação e o significado de tudo que afirma; a emoção do poeta a quem as
sucessivas descobertas deslumbram.
Não está errado dizer que o corpus do Franco foi a obra
completa de Domício da Gama. Sim, porque além de seus dois livros, Contos a
meia tinta e Histórias curtas, o autor foi descobrir contos publicados apenas
em jornais da época e estudou cuidadosamente as dezenas de crônicas de Domício.
E isso tinha uma importância imensa para seu relatório: Domício da Gama foi um
dos introdutores, ao lado principalmente de seu amigo Raul Pompeia, da
literatura
impressionista no Brasil. Era nas crônicas remetidas de Paris que ele discutia as características do impressionismo literário.
impressionista no Brasil. Era nas crônicas remetidas de Paris que ele discutia as características do impressionismo literário.
Então ocorre uma
pergunta: se foi tão grande a importância do escritor para o desenvolvimento da
literatura brasileira (e pode-se afirmar sem susto que o Impressionismo foi o
pai do Modernismo), por que não aparece nem como referência remota nos livros
escolares, como também não é estudado nas faculdades de letras?
A resposta a uma questão como essa passa pelo entendimento
do cânone. Quem ou o que canoniza?
Segundo o Houaiss, canonizar é “reconhecer e declarar santo
(indivíduo falecido), inscrevendo no cânon dos santos, segundo as regras e
rituais prescritos pela igreja.” A linguagem da crítica literária foi buscar
provavelmente na linguagem eclesiástica a palavra com que afirma a consagração
de certos autores, que entram para uma espécie de catálogo com os nomes
daqueles que deverão ser lembrados pela posteridade.
No caso da literatura, a canonização tem inúmeros agentes. A
universidade, com seus estudiosos que remetem alguns nomes para o reino da
glória, ou para a escuridão do limbo; a mídia, com seus espaços (cada vez
menores) para críticos saídos ou não das cátedras universitárias; leitores
formadores de opinião; as academias, enfim, aquilo que se pode chamar de
“comunidade literária”. Os interesses que estão por trás de uma canonização,
eis o que nem sempre é muito claro. Só para exemplificar: Olavo Bilac tornou-se
um colaborador assíduo do poder político nacional. Resultado: o Parnasianismo
sufocou o Simbolismo e o retrato do “príncipe dos poetas brasileiros” foi afixado
na grande maioria das salas de aula, muitas vezes ao lado do mandante de então.
Por mais de um século ninguém saía da escola (primária, como
se dizia antigamente) sem que tivesse decorado algum verso do “príncipe”. Era
evidente o interesse político em sua canonização. Não que lhe faltassem méritos
literários, mas o colaboracionismo foi o móvel para que se lhe chamasse de
“príncipe dos poetas”.
Pois bem, Domício da Gama, em que pese a importância de seu
papel na história da literatura brasileira, foi esquecido, rolou para a
escuridão.
Sandanello inicia seu trabalho com uma revisão da obra (por
sinal diminuta no que tange à produção literária específica) de DG, destacando
os dois livros em que publicou a maior parte de seus contos, mas comentando
ainda aqueles que ficaram de fora. Além disso, comenta a produção cronística,
em que o autor pratica com certa abundância a metaliteratura, em que o
Impressionismo é sua matéria principal.
Em seguida, Franco Baptista recolhe e comenta uma extensa
fortuna crítica da época em que DG viveu, ou seja, fins do século XIX, início
do XX. Extensa, no sentido de que os textos consultados eram esparsos e
constavam tanto em jornais como revistas e, por fim, em textos acadêmicos que o
antecederam.
No capítulo que se segue, o leitor encontrará um trabalho
exemplar para que se entenda o que é o Impressionismo literário. Qual sua
origem, qual seu parentesco com o Impressionismo pictórico, quais suas
características principais, aquilo que o diferencia de outras estéticas.
Estabelecer o parentesco com o Realismo/Naturalismo é outro mérito do trabalho.
Não por último, mas no ver deste leitor, o capítulo mais
interessante é aquele em que FBS exerce com argúcia seu pendor para a crítica
literária, a análise dos contos de Contos a meia tinta e Histórias curtas. Suas
análises nos revelam o que há de impressionista em cada um dos contos, mas
também apontam aquilo que pode ser entendido como desvios de rota.
Este estudo avulta em importância se considerarmos que
Domício da Gama, com ele, ressurge do esquecimento e ganha espaço no panteão de
que é merecedor. É uma forma de canonização. O que não é pouco.
Há, por fim, referências a autores que também podem ser
classificados como impressionistas, como Raul Pompeia, no século XIX, e Adelino
Magalhães, nos albores do século XX. Autores e tendências, como o decadentismo,
de que todos se abeiraram, prepararam o terreno onde o Modernismo viesse
medrar.
Para os amantes da literatura, mas sobretudo para aqueles
cujo interesse vai até os estudos literários, a presente obra, além da
importância científica (pelas análises, pelas descobertas, pela reunião de
quase tudo que já se disse de DG, pelo esclarecimento de muitos aspectos de uma
estética tão pouco estudada entre nós), é uma delícia de leitura em virtude do
estilo fluente, da linguagem sem a maioria dos tropeços apresentados por especialistas.
Boa viagem!
Menalton Braff
*Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama
Relatório de Pós-doutorado apresentado à Unesp de Araraquara
*Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama
Relatório de Pós-doutorado apresentado à Unesp de Araraquara
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