sexta-feira, 9 de junho de 2017

CONTOS CORRENTES

Fita de Möbius 
(Edmar Monteiro Filho)


           
Desperto em meio a uma sensação perturbadora que, a princípio, não reconheço. Abro os olhos. Encontro-me deitada sobre um colchão fino, no interior de um aposento acortinado que cheira a poeira e suor velho. Meu corpo dolorido reage ao movimento para me pôr em pé e andar até a janela, onde a fresta de luz luta por um canto de assoalho. Abro as cortinas, ergo o basculante em busca de ar fresco e encontro o amanhecer sobre um pequeno quintal cimentado, cercado de muros altos de tijolos nus. Volto-me para o quarto, para mim mesma. Estou descalça sobre um carpete puído; uma penteadeira antiga e uma cadeira estão mal arranjadas diante da parede aos pés do colchão; este, parece atirado com descaso, coberto com um lençol praticamente em farrapos; um modesto guarda-roupa ocupa o espaço ao lado da porta, na parede oposta à janela. Encontro um par de sapatos atirados no centro do quarto. Examino-me com crescente
desconforto, como se não me reconhecesse, da mesma forma que não reconheço o lugar. Mas sinto-me estranhamente lúcida, alerta. Ao calçar os sapatos, descubro-me no espelho da penteadeira e me vejo pálida, olhos fundos, cabelos desalinhados, vestindo uma camiseta escura, uns jeans novos, um pouco largos, que me desagradam. E eis que um intenso déjà vu parece clarear toda a cena. A sensação prolonga-se, os gestos repetindo mecanicamente um enredo já ensaiado, de modo que vou percebendo o movimento seguinte com a antecedência de frações de segundo. Sigo até a porta, sobre o ranger do assoalho, giro a maçaneta e entro num corredor iluminado por uma claraboia. Uma porta à minha direita e duas à esquerda denunciam outros aposentos. Avanço em direção a uma escada, à esquerda: sete degraus, uma curva, outros sete até uma sala de dois ambientes, com piso de ardósia. Já sei o que há, o que já houve ali, essa espécie de sonho desperto que não se dissipa. Ouço as vozes que vêm de mais abaixo. Passo pela sala de estar, os estofados velhos, quadros desbotados, tapete, tudo cheirando a cigarro, e paro à porta da cozinha diminuta, surpreendentemente asseada. Desço mais um lance de escada até o grande cômodo, misto de lavanderia e despensa, em cujo centro está a grande mesa com as pessoas ao seu redor. Quando se voltam para mim, minha percepção subitamente se expande e sou tomado pela certeza de que, ao final desse mesmo dia, estarei morta.
Lúcio, Raul, Cíntia, Olavo: sei os nomes, sei quem são. E Viriato. É ele quem abre o sorriso que conheço tanto e pergunta se estou melhor. Não, não estou melhor. Nem sei como estou, como estava antes. Falam ao mesmo tempo comigo e entre si; a mesa está coberta de panfletos, garrafas e copos, cinzeiros cheios. Aproximo-me e Viriato apanha-me pela cintura como já o fizera antes, do mesmo modo, a mesma cena, não sei quando. Quero falar, quero contar o que se passa para dissipar essa névoa de irrealidade, não como um sonho ou uma droga que me transtornasse, mas uma espécie de tormento por assistir aos próprios gestos reprisados. A conversa entre eles quer prosseguir, mas peço que se calem, preciso com urgência contar o que estou sentindo, como se a fórmula mágica de minha própria voz pudesse pôr fim ao encanto e tudo enfim se explicasse. E narro o que me acontece: o quarto e a casa estranhos, mas visitados em outro tempo, esse tempo de onde meu rosto olhou-me do espelho, em que cada passo e cada gesto são a repetição de um enredo do qual conheço apenas o terrível desfecho. Ouvem-me com atenção. O silêncio persiste depois que me calo. Viriato faz uma piada que se desfaz na inconveniência. Peço que descreva detalhadamente tudo o que se passou, as circunstâncias que me trouxeram até este momento. Percebo a ironia no semblante de cada um ao redor da mesa. Então, Viriato respira fundo e começa a falar com um acento de enfado na voz. Conheço-o tão bem. Bastam as primeiras frases, a entonação, e sei que está mentindo. Os outros, calados, parecem mentir com os olhos. Não Olavo, este parece dizer-me algo que, afinal, não consigo antecipar.
Viriato descreve os preparativos para a passeata, a grande passeata, a maior de todas, convocada simultaneamente por centrais sindicais, diretórios de estudantes, partidos, organizações diversas: concentrar-se diante da antiga prefeitura, no amplo espaço da praça e do estacionamento. Dali, derramar-se pelas avenidas, ocupar o centro, fazer um alarido tal que não será ignorado. Descreve as ruas estreitas despejando multidões em sentido único, uns poucos desavisados, envergonhados, surpreendidos em rumo contrário, esquivando-se. No centro da praça central, o turbilhão humano, a enorme estátua equestre à guisa de palanque improvisado, os oradores abraçados às patas de bronze, distribuindo inspiração em megafones, de modo a atingir os extremos do vasto e apinhado espaço. Uns de nós
sim, como deveríamos, mas outros não estão aos pés da estátua, entre os líderes, e espremem-se nas fraldas da multidão, atentos aos fiapos de discursos que o vento arrasta e distorce. Nem é preciso ouvir com clareza tudo o que se diz, o tom inflamado obtém a aclamação, as mãos para o alto, punhos cerrados.
É o momento de organizar o cortejo rumo à sede do governo quando são ouvidas vaias ao longe, uma agitação que percorre a massa como uma onda. Em segundos já se sabe que a tropa de choque em formação se aproxima da praça. Cresce o alarido, o megafone grita palavras de ordem, instruções que se perdem no tumulto que começa a se formar. Olavo e Viriato estão comigo. Olavo protesta, mas ajuda, enquanto subo numa banca de revistas para ver o que se passa. Os capacetes negros formam uma massa compacta, isolando a avenida principal. Já é possível ouvir o choque ritmado dos cassetetes contra os grandes escudos quando um rumor anuncia que um corpo de cavalaria se aproxima pelo extremo oposto da tropa. Desço. Um grupo, munido de alavancas de ferro, procura arrancar o calçamento. Viriato estende-me as mãos em concha, repletas de pedras pretas e brancas, mas recuso, não quero me armar. Digo que tenho um mau pressentimento. Ele me incita, a voz, os gestos inflamados, sua prepotência e sua arrogância típicas. Não. A sensação é muito presente, nítida. Digo que devemos nos retirar, que a polícia, ao cercar a praça, demonstra sua intenção de enfrentamento e não de dispersão. Viriato ironiza, ofende-me com as palavras grosseiras que fazem parte de seu vocabulário. Olavo agarra-lhe o braço e diz que compartilha do meu pressentimento. Acha prudente que nos retiremos. Viriato grita, ameaça-nos e então desaparece entre as pessoas que já começam a se dispersar apressadamente em todas as direções. Olavo olha-me nos olhos, seu rosto próximo indica a alternativa. Mas há o tumulto que se instaura, não é o momento. Discutimos a melhor rota de fuga para evitar a polícia quando ecoam os primeiros disparos. Um alarido ergue-se ao redor e então começa a correria. Na confusão que se segue, agarro-me a Olavo e forçamos passagem até encontrar o muro lateral do teatro. Daí, avançamos de mãos dadas, dobrando a esquina mais próxima para fugir à multidão que jorra em todas as direções. Mas a saída revela-se uma armadilha. Corremos entre tantos que buscaram a mesma rua estreita e, ao desembocarmos no pequeno largo, na extremidade oposta, somos surpreendidos pela turba que volta, perseguida pela polícia. Arrastados, vamos às cegas, tropeçando, pisoteando aqueles que caem e não conseguem se erguer. Buscamos espaço para correr e dobramos as esquinas automaticamente. A polícia está por toda parte, vibrando impiedosamente os cassetetes. Ganhamos as ruas mais afastadas do centro e o alarido parece dispersar-se, pontuado pelos disparos que ecoam espaçadamente. Ao chegarmos às proximidades da estação ferroviária já somos um grupo reduzido que corre. Então, ao mesmo tempo em que percebo os tiros assobiando sobre minha cabeça, sinto desaparecer a pressão dos dedos de Olavo em meu braço. Um amortecimento toma conta dos meus membros no instante em que algo macio e quente abre passagem pelas minhas entranhas a partir das costas. Estou no chão, queima-me em dor o corpo todo. Olavo está ao meu lado, gritando um desespero que não consigo ouvir. Depois, sinto que estou sendo carregada por Olavo e mais alguém, meus pés arrastados, as costas empapadas. Numa espécie de torpor, mal vejo as ruas escuras por onde vou sendo levada. Olavo insiste, falando em meu ouvido com voz urgente, mas sinto que é tarde para rever minhas escolhas.
Agora o ruído distante das sirenes, a dor profunda, a sonolência, a ausência de peso do corpo, um portão, escadas, portas que se abrem, a dolorosa experiência de me deitar é misto de sofrimento e alívio; um último aceno da consciência para a certeza de que as premonições de morte e desgraça se confirmam – único e absurdo conforto.
Desperto em meio a uma sensação perturbadora que, a princípio, não reconheço. Abro os olhos e me encontro deitada sobre o colchão fino, no interior de um aposento empoeirado. Sinto as dores pelo corpo, evidenciando uma noite mal dormida, um cansaço sem origem definida. Caminho até a janela, abro as cortinas, ergo o basculante em busca de ar fresco e encontro o amanhecer que se insinua sobre um pequeno quintal cimentado, cercado de muros altos de tijolos nus. Volto-me para o quarto, examino o carpete puído, os poucos móveis desalinhados, o colchão coberto com um lençol esfarrapado. Encontro um par de sapatos que parecem servir-me, atirados no centro do quarto. Examino-me com desconforto: não me reconheço, não sei onde estou. Mas sinto-me estranhamente lúcida, alerta. Ao calçar os sapatos, minha imagem encontra o espelho da penteadeira e me vejo pálida, olhos fundos, os cabelos desalinhados, vestindo uma roupa estranha. Então, um intenso déjà vu parece desvendar toda a cena. A sensação se prolonga, mas meus gestos e pensamentos parecem lutar contra a repetição mecânica de um enredo previamente ensaiado, a percepção antecipada em segundos de todo movimento seguinte. Hipnotizada, sigo em direção à porta, giro a maçaneta e saio para um corredor onde uma porta à minha direita e duas à esquerda denunciam outros aposentos fechados. Avanço, desço uma escada de quatorze degraus que não preciso contar até uma sala de dois ambientes, com piso de ardósia. Já sei o que haverá ali, o que já houve tantas outras vezes, essa espécie de sonho desperto que não se dissipa. Ouço as vozes. Passo pela sala de estar, pela cozinha diminuta e desço mais um lance de escada até um cômodo, misto de lavanderia e despensa, no centro do qual está a grande mesa com as pessoas ao seu redor. Quando se voltam para mim, sou tomada por uma inexplicável certeza: a menos que tome uma decisão de imediato, ao final desse mesmo dia estarei morta.
Lúcio, Raul, Cíntia: sei os nomes, sei quem são. E Olavo. E Viriato. É ele quem pergunta se estou melhor. Não, não estou melhor. Nem sei como estou, como estava antes. Mas sei que há algo que devo dizer ou fazer, algo que ainda me escapa e perturba. Falam ao mesmo tempo diante da mesa coberta de panfletos, garrafas e copos, cinzeiros cheios. Aproximo-me e Viriato apanha-me pela cintura, o gesto que eu já adivinhava, um segundo antes, o gesto repetido incontáveis vezes. Quero falar, quero contar o que se passa comigo para que me ajudem a compreender, a fazer o que é preciso, interrompendo esse tormento de assistir aos próprios gestos reprisados. Peço que se calem, preciso ouvir minha própria voz, usar essa fórmula capaz de fazer com que tudo volte a fazer sentido, trazer o mundo de volta ao andar das suas horas. E digo o que se passa, o quarto e a casa estranhos, mas já visitados em outro tempo, esse tempo de onde meu rosto olhou-me do espelho, onde cada passo e cada gesto é a repetição de um enredo do qual conheço apenas o terrível desfecho que, eu sei, é possível alterar. O silêncio persiste depois que me calo. Busco o apoio de Olavo, que se prepara para dizer algo quando Viriato intervém, lançando uma de suas piadas inconvenientes. Repito que não sei como vim parar ali, o que aconteceu na noite anterior. Percebo a ironia nos semblantes de Raul, de Cintia. Então, sinto que já é tarde. Viriato respira fundo e começa a falar com um acento de enfado na voz. Bastam as primeiras frases, a entonação, e sei que está mentindo. Os outros, calados, parecem mentir com os olhos. Não Olavo, este parece dizer-me algo que não consigo antecipar.


 Edmar Monteiro Filho escreve e publica há mais de trinta anos. Como contista, recebeu os prêmios Guimarães Rosa, da Rádio França Internacional, Cruz e Souza, da Fundação Catarinense de Cultura, Luiz Vilela, da Fundação Cultural de Ituiutaba, MG, e Cidade de Belo Horizonte, entre outros. Seu primeiro romance, Fita azul, figurou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, edição 2012. Fita de Möbius figura em sua mais recente coletânea de contos, Atlas do impossível.



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