sexta-feira, 14 de julho de 2017

CONTOS CORRENTES

HERANÇA
(Raquel Naveira)                
                                                                             
Esta casa antiga, de tijolos salgados e parreira de flores lilases é uma herança. Legado que me foi transmitido assim como a cor dos meus cabelos, os meus dedos de unhas frisadas. Ando pelo corredor pensando que recebi também a boa reputação de um pai que  me amou e confiou em mim como filha e herdeira.

Não foi só essa casa a minha herança. Houve valores transmitidos como leite nas xícaras brancas que retiro da cristaleira. Um modo de conduzir a vida de forma correta e singela. Um caminho de lírios alaranjados que levavam da porta até a calçada e de lá à escola, onde logo percebi que tudo que aprendia nos livros era trabalho de muitas gerações. Amei, desde sempre, as linhas dos versos: a poesia. Dediquei-me ao estudo dos poetas e da literatura, percorrendo o Romantismo, o Simbolismo, o Modernismo, copiando poemas em cadernos grandes, absorvendo as lições daqueles
manuais e antologias. Ainda meio inconsciente, apossava-me da herança do humanismo, da tradição, da
busca da expressividade e beleza do idioma. Sentia em mim a vocação, a vontade de acrescentar a esse patrimônio os meus próprios poemas, a minha galáxia de estrelas e de letras.

Sob esta casa, nos alicerces, há um tesouro oculto, uma essência de conhecimento e imortalidade. Gostava de deitar na rede da varanda,  ler muito, a avó imaginando que fosse uma doença, uma melancolia que poderia amolecer meus ossos, como uma espécie de anemia ou amarelão. Ela então me contava histórias de tesouros enterrados nos quintais das casas, nas fugas das famílias durante a Guerra do Paraguai. Louças, moedas, joias, espadas, sinos e até pianos de cauda. Eu visualizava a carnadura da terra brilhando, dragões guardando cofres, a herança descoberta depois de privações, tempestades, pesadelos com salteadores na estrada.

O poeta Drummond escreveu que o hábito de sofrer, que tanto o divertia, era doce herança itabirana. A herança de minha terra de fronteira, de laranjas ardidas ao sol, foram o silêncio, o isolamento na natureza, as conversas ouvidas à noite, à luz do lampião. A certeza de que enquanto dormimos, embalados em sonhos, crescemos no corpo e na alma, gestamos a herança do futuro.

É interessante como Deus promete nas escrituras uma herança a seu povo. Uma terra onde manaria leite e mel, distribuída por sorteio entre os clãs maiores e os menores, de tribo em tribo, de família em família. Os filhos são nossa herança, as nossas obras, a crença espiritual. Não desperdicemos nada. Disputemos cada grão de trigo e cevada. Tudo é temporário e evapora diante de nossos olhos, tontos de peregrinar no deserto.

Cora Coralina, mestra de vida e sabedoria, clamou num poema-prece que o Senhor fizesse com que ela aceitasse humildemente sua pobreza. Que não sentisse falta do que não tinha. Que não lamentasse o que poderia ter e se perdeu por caminhos errados e nunca mais voltou. Só os que se humilham como ela embaixo da potente mão divina serão exaltados e receberão a herança.

É mesmo grande a nossa ausência de zelo como herdeiros. Lutemos pela herança, pela restauração, pela glória de uma nova oportunidade, enquanto houver sopro em nossas narinas.

Esta casa antiga, quase em ruínas, é minha herança. Reconheço seu valor, embora desgastadas, ela e eu.  Mas sei que há uma morada preparada para mim quando eu estiver livre dessa opressão. E, para minha alegria, haverá fogos e flores lilases caindo à minha volta.




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