sexta-feira, 18 de agosto de 2017

CONTOS CORRENTES

Pra onde a gente vai?*
(Metheus Arcaro)

A gente não morre. Fica encantado.
(Guimarães Rosa)

Tarsila entra às pressas. Sequer limpa os pezinhos no capacho como sempre fazia a pedido da mãe. Mamãe, corre aqui! Tô escrevendo, filha. O que foi? A menina incha os pulmões, o segundo grito sai mais encorpado, percorre os cômodos da casa e traz Laura à sala. Óculos na testa, caneta na boca, o rosto a transpirar maternidade. As pegadas de barro no piso de madeira não são notadas pela mulher como habitualmente seriam. Tarsila abre as mãos como se desvendasse as entranhas do mundo. O pássaro consegue ser menor que os dedos dela que crescem há apenas seis anos. Oh, deve ter caído do ninho, filha!

Para o bem-te- vi, naquele instante, respirar é uma tarefa difícil, talvez a mais difícil que a biologia já lhe impusera. Temos que levar ele ao médico de bichinhos, mamãe! Hoje é domingo, meu amor. Eles
não trabalham. Mas o doutor Hernandez trabalha. Ele já veio aqui ver a Mimosa de domingo, lembra? Doutor Hernandez só cuida de bicho grande. Mas vou tentar falar com ele.

Laura tecla números aleatórios e encosta o celular à orelha. Sim, entendo, doutor. É, parece que ele está respirando. Com dificuldade. Mas não abre os olhos nem se mexe. Tudo bem. Entendi. De qualquer forma, muito obrigada. Tarsila, com as sobrancelhas franzidas e a respiração ofegante, acaricia o bem-te- vi, o indicador a derramar ternura na cabecinha penada. Filha, o veterinário disse que está em outra cidade. E disse também que não há muito o que fazer nestas horas.

A menina espirra água na cara da ave. Liga o ventilador e coloca o pássaro bem próximo ao vento. Quem sabe ajuda ele a respirar, mamãe. Laura acompanha o procedimento da filha e se pergunta quando, para ela, a parte verde da vida perdeu o fulgor. Tarsila não deita as vistas no pássaro. Não diretamente. Olha de soslaio, várias vezes, até pedir à mãe uma análise mais detida do bicho, sem tirá-lo da caminha feita com as mãos. A mulher aproxima o rosto das mãozinhas em concha, poucos
centímetros. Não solta uma palavra. Os olhos nos olhos da filha. A linguagem da vida (e da morte, que são diferentes apenas por uma questão de perspectiva) perpassa os três corpos: o grande, chancelado pelos anos, pelas conquistas e frustrações; o pequeno, em plena primeira defloração e o inanimado.

Pra onde a gente vai quando morre? Ninguém tem a resposta, filha. E nunca vai ter. Acho que morrer é voltar pras estrelas. Hum. Mas como? Quando aquele bicho que eu não lembro o nome morreu, doutor Hernandez colocou ele debaixo da terra. O que fica debaixo da terra é a parte que desmancha, que vira comida pras plantas. O sol que entra pela janela rústica, quase um holofote, pinta de dourado os dedinhos de Tarsila que continuam a acariciar o bem-te- vi. Talvez, filha, morrer seja ficar guardado na lembrança dos que amaram aquela pessoa. Só pessoas, mamãe? Não, não, bichos
também. O Pichuco vai ficar pra sempre dentro da minha cabeça. E aqui também. A menina encosta a mão no peito. Laura sorri ao ouvir o nome que a filha acaba de cunhar ao pássaro. Sorri mais quando vê o movimento daquela mãozinha que ela conhece tão bem.

Mas, de súbito, o rosto de Tarsila toma outra forma. Ela levanta os cílios para a mãe e respira fundo. Papai morreu. Você sabe que não, Tarsila. Morreu sim. Está morto quem a gente sabe que nunca mais vai encontrar. Seu pai fez as escolhas dele. Mas ele sempre será seu pai. Não importa onde esteja e o que esteja fazendo. Laura apanha o retrato do alto da estante. Assopra a poeira e estica o objeto à filha. Aqui você no colo dele quando tinha onze meses. Mãe, vejo isso todo dia. Mas essa foto não me abraça.

A menina encosta a ave no ombro. Laura abraça Tarsila. O silêncio constrói uma ponte entre as duas. Você vai morrer, mamãe? Sim, filha. E quem vai cuidar de mim? Ah, vai demorar bastante pra mamãe morrer. Até lá, você vai saber se cuidar sozinha. Tarsila espreme os olhos. Será que o Pichuco vai encontrar o irmãozinho que eu não tive? Laura engole a saliva como se fosse o feto que, há quatro anos, tiraram sem vida do seu útero. Retoma o fôlego e olha para a menina. Não sei, minha filha. Não sei. Eu acho que não, mamãe. E por quê? Como tem jeito de alguém morrer se ainda nem nasceu? A mulher não responde. Mesmo trabalhando por mais de três décadas com as palavras, elas teimam em fugir. Parecem saber que não dão conta das acontecências mais profundas. O abraço se torna mais apertado, mãe e filha a se misturarem. Após alguns segundos, Laura diz que é preciso devolver o pássaro à terra.

As duas saem. A lua, aos poucos, toma o lugar do sol. Parece querer espreitar o rito. Laura, com uma colher, cava um buraco na grama do quintal, próximo ao cipreste. Tarsila coloca o pássaro e, com as mãozinhas, puxa terra para a cova. Enquanto, com as lágrimas, rega a montanha em miniatura, diz à mãe que ali nascerá uma árvore cheia de galhos, para que muitos Pichucos possam fazer seus ninhos. Mas uma árvore pequena. Porque, mamãe, se os passarinhos caírem, eles não se machucam.

* Conto pertencente ao livro “Amortalha”, a ser publicado em outubro de 2017.

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