sexta-feira, 20 de outubro de 2017

CONTOS CORRENTES

ILHA
(Lelia Maria Romero)

Pobreza e riqueza se misturam na paisagem. O cotidiano e os desejos ilhados, um dia querem mais, tornam-se continentes e a Ilha pode oscilar. Como o destino.

O mar inunda janelas, casarões antigos, mercearias e lojinhas da vila. Fora a passarela montada para seduzir, inspirar planos de férias e fins de semana românticos, a vila da Ilha é esquecida. Ruas sem esgoto afundam-se nas montanhas e camuflam o mau cheiro da miséria dos homens, diluído na floresta subtropical, domínios da neblina e das borboletas azuis.

Mila nasceu na Ilha, num desses esconderijos. Mestiça, de mãe mulata e pai caiçara, moça de olhos puxados e contornos harmônicos, cresceu descalça, nariz sujo e sorriso branco, tudo na medida do encanto. Ondas do mar, castelos de areia, passeios de canoa foram seu brincar, e além do aconchego
dos pais, a descoberta de seu sorriso foi marcante: era muito elogiado e só seu. Adolescente, já o
percebera como poder, e cuidou bem dos dentes. Apesar da falta de recursos, a natureza lhe favoreceu e frequentemente os limpava com as cinzas do fogão.

 _Ficam branquinhos, dizia sua mãe. Casou-se cedo e quanto à primeira experiência, além de uma filha, não há grandes novidades: o marido, bem mais velho, bebia e batia. Alguns anos de cicatrizes, um mindinho sem unha, pratos quebrados e a volta à casa dos pais. Hoje, aos 29 anos, com os pés grossos e o rosto meio endurecido, é vistosa e ágil.

Há dois anos, ela e a filha adolescente viviam com o novo marido, morro acima, mata a dentro, num barraco feio, próximo a uma bica d'água. O novo homem era jovem e forte como ela, sem a singeleza do pai, grosseiro e alegre.

Vivia de oportunidades. Ela trabalhava como balconista de um bazar chinfrim, esses onde as imagens dos postais amarelam depois da temporada. Mais um dia de trabalho findo, Mila subiu o morro de volta pra casa, e encontrou o marido na cama com a filha. Antes de pronunciar a primeira sílaba, Mila viu o salto do marido contra a parede caiada, sobre a qual se apoiou, lançou como pode palavras defensivas, e foi interrompido pela menina que o protegeu, pondo-se entre o padrasto e a mãe, dizendo que gostava dele, ficaria com ele e nada, nem ela nem ninguém se meteria, ao que ele calou como convinha. Mila saiu tropeçando, correu até a bica pra se jogar na água, no musgo, no lixo.
Voltou pra casa, a filha fazia café e o marido se pôs diante da televisão. Não houve mais palavras nem jantar naquela noite e na hora de dormir, o novo par foi para o quarto e passou tramela na porta. Mila ficou estendida no sofá, e em algum momento da madrugada adormeceu.

De manhãzinha, o sol mal apontava, ela se levantou, preparou uma  mochila e saiu. Ficou sentada no quebra mar, olhando o mar sonolento, a esteira da traineira voltando, o horizonte. Não havia mais os pais nem a velha casinha. O terreno fora grilado, morro acima, pelo conhecido Juju, homem ligado às ocupações dos terrenos de caiçaras analfabetos. Acolhida com assombro por uma amiga, ganhou o bicama da sala pra dormir, uma parte do armário e a vida seguiu. Às vezes via a filha pela rua:

_Como é que vai? A jovem virava para a mãe com olhos de menina e respondia com voz de mulher:

_Tudo bem, tudo indo. Antes do carnaval, o ânimo de Mila mudou. Queria sair na escola de samba, mas num lugar de destaque seria. A amiga ajudou, negociaram e sua graça lhe valeu privilégios: sairia entre a terceira ala e a madrinha da bateria.

No grito de carnaval ela já se sonhava outra. Vestiu sua personagem e andava pelas ruas com o seu papel encarnado. À noite era apenas uma exaltação. Nos dias em que não havia desfile, dançava de improviso num bar. Variados parceiros, nacionalidades e idiomas circulavam, enquanto ela rodopiava entre as mesas. Depois de uma de suas exibições, cheia de espuma de cerveja no buço, foi abordada por um casal de alemães que se comunicou em inglês, ao que ela respondia sorrindo. Arranjaram um intérprete, ofereceram outra cerveja e o casal caiu nos encantos da brasileira. No dia seguinte convidaram- na pra jantar, depois veio o passeio de barco e Mila já se via maior que sua
personagem.

O carnaval acabou e com ele, foram os turistas, o verão e os dólares, mas para Mila foi diferente. Tinha impressionado pra lá das fronteiras, fizera amigos de além-mar. Antes da partida, os alemães perguntaram se ela gostaria de conhecer a Alemanha. Mila voou na ideia como no passeio de barco. Essa gente do outro lado do mundo, promessas que nos fazemos, a grana, o sotaque, esses louros que vêm nos salvar, nos dar valor e uma vida melhor.

Sair do país, ir pro continente. A Ilha era o seu mundo. Estava envaidecida por conhecer gente distante ali mesmo onde nasceu, naquele pedacinho de terra boiando no mar. Combinaram manter contato.

Oito meses mais tarde, chegou um envelope com uma passagem S.Paulo - Frankfurt e todas as instruções para a viagem. Loucura ou não, Mila já não se fazia tantas perguntas, e com a ajuda da amiga preparou o necessário. Pronta pra iniciar outra etapa da sua vida, esbarrou o pensamento na filha e concluiu que este livro já estava escrito com final selado. Num fim de tarde se encontraram na praça. Os antigos canhões, o por de sol, o continente. Mila iria voar e conhecer a neve. Não se encararam, mas o mar dourado inundou os olhos da menina, que sentiu o poente no coração nascente, que dizia mãe não vai, mãe me leva com você, mãe não me deixa aqui sozinha. Mila lhe deu um
abraço de mãe e falou como mulher:

_Se cuida! A luz do dia deslizou trazendo Mila para si.

Caminhou na direção do sol escondido, afundando os passos na areia, afogando os pés na água salgada e torcendo o barrado da camiseta, enxugou as lágrimas com a ponta da malha estrangulada.
Imaginou a Alemanha, com todos os choques e o reverso, tanto frio e gente de fala áspera. O velho novo mundo encantaria Mila e os amigos alemães renovariam seu visto de turista. Ela diria que seu lugar não era aquele, a vida tão cara e a saudade, saudade da Ilha. Mas sua vida virou do avesso no dia em que subiu o morro pra fazer o jantar. Os capítulos estavam gravados e não havia mais como alterar o final da novela. Só não estava escrita, nem ensaiada,  sua temporada no estrangeiro, seu sorriso a derreter a neve, pupilas incendiadas nos giros da dança, um novo público.

Ela escreveu à amiga, contando sobre o céu da Alemanha, a vida ordenada e o metrô de manhã, apertada no meio daquela gente branca e estranha. Não voltaria. Mila teria no coração o desejo de ilhar, mas era algo parecido com a lembrança da infância difícil, as cantigas que o pai cantarolava,
enquanto trançava a fibra cheirosa e o colo da mãe, catando os piolhos do seu cabelo menino, os seus seios enormes amamentando a filha, tudo tão longe, longe como a Ilha, um quase nada no globo do escritório dos seus amigos alemães.
Mila virou continente.

A ilha
O continente olha para a ilha.
Bela, ela não liga.
Ele tem raiva de seu ar de senhora
ela respira fundo de seus altos picos
praias secretas
ondas escancaradas.
A ilha tornou-se independente dele faz tempo.
Ela gosta.
O continente segue preso em suas raízes
largas extensões cuja origem remonta
ao humor temperamental do planeta.
A ilha é jovem, quer a vida toda para ela
não quilômetros a percorrer
mas passos a dar
caminhos a trilhar.
O outro lado da Ilha devora
este recebe
a ponta sul naufraga
a norte fundeia.
Feminina
cheirosa de encantos e armadilhas
a ilha segue sua devoção livre.
Bela, olha para o continente.
Ele se esconde.
Tempo virá em que ele
se tornará muitas ilhas
milhas de pedaços de terra
rodeados de água por todos os lados.


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