segunda-feira, 30 de outubro de 2017

CRÔNICA

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff  publicadas originalmente em seu site.
No fim da tarde como pardais

Eu sei, você sabe, todos nós sabemos que andar faz bem à saúde. Como de resto faz a maioria das atividades físicas. Precisei, contudo, de uma recomendação médica para começar a fazê-lo. Não todos os dias, como exige o facultativo encarregado de me manter razoavelmente saudável, mas sempre que o trabalho e o clima me permitem. E muito a contragosto o faço eu, que desde criança julgo um tanto aborrecidas as tais atividades físicas. Mesmo assim, mal o Sol se engarrancha nos fios de luz, entre rabiolas e papagaios, se não estiver chovendo, começo a me preparar.

Nunca poderia imaginar que essas caminhadas (corpo ereto, amplo movimento de braços, ritmo marcial contínuo) poderiam transformar-se em momentos de descobertas transcendentais. Pois é no que se transformaram.

Descobri, há uns dois meses, que não sou muito dado a amizades, principalmente se o amigo é o maior amigo do homem. Há um destes seres a quem não informaram a mais conhecida característica de sua espécie e ele me agride em altos brados por trás de um portão de ferro enferrujado toda vez que passo pela calçada que fronteia seu território. E percebo, por sua expressão, quanto de ódio pode acumular-se em um só corpo. Parece o cunhado de um amigo meu.

Não pensem, contudo, que as descobertas venham invariavelmente com esse teor desagradável. Coisa de duas, três semanas atrás, descobri, quase rindo de tão contente, a esperteza de certos
prefeitos. Mandam plantar sibipirunas de pouco mais de dois metros em canteiros centrais nas avenidas com o único propósito de criarem mais empregos para seus concidadãos. Lembro-me de quando as sibipirunas foram plantadas na avenida que elegi como pista para minhas necessidades físicas. Eram umas arvorezinhas sem graça, nos primeiros dias. Seu verde escuro e brilhante chegou a andar fosco por alguns tempos. Então vieram as chuvas, o sol recolheu-se um pouco e as sibipirunas desembestaram a crescer. Hoje elas já nos brindam com sombra fresca e flores amarelas. Ah, sim, e periodicamente exigem um batalhão de homens armados de escadas e serrotes para desbastarem suas copas que ameaçam romper os fios de telefone e de luz que passam por cima dos canteiros.

A descoberta que mais me encantou aconteceu ontem. Encoberto pelas copas das sibipirunas, eu vinha descendo a avenida em passo acelerado. Sobre a cidade, uns restos de luz que escorriam de umas nuvens cor de fogo, umas aragens finalmente frescas. Quase tropecei, tanta era a pressa, em duas meninas, duas adolescentes de uns treze anos. Por causa das sombras, não cheguei a ver direito suas expressões, mas, tão pardais elas vinham, chilreando descuidosas, tão barulhentas, que as imagino de rosto afogueado, faceiras, lábios e olhos rasgados em sorrisos. Tenho certeza de que andavam como andavam sem precisarem de recomendação médica. Andavam e eram felizes. Ou eram felizes, por isso andavam. Não importa. A vida sem passado ou futuro. A vida como aquela aragem fresca, que elas sorviam sem ao menos perceber. Parei para as ver passar. E eu vi o que há muito não via, nem pensava que ainda houvesse. Tagarelas, sorridentes, as duas iam de mãos dadas.

Voltei pra casa mais leve, mais bem disposto, prometendo a mim mesmo nunca mais esperar recomendação do médico para botar o corpo a trabalhar.

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