sábado, 10 de fevereiro de 2018

CARNAVAL LITERÁRIO 2

Desde ontem estamos postando contos de Menalton Braff para os que não vão cair na folia e também para os carnavalescos que tiverem um tempinho entre uma farra e outra.

O conto escolhido para hoje está no livro 
A COLEIRA NO PESCOÇO.


Toda uma noite: o prêmio

Entra meio empurrado para o quarto e senta-se com a beirada do corpo sobre seu cansaço na cama estreita. Um peso. O mundo ali, com todos aqueles disfarces, quase impossível arrastar-se por inteiro até o centro do cenário. Sentado fundo, à espera, primeiro aquela mão de Humberto, ainda um pouco estúpida, explorando o edredom: tecitura e dobras, seu relevo. Os olhos, então, já menos assustados, percebem as grandes flores da cortina e o nicho com a vela acesa sobre a penteadeira. Um recorte de revista enfeita a porta do roupeiro. Tudo simples entrando por seus olhos já menos assustados. Está então a ponto de sentir-se em profundo bem-estar. A mulher que lhe destinaram, arrumando-se no banheiro, cerimoniosa, deferente. Ele sentado, sem medo de cair, só esperando. Não há o que temer. As narinas, entretanto, as narinas recém-chegadas e sensíveis, mas inexperientes, querem saber de que espécie e origem aquele cheiro meio morno insosso, um tanto orgânico, como de vida que não chegou a vingar. Um cheiro que está grudado nas paredes, que parece subir das entranhas da cama. Sua intuição lhe diz que é o próprio cheiro do tempo e isso volta a inquietá-lo.

Com a porta fechada, agora, mal se ouvem as pancadas mais fortes da bateria, que ainda há pouco, no salão, ameaçavam ensurdecê-lo sem motivo aparente. Tudo que vem de fora chega de maneira abafada, mesmo as lembranças mais recentes. Apesar de assim protegido, começa a se incomodar com o suor que lhe poreja no buço e na testa, um desconforto. 
Depois de o instalar sentado na cama, a Ruiva, a mulher que lhe destinaram, saiu dizendo que demorava um instantinho só. Fosse tirando a roupa e se arrumando, enquanto isso. E bateu atrás de si a porta que dava para o corredor por onde haviam chegado eles dois, e por onde vinham a música e as gargalhadas do salão. Era preciso dizer-lhe que se tratava de sua primeira vez, mas ela parecia ter pressa.
Vira a cabeça para a esquerda e se vê com surpresa congelado no espelho da penteadeira. Mais pálido que de costume, os olhos redondos e sem outra expressão que não seja o pavor mudo e infantil que já não percebe por ser expressão que o acompanha todos os dias da semana. Seu cão farejava qualquer coisa entre os trilhos do bonde. Humberto, na calçada, viu chegar a distância um bonde imenso e veloz. E o bonde se aproximava barulhento, mas seu cão estava distraído com aquilo que acabava de descobrir entre os trilhos. Talvez pudesse correr e salvá-lo. Talvez pudesse gritar e chamá-lo. A visão antecipada da tragédia, entretanto, imobilizava-o. O último ganido foi abafado pelo barulho das pesadas rodas sobre os trilhos. E ela saiu sem lhe perguntar se era sua primeira vez, sem falar de sua paciência com principiantes, mesmo quando já muito além da idade apropriada. No espelho, por cima de sua cabeça, o brilho meio desmaiado da arandela, aquela mancha na parede. Em seu rosto mais pálido que de costume, separando a testa das faces, uns olhos redondos e sem expressão.
O tempo, ali dentro, é líquido espesso, denso, lento. Lento como o espelho, como a cortina imóvel. Um instantinho só. Que demorava um instantinho só.
A mão direita volta a pesquisar a superfície do edredom, agora acompanhada pelo olhar fatigado, em fuga do espelho. Eram flores vermelhas e amarelas em fundo verde. Lírios e rosas, provavelmente. As mesmas flores da cortina, verdes e amarelas em fundo vermelho. Seus olhos, esquecidos do rosto pálido preso no espelho, distraem-se a subir e descer, do edredom para a cortina, descobrindo simetrias. Poderia imaginar um jardim, além da janela, com tuias, moitas de arecas, caramanchões e pérgulas, aléias de saibro, delgados ciprestes. Poderia. Mas, além de não ter o hábito do devaneio, está mergulhado em seu próprio corpo, um corpo prestes a florescer e ele não sabe o que deve fazer. Por onde começar? É muito comum que o sucesso resulte da primeira atitude. Tal idéia, entretanto, fica a meio caminho de sua formulação. Enquanto espera, quase imóvel sentado sobre seu peso, não passa de uma sensação, de uma sensação até um pouco desagradável, espremida entre a língua e o palato, aquela náusea que sobe do vácuo aberto em seu estômago. Seu vazio.
O silêncio da vitrola não chega a cair em sua consciência: uma alteração. O silêncio. Talvez uma falta, sensação difusa de uma ausência. Apenas isso. Quando ouve passos no corredor, entretanto, passos que se aproximam, crescendo,  fica imóvel, o olhar mergulhado no espelho, tenso engatilhado, o corpo todo dorido porque usado inteiro na escuta.
Ouve vozes, mas não distingue as palavras. Suspende a respiração. O suor volta a porejar no buço e na testa e agora também nas palmas das mãos. Estão muito próximos. Vira-se então para a porta, os olhos fixos na maçaneta. Todo ele fixo, parado. Os passos se afastam, carregando as vozes de palavras indistintas.
Distende os músculos, volta a respirar sem medo. Não, ainda não era a Ruiva. Um bocejo devolve-lhe a paz dos membros. Um bocejo muito aberto, amplo mesmo, quase uma entrega. Sente calor e tira o paletó, pendurando-o no espaldar da cadeira de palhinha. Repete o bocejo como se preparasse um conforto, por isso alonga os braços e joga o tronco para trás, na cama onde está sentado, quase esquecido de que era apenas por um momentinho. 
Não tivera como recusar. Uma bobagem, aquilo de rifa. Não acreditava. E o prêmio esdrúxulo: aquela noitada. Por vontade própria não jogava dinheiro fora. Mas a pressão dos colegas era circular e não deixava ninguém de fora. Até o gerente, eles diziam. Até o gerente. Então dera o dinheiro mas recusara-se a escolher um número. Uma bobagem, isso. Não acredito. Depois a festa, as brincadeiras, aquela tontura da cerveja e o medo de acabarem descobrindo que era sua primeira vez.
Me paga uma cerveja, a voz da Ruiva borrada de rímel. E a bateria no aparelho de som como se quisesse ensurdecê-lo. Buscou socorro nos colegas, qualquer orientação - se aquilo fazia parte do acordo. Eles rodavam pelo salão dançando, muito ocupados. Ergueu as sobrancelhas, o queixo apontado para a Ruiva, como é que é? E ela repetiu o pedido gritando em seu ouvido, impossível continuar fingindo que não ouvira. E os dois rodando no meio do salão, uma cerveja?, e eles não olhavam e o garçom já vinha trazendo uma garrafa de cerveja e a Ruiva pegara em seu queixo agradecida. Não dava mais para recusar.
Sente o suor brotando de seu corpo e não se mexe, como se na imobilidade encontrasse uma solução. O teto oscila suave: um embalo. Fecha os olhos e o mundo aderna. Precisa abri-los novamente para saber que não está caindo. Boceja ruidosamente antes de se apagar inteiro.
É um círculo muito grande de homens, alguns deles com gravatas tremulando ao vento. Eles batem palmas e batem os pés na grama, sorrindo e cantando alguma coisa que não se pode saber o que é. Os mais altos são também os mais barulhentos. Os rostos risonhos e agressivos transformam-se em focinhos de cães sem pararem de cantar. Humberto tenta escapar, mas o círculo é muito fechado e, à medida em que o ritmo das palmas se intensifica, mais estreito vai ficando o círculo. Até que sente os focinhos roçando em seu rosto, como um barulho áspero e acorda apavorado, erguendo bruscamente o corpo. A porta está aberta e a Ruiva despede-se de alguém que segue pelo corredor.
A porta fechada, ela se aproxima por trás do sorriso carmim, com olheiras cansadas e roxas, e quer saber. Como, ainda vestido? Humberto, intimidado por sua presença e sua voz tão desconhecida, mas indeciso entre a raiva pela espera tamanha e o alívio com seu fim, ergue os ombros e consegue arrancar do peito alguma coisa como sabe, é minha primeira vez. A Ruiva assume ares maternais, com os lábios em bico de beijo e, estralando a língua, começa a abrir a camisa de Humberto, diligente e lenta, enquanto diz palavras carinhosas com meloso jeito infantil. Importância nenhuma, isso, de primeira vez: amor sem treinamento.
Humberto se entrega, tenso, primeiro, depois, e aos poucos, sentindo-se relaxar e, finalmente, com um tesão que o imobiliza, como se a vida toda estivesse concentrada ali, em seu inábil aparelho reprodutor. Fecha os olhos pudicos quando sente a cueca escorregando pernas a baixo, uma vertigem. Nunca sentira um rosto de mulher assim tão próximo que pudesse respirar seu hálito, nem fora jamais tocado por mãos assim femininas, feitas de um tecido macio como pedaços de um sonho colorido. Ao primeiro toque dos lábios em seu pênis enristado, ejacula pensando que finalmente conhece as fímbrias da morte, sua dor e seu gozo: um desmaio. Seu coração está entregue, inteiro e virgem, às mãos astutas da Ruiva. 
Depois de um curto repouso e algumas carícias, Humberto está novamente pronto para o desempenho masculino, que se agrava agora com a visão do corpo inteiramente nu da mulher. Meu Deus, ele pensa cheio de remorsos pelo fato de ter esperado tanto por sua primeira vez. E joga-se desajeitado por cima da Ruiva, que acaba de se deitar. Cheia de paciência, ela o guia por caminhos desconhecidos, e ele deixa-se guiar sem resistência.
Quando está para morrer pela segunda vez, movido então pelos urros em que a Ruiva se desmancha, abre-se a porta com violência e o quarto se vê invadido por um cordão carnavalesco recém-formado no salão. Suas gargalhadas abafam os gemidos da Ruiva, que, entretanto, parece indiferente àquelas presenças hediondas. Humberto, acuado, tenta cair de cima da Ruiva para  enrolar-se no edredom verde com flores vermelhas e amarelas. Todos cantam e gargalham, dançando  sem parar, porque não podem conter tanta alegria. Tenta, mas com as pernas trançadas em seu dorso ela o retém. Não, ainda não, que acabaram de abrir-se as janelas do paraíso.
Os foliões retiram-se em silêncio respeitoso ao perceberem a consumação. Estirados sobre a cama, transformados em dois corpos que se conhecem, o homem e a mulher  ressonam, exaustos, sonhando o mesmo sonho.
Quando o sol atravessa a cortina vermelha de flores verdes e amarelas, anunciando o dia com suas claridades, Humberto veste-se triste como quem tem de partir. Na porta, à sua espera, entretanto, encontra a Ruiva com sua reduzida mala na mão.

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