sexta-feira, 30 de março de 2018

CONTOS CORRENTES

A RODA DO MUNDO
(Suzana Montoro*)

Edna entrou no carro chorando e eu comecei a falar devagar, a tentar contar como tinha sido, as palavras saindo de maneira desconexa, nesses momentos parece que pouco importa o que se diga. Já pela manhã ao telefone bastou dizer o nome dele, bastou dizer Lúcio e Edna já intuiu o que eu iria falar, nada perguntou por que não poderia, mas percebi que continuava me escutando, ouvi o muxoxo que traduziu seu espanto e logo vieram os soluços, eu disse que passaria para pegá-la e quando entrou no carro continuava chorando. Se pudesse, ela me pediria para contar como foi que aconteceu. Olhei para aqueles olhos espantados por onde transbordava sua mudez e fui dizendo palavras soltas, entrecortadas, faltou coragem para a verdade nua e crua, as bochechas dela úmidas, eu não chorava, mas compartilhávamos a mesma incredulidade teimosa e óbvia diante da morte. Num momento em que parei de falar, olhei a expressão consternada de Edna e, mesmo sendo muito amigo de Lúcio, me perguntei como era possível que ela continuasse tão encantada por ele depois de tudo. Poderia ter colocado a mão no seu ombro, poderia ter dado um lenço para que enxugasse as lágrimas, poderia abraçá-la e dizer tudo o que sempre quis, mas não fiz nada disso, dei partida no motor e deixei que a atenção na estrada nos conduzisse ao cemitério. Eu calado, ela chorando. Tínhamos um longo trajeto a percorrer, horas de viagem que de uma maneira ou de outra seriam preenchidas.


            Era um dia claro de inverno, um sol ameno que poderia nos aquecer não fosse o vento frio. Edna fez menção de abrir a janela, depois mexeu no console e colocou um CD. Aumentei o volume, Lúcio gostava de ouvir música bem alta, escutar baixo para quê, nada o deixava mais irritado do que conversar enquanto escutava música. Ele era assim, definitivo e arrogante em suas preferências, o que os outros queriam não lhe dizia respeito. Nós os amigos já estávamos acostumados com seus hábitos extravagantes, convivíamos a tanto tempo que pouco importava como cada um era, apenas nos divertíamos quando ele determinava que o mundo sairia da órbita sem a sua presença. Coisas de amigos, que se nutrem das excentricidades de um e de outro e vão até o limite das brincadeiras sem saber onde a piada deixou de ser piada e então o que antes era motivo de gozação já não podia mais ser ridicularizado porque Lúcio passou a nos olhar com estranhamento cada vez que falávamos da sorte que ele tinha por despertar paixões arrebatadoras e ser um cara tão atraente. Lúcio era belo, o mais belo dos homens, como dizia sua mãe, e talvez por isso Edna tenha se apaixonado, por aquela beleza indiscutível de formas e proporções perfeitas, ela, que tinha sido uma mulher quase tão bonita quanto, estava agora pele e osso, parecia não se alimentar de nada desde que fora rejeitada por Lúcio. Olhei-a com ternura sentada ao meu lado, a cabeça recostada no banco, os olhos fechados, reclusa numa mudez em que ecoava apenas o amor que nutria por Lúcio. Tantas paixões despertadas e a nenhuma ele retribuiu. Mais uma de suas extravagâncias a que não fizemos caso.
            Na metade do caminho paramos para um café. Eu sabia que não tínhamos muito tempo, mas meu desejo era de ficar naquele lugar para sempre, olhando os carros passando e conversando com quem chegasse, entregue a uma vida alheia só para não ter de enfrentar a cadência asfixiante daquela viagem, Edna e eu, juntos e calados.
            Estávamos de volta à monotonia da estrada. Eu ia entretido nos pensamentos quando Edna cutucou meu braço e olhou interrogativa, a mudez era compensada por uma precisão de gestos e expressões que traduziam de maneira inequívoca seus pensamentos: queria saber como tudo tinha acontecido. Como contar a ela. Como revelar aquela verdade tão íntima de Lúcio. Talvez eu não quisesse contar nem mesmo a mim o que nós nunca dissemos um ao outro, o que nenhum amigo disse nem no momento mais licencioso da raiva, éramos todos de alguma maneira culpados, cúmplices de uma beleza tão resplandecente quanto inútil. O entorpecimento do amor que Lúcio nutria por si mesmo nos tornou passíveis e lânguidos e, na camaradagem da amizade, não nos demos conta de que há muito ele extrapolava os limites do amor próprio admirando unicamente o espelho de si mesmo. Lúcio afogara-se na noite anterior, deixando uma carta em que revelava a falta de entusiasmo para viver num mundo em que não amaria ninguém que não fosse ele mesmo.
            Quando chegamos ao cemitério, a cerimônia do enterro já havia terminado. Não tivemos dificuldade de encontrar o local em que o corpo de Lúcio estava sepultado, a terra recém-mexida, o cheiro das flores e a atmosfera de pesar que se demora um pouco mais. Eu não tinha contado a verdade a Edna, mas ela parecia saber. Afastou-se por alguns minutos e voltou trazendo nas mãos um buquê de flores amarelas e brancas que carinhosamente ajeitou naquele pedaço delimitado de grama. A mudez do gesto simples traduzia a sina do amado.
            Na viagem de volta, Edna e eu permanecíamos atentos à estrada. Um trecho que estava sendo recapeado resultou em congestionamento e ficamos parados por longo tempo. O cansaço da viagem, o atordoamento da emoção e o estado de torpor diante do susto da morte deixaram-nos tão exaustos quanto inertes. Não foi preciso mais do que uma troca de olhares para que eu entrasse na bifurcação que levava a um hotel. Era uma espécie de resort, caro para nossas possibilidades, mas estávamos num ponto em que não há escolhas a serem feitas, apenas deixar-se conduzir pelo que se apresenta, uma maneira de seguir com soltura o unicamente agora. Uma festa de casamento lotava o hotel. Recebidos como convidados, fomos presenteados com um cartão de boas vindas dos noivos e encaminhados para o quarto. Sem surpresa nem constrangimento, fomos direto para a cama e nos abraçamos. A roda do mundo seguia girando em sua órbita.


*Suzana Montoro é psicóloga e escritora, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012, na categoria autor estreante.


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