Esta coluna reúne apresentações de livros escritas por Menalton Braff.
O silêncio bem temperado
Mariel Reis, esse é o nome. Em seu
segundo livro, reuniu vinte e um textos capeados pelo título A arte de afinar o silêncio, cujo
paradoxo expressa muito de seu conteúdo. E o silêncio, pode crer, saiu bem
temperado, lembrando o título de Johann Sebastian Bach. Uma incursão, mesmo que
rápida, por suas páginas, comprova nossa afirmação.
O livro, estruturado segundo um dia
na televisão, começa com o primeiro título, Hino,
que introduz o texto O poste, escrito em primeira pessoa e expressando
uma série de sensações de qualquer pessoa em uma cidade grande. A linguagem
carrega um certo sabor de Cruz e Sousa, o que é um de seus méritos, mas põe em
discussão algo que hoje começa a perder o sentido, qual seja, o problema das
classificações.
Muitas editoras, atualmente, fogem
à cilada dos tênues limites de alguns gêneros, indicando em sua ficha
catalográfica apenas ficções. O
conto, teoricamente discutidíssimo por autores como Edgar Allan Poe (para quem
conto era todo texto narrativo que se pode ler em meia hora) e Júlio Cortázar,
que nos deixou obra teórica importante a respeito deste gênero. Em resumo,
pode-se dizer que conto é uma narrativa de uma só célula dramática, com
economia de recursos narrativos. Sua linguagem,
por tensa, aproxima-se da
linguagem da poesia. Neste assunto, qualquer definição há de ser insuficiente,
mas por enquanto nos satisfaz o que aí vai dito, para sugerir que muitos dos textos
de A arte de afinar o silêncio
estariam mais bem classificados como ficções.
A começar por este belo O poste,
de sabor cruz-e-sousiano.
Abre-se novo título, Impressões, para agrupar quatro novos
textos, começando por Um conto sobre a
inveja. Trata-se de um conto situado no Rio de Janeiro do século XIX, cujas
personagens saem de livros e da vida carioca daquela época. Bentinho, Capitu,
Lima Barreto são personagens movimentando-se no texto. A caderneta que se lhe segue, tem como protagonista Fancis Ponge,
recriando sua vida num cenário parisiense. Paul Valéry, do próximo conto, A pergunta, comparece com suas inquietações. E Impressões se encerra com Meu encontro com Marques Rebelo, com
quem o narrador tem um encontro inusitado, depois de ele ter fugido de seu
próprio velório. Este último conto faz uma incursão pelo realismo mágico do
tipo ontológico, em que o sobrenatural é admitido com naturalidade.
Telejornal – Parte 1,
que vem a seguir, começa com A mensagem, conto
urbano, carioca, que beira o brutalismo, tão frequente na literatura de muitos
jovens seguidores de Rubem Fonseca. Mas Mariel Reis não fica nisso, indo buscar
em muitas outras fontes os modelos de cujo amálgama sairá sua própria
literatura.
Novela das seis, o próximo título com que o autor ironiza um
dia passado na telinha é um conjunto de 28 capítulos, quase todos de pequena extensão,
vazados em uma linguagem tendendo para o Impressionismo, pelo efeito borrão das
cenas que mais sugerem do que exprimem realidades mimeticamente relatadas. Há
momentos de lirismo e poesia com equilibrado uso de recursos de retórica como
no Capítulo 2: “As paredes tatuadas de segredos porejam queixumes, resta saber
onde. Novo abrigo.” Tem-se aí uma bela prosopopéia de sentido ambíguo e
intrigante. Sonho e uma realidade difusa alternam-se numa história que pode ser
de amor, para encerrar com o último capítulo, o de número 28: “Ela não existe”,
que mais uma vez nos faz lembrar dos devaneios e da subjetivização simbolistas,
em que o ser amado nunca passa de uma quimera.
Em Telejornal – Parte 2 é novamente um conto de gosto brutalista, de
alta violência urbana, assunto que tem tomado a maior parte do tempo de alguns
noticiários.
Eros uma vez, calembur,
também conhecido como trocadilho, não deixa de ser o encontro de uma história
infantil com o sentido erótico, mas este apenas sugerido pelo esforço com que o
narrador-personagem se faz poeta para conquistar uma menina. Depois de seu
fracasso em um concurso de poesia, mas tendo, por fim, na primeira fileira da
plateia aquela por quem empreendera todo o esforço, termina o conto com uma ironia:
“O único que me compreendia era Camões piscando um de seus olhos para
mim.” Segue-se um conto com a linguagem
coloquial, que, na verdade, enforma praticamente o livro todo, mas agora com
alguma influência do cruísmo vocabular e ambiência erótica já anunciada no
título: Erotômato imperfeito.
Telejornal – Parte 3
compõe-se de cinco textos: Iberê, uma
história quase trágica e as Atemporais: Jim
Cluster, quase um épico, no sentido dos westerns
cinematográficos, relatando a
vida de um tipo lendário que o narrador conheceu. “Moeram o sujeito a pancadas.
Gritavam. Perguntavam alguma coisa. Eles sempre perguntam. Meu estômago
revirava-se. Vomitei uma mistura fedida.”
Não se fica sabendo o que perguntaram, por que perguntaram nem quem
perguntou. Sabe-se apenas que se tratava de um bêbado. E não vem ao caso, para
a economia do conto, saberem-se tais detalhes. Mais uma vez o efeito borrão, o
esboço indefinido, de que já se falou.
Há então alguns contos de incursões
por um realismo irônico, por vezes. Por vezes o Realismo mágico do tipo
metafísico (também chamado de “absurdo”, como no caso do conto de sabor
escatológico/naturalista O embrulho,
esse já pertencente à penúltima parte do livro, o Telejornal – último bloco.
Fora do ar, o fim da
programação diária tem apenas um conto, Meu
tio, o encantado, o mais lírico de todos os textos, pois chegamos ao fim do
dia, à hora dos sonhos. O tio encantado, quando enlouqueceu, “...se aproximou
de uma árvore, conversou dez minutos com seus galhos, alisou as folhas dos
ramos mais baixos, colou o corpo ao tronco, invocou por nomes estranhos.
Saiu aluado do encontro. “
E ao fim da leitura do livro,
tem-se a sensação de que o silêncio está afinado, pois o autor soube temperá-lo
na medida certa.
Menalton
Braff
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