terça-feira, 6 de março de 2018

ORELHA


Esta coluna reúne apresentações de livros escritas por Menalton Braff.
O silêncio bem temperado

Mariel Reis, esse é o nome. Em seu segundo livro, reuniu vinte e um textos capeados pelo título A arte de afinar o silêncio, cujo paradoxo expressa muito de seu conteúdo. E o silêncio, pode crer, saiu bem temperado, lembrando o título de Johann Sebastian Bach. Uma incursão, mesmo que rápida, por suas páginas, comprova nossa afirmação.
O livro, estruturado segundo um dia na televisão, começa com o primeiro título, Hino,  que introduz o texto O poste, escrito em primeira pessoa e expressando uma série de sensações de qualquer pessoa em uma cidade grande. A linguagem carrega um certo sabor de Cruz e Sousa, o que é um de seus méritos, mas põe em discussão algo que hoje começa a perder o sentido, qual seja, o problema das classificações.
Muitas editoras, atualmente, fogem à cilada dos tênues limites de alguns gêneros, indicando em sua ficha catalográfica apenas ficções. O conto, teoricamente discutidíssimo por autores como Edgar Allan Poe (para quem conto era todo texto narrativo que se pode ler em meia hora) e Júlio Cortázar, que nos deixou obra teórica importante a respeito deste gênero. Em resumo, pode-se dizer que conto é uma narrativa de uma só célula dramática, com economia de recursos narrativos. Sua linguagem,
por tensa, aproxima-se da linguagem da poesia. Neste assunto, qualquer definição há de ser insuficiente, mas por enquanto nos satisfaz o que aí vai dito, para sugerir que muitos dos textos de A arte de afinar o silêncio estariam mais bem classificados como ficções. A começar por este belo O poste, de sabor cruz-e-sousiano.
Abre-se novo título, Impressões, para agrupar quatro novos textos, começando por Um conto sobre a inveja. Trata-se de um conto situado no Rio de Janeiro do século XIX, cujas personagens saem de livros e da vida carioca daquela época. Bentinho, Capitu, Lima Barreto são personagens movimentando-se no texto. A caderneta que se lhe segue, tem como protagonista Fancis Ponge, recriando sua vida num cenário parisiense. Paul Valéry, do próximo conto, A pergunta, comparece com suas inquietações. E Impressões se encerra com Meu encontro com Marques Rebelo, com quem o narrador tem um encontro inusitado, depois de ele ter fugido de seu próprio velório. Este último conto faz uma incursão pelo realismo mágico do tipo ontológico, em que o sobrenatural é admitido com naturalidade.
Telejornal – Parte 1, que vem a seguir, começa com A mensagem, conto urbano, carioca, que beira o brutalismo, tão frequente na literatura de muitos jovens seguidores de Rubem Fonseca. Mas Mariel Reis não fica nisso, indo buscar em muitas outras fontes os modelos de cujo amálgama sairá sua própria literatura.
Novela das seis,  o próximo título com que o autor ironiza um dia passado na telinha é um conjunto de 28 capítulos, quase todos de pequena extensão, vazados em uma linguagem tendendo para o Impressionismo, pelo efeito borrão das cenas que mais sugerem do que exprimem realidades mimeticamente relatadas. Há momentos de lirismo e poesia com equilibrado uso de recursos de retórica como no Capítulo 2: “As paredes tatuadas de segredos porejam queixumes, resta saber onde. Novo abrigo.” Tem-se aí uma bela prosopopéia de sentido ambíguo e intrigante. Sonho e uma realidade difusa alternam-se numa história que pode ser de amor, para encerrar com o último capítulo, o de número 28: “Ela não existe”, que mais uma vez nos faz lembrar dos devaneios e da subjetivização simbolistas, em que o ser amado nunca passa de uma quimera.
Em Telejornal – Parte 2 é novamente um conto de gosto brutalista, de alta violência urbana, assunto que tem tomado a maior parte do tempo de alguns noticiários.
Eros uma vez, calembur, também conhecido como trocadilho, não deixa de ser o encontro de uma história infantil com o sentido erótico, mas este apenas sugerido pelo esforço com que o narrador-personagem se faz poeta para conquistar uma menina. Depois de seu fracasso em um concurso de poesia, mas tendo, por fim, na primeira fileira da plateia aquela por quem empreendera todo o esforço, termina o conto com uma ironia: “O único que me compreendia era Camões piscando um de seus olhos para mim.”  Segue-se um conto com a linguagem coloquial, que, na verdade, enforma praticamente o livro todo, mas agora com alguma influência do cruísmo vocabular e ambiência erótica já anunciada no título: Erotômato imperfeito.
Telejornal – Parte 3 compõe-se de cinco textos: Iberê, uma história quase trágica e as Atemporais:  Jim Cluster, quase um épico, no sentido dos westerns cinematográficos, relatando a vida de um tipo lendário que o narrador conheceu. “Moeram o sujeito a pancadas. Gritavam. Perguntavam alguma coisa. Eles sempre perguntam. Meu estômago revirava-se. Vomitei uma mistura fedida.”  Não se fica sabendo o que perguntaram, por que perguntaram nem quem perguntou. Sabe-se apenas que se tratava de um bêbado. E não vem ao caso, para a economia do conto, saberem-se tais detalhes. Mais uma vez o efeito borrão, o esboço indefinido, de que já se falou.
Há então alguns contos de incursões por um realismo irônico, por vezes. Por vezes o Realismo mágico do tipo metafísico (também chamado de “absurdo”, como no caso do conto de sabor escatológico/naturalista O embrulho, esse já pertencente à penúltima parte do livro, o Telejornal – último bloco.
Fora do ar, o fim da programação diária tem apenas um conto, Meu tio, o encantado, o mais lírico de todos os textos, pois chegamos ao fim do dia, à hora dos sonhos. O tio encantado, quando enlouqueceu, “...se aproximou de uma árvore, conversou dez minutos com seus galhos, alisou as folhas dos ramos mais baixos, colou o corpo ao tronco, invocou por nomes estranhos.
Saiu aluado do encontro. “
E ao fim da leitura do livro, tem-se a sensação de que o silêncio está afinado, pois o autor soube temperá-lo na medida certa.
                                                                         Menalton Braff

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