O conto de hoje é do próprio Menalton e foi publicado originalmente no livro VOU TE CONTAR 20 histórias ao som de TOM JOBIM, editado pela Rocco e organiizado por Celina Portocarrero.
Falando de amor
Não pode haver dúvida: este banco ao pé do fícus, no meio da praça, ponto conhecido por toda a cidade. Sei que cheguei cedo demais, mas foi de propósito. Quero vê-la surgindo com seu passo de valsa, sua cabeça no alto singrando os ares como cisne no lago. Ah, claro, não posso perder sua chegada. Preciso estar atento, pois não imagino por que lado da praça ela pode vir.
Cinco minutos além da hora marcada, mas é preciso dar algum tempo de desconto. O trânsito, alguma pessoa conhecida, muitas coisas podem provocar o atraso. Uns minutos a mais. Mas ela há de vir. Lá na esquina, pode ser. Não, corpo sobrando, não é esguia como a Flora, com aquele seu jeito de lírio. E se não vier?
Ainda bem que esta sombra, sem pressa, Leonardo, e a brisa esperta e fresca, posso esperar muito tempo. Já esperei além de uma semana. Posso esperar muito mais. Para o amor as horas não cabem no relógio.
Costumava passar todos os dias por aquela calçada, que há muito não me dizia nada. Era meu caminho. Portas abertas, vitrines, duas, três árvores decrépitas: uma paisagem que de tão conhecida
tinha deixado de aparecer. Sabia de cor o nome de cada uma das lojas e bares, a cor das paredes, a iluminação intensa da farmácia. Nunca entrei por nenhuma daquelas portas, nem considerava necessário entrar. Era apenas meu caminho, um espaço para percorrer até a oficina, sem outro significado, sem qualquer interesse.
Na semana passada, precisei de um cartucho para a impressora e entrei na papelaria, ao lado da farmácia. As duas portas recém tinham sido abertas e o ar, lá dentro, era um ar noturno, morno e parado, com um leve cheiro de mofo, um cheiro mal iluminado. Minha primeira impressão foi de que não havia ninguém na loja, até perceber algum movimento atrás do balcão. Mais uma lâmpada foi acesa e, lá de baixo, veio subindo um sorriso, não um sorriso qualquer, mas com o frescor de uma rosa orvalhada que desabrocha.
Alguém está passando por trás da sebe de tuias. E me parece que é ela. Sinto um suor frio nas mãos, meus olhos não ousam piscar. Já ouço os leves passos dela como asas de uma borboleta. Enfim, aparece de corpo inteiro, e um gosto de gelo me desce pela garganta porque não é ela. Será que não vem? Ah, se ela imagina o quanto gosto de seu jeito, de seus lábios, seus olhos, o corpo todo, se ela sabe o deleite que me causa ouvir sua voz, então, tenho certeza de que ela virá.
Paguei o preço do cartucho e fiquei parado, sem saber ir embora, ali estátua, enredado em seus olhos de cobra. A balconista continuava sorrindo, e sorrindo me perguntou se mais alguma coisa. O perfume de seu sorriso me entorpecia e foi difícil dizer que não, muito obrigado. Minhas pernas me carregaram até a porta, de onde olhei mais uma vez para aquele rosto não sei se divino ou diabólico. Um rosto que acabava de abrir uma cratera na minha vida.
No dia seguinte, quando entrei na papelaria, a balconista atendia um bando de meninas com uniforme de uma escola do quarteirão vizinho. Reclinado sobre o balcão, fingia estar escolhendo muito atento uma caneta, depois uma capa de celular, por fim uns formulários que vi sem olhar e não cheguei a ler. Foram minutos de puro prazer aqueles em que disfarçadamente meus olhos devoravam a razão de haver entrado na loja pela segunda vez.
Por fim, as meninas carregaram suas saias de uniforme para a rua e ficamos só a balconista e eu lá dentro. Ela veio com seu sorriso à frente para me atender, então era necessário que eu resolvesse logo o que pediria e nessa urgência senti minhas mãos úmidas de suor e tentei responder a seu cumprimento, mas acho que estava muito atrapalhado e sem saber o que pedir, até o ponto de ela ter de repetir como se estivesse acordando alguém de sono profundo. No último segundo pedi um cartucho para impressora. O tipo? Ah, o tipo, pois então, o mesmo daquele que levei ontem. Outro? ,
foi seu espanto, pois então, veja só, acabei perdendo no caminho pra casa. Perdi, veja só que azar.
Os dois estão vindo por uma aleia radial, passo lento, braços dados. Não pode ser, meu destino é o inferno da infelicidade? Daqui de longe, adivinho suas pernas, seus quadris, posso ver o busto empinado, seu cabelo, e até consigo sorver o perfume de seu sorriso. Melhor não tivesse proposto este encontro para ser menos infeliz. Viro o rosto, não quero mais assistir à minha ruína. Mas por que me atinge desta maneira, sabendo que entrou na minha vida pela janela dos sonhos? Eles se aproximam. Ah, Flora, que te fiz eu, além de te amar, para que você me destroce impiedosa?
Eles vêm conversando animadamente, fingindo não ter notado aqui neste banco os restos de um ser apaixonado. Mas não, que ouço, esta voz gutural não é dela. Com esforço que me extenua viro o rosto e os encaro. Meu Deus, salvo ainda, pelo menos por mais alguns momentos. Vem, Flora, vem depressa, antes que a loucura de te amar dê cabo de mim. Vem sem medo, que ainda guardo o segredo do meu imenso amor.
Nos dias seguintes não consegui mais passar pela porta da papelaria sem entrar, sempre na esperança de lá encontrar a balconista sozinha. O patrão, não atino com o motivo, estava sempre a postos atrás da caixa registradora. Comprei lápis, canetas, comprei um formulário sem saber para que serve. Chegou finalmente a quinta-feira e pedi um envelope. Sorridente, ao me entregar a encomenda, a Flora disse que ninguém mais escreve cartas, as pessoas agora mandam emeils. Respondi baixinho para que apenas ela ouvisse: Preciso fazer uma declaração de amor. Por carta?, foi seu espanto.
Mas é claro, se você ainda não me deu seu endereço! Nem vou dar, e soltou uma gargalhada. Por fim, desculpou-se, apenas um dito de brincadeira. E o baque que senti na caixa do peito foi de susto, gostaria de responder, mas não tive coragem. Seu olhar desceu sobre mim, trêmulo, olhar medroso, mesmo assim com brilhos de esperança.
E agora essa! A cabeça do Marcelo caminhando por cima da sebe. Que não me veja, pelo amor de deus. Escolhi este lugar afastado justamente por não querer testemunhas no meu encontro. Finjo amarrar o cadarço do sapato, o rosto virado para o chão, escondido. Ouço seus passos cada vez mais próximos, agora diminuem o ritmo, quase param e começam a se afastar. Vai longe, meio arqueado, como costuma andar. Acho que não me viu, o cretino. Zagueirão bom de bola, este Marcelo, hoje vai ser contra o Vila Velha, eu sei, mas, em matéria de urgências, nenhuma é tão urgente como as
urgências do amor.
Na sexta-feira, quem estava trêmulo era eu. Minha testa úmida, minhas mãos encharcadas, meus olhos mergulhados numa nuvem densa. Ninguém além do patrão atrás da registradora e Flora folheando uma revista. Pedi uma caneta e disfarçadamente entreguei-lhe o envelope, dentro do qual viajava meu bilhete carregado de esperança e ansiedade. Hora e local e a primeira declaração que ousei: te amo. Então paguei e fugi depressa.
Quase meia hora de atraso. Começo a desesperar. O pessoal do nosso time vai atravessando a praça na mesma direção em que seguiu o Marcelo. Me abaixo novamente porque eles podem estragar tudo com suas gaiatices.
O céu azula indiferente à minha desilusão. A praça agora parece adormecida, exceto pelo pipilo sem graça de alguns pardais. Preciso ir embora, já esperei demais. Talvez ainda chegue a tempo de participar do jogo.
Me levanto disposto a me mandar daqui, e uma risada por trás de mim me paralisa.
Conheço esta voz, que é música, a única música que neste momento suportaria. Ao me virar, a Flora me saúda:
− Acho que me atrasei um pouco!
Blog de Literatura do escritor Menalton Braff, autor de 26 livros e vencedor do Prêmio Jabuti 2000.
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sexta-feira, 29 de junho de 2018
CONTOS CORRENTES
Postado por
Anônimo
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09:56
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